- Acho que estou apaixonada.
- A sério?
Ela corou. Para mim, era ainda a
menininha que eu vi crescer, que corria pela casa e que cantava as letras das
canções inventadas por ela mesma, cada vez de um modo diferente e que nos
deixava atônitos e a dar risadas, diante da esperteza dela…
- Bem sério!
- Ele é bom para ti? Te respeita e faz-te sentir bem?
Ela olhou-me séria, hesitou por
um milésimo de segundo e respondeu.
- Sim.
- Então só posso apoiar-te, obviamente, meu amor.
Ela sorriu e me abraçou,
sussurrando um ‘obrigada’ ao pé do ouvido,
como se o meu apoio fosse fazer alguma diferença no que ela sentia ou queria.
Certamente aliviaria uma carga emocional enorme, pela aprovação que ela queria,
mas não poderia alterar seus sentimentos.
Ela beijou-me a face e saiu
correndo pela porta afora, a caminho de ‘sei-lá-para-onde’… Fiquei a olhar a
forma como ela parecia radiante. Quase flutuava, de tanta felicidade. Antes de
sair pelo portão, ainda voltou-se e acenou-me um adeus engraçado, com um
sorriso enorme estampado na face jovial. Eu sorri e acenei-lhe de volta, dando-me
conta que ela havia, definitivamente, crescido e desabrochado. A juventude é
mesmo uma fase maravilhosa da vida.
Fiquei a olhar o vazio no portão,
depois que ela desapareceu na distância e a pensar na minha própria vida.
Atrás de mim, as palavras de uma
canção conhecida a tocar, pareceu cutucar meu coração com uma certa crueldade,
quase intencional. Minhas memórias estavam sempre tão associadas à música e às
muitas canções significativas, que eu mal conseguia controlar minhas emoções,
cada vez que ouvia alguma que havia, de alguma forma, marcado minha vida.
… I wish you, I wish
you, I wish you all the best
I’ll miss you, I’ll miss you, I’ll miss you
not the least…*
***
- Pai?
- Diz…
- Quem foi o grande amor da tua vida?
A pergunta pegou-me desprevenido.
Brinquei com a resposta, para ganhar algum tempo.
- Foi Ginger.
Ela deu uma gargalhada.
- Eu já devia esperar por esta resposta, mas falo sério. Ginger foi,
sem dúvida um grande amor, mas eu falava de uma pessoa, não do gatinho.
- Ginger foi mais que um gatinho. Foi um grande companheiro, meu amor…
- Pai?
Eu sorri. Sabia que ela não ia
desistir, sem receber uma resposta aceitável. Seus olhos pareciam duas grandes
bolas de vidro escuro. Fingi que não percebi…
- Diz.
- Quem foi? De verdade, mesmo!
- Não sei se houve ‘o grande amor’ da minha vida…
- Oh! Mesmo? E a mãe?
Eu olhei a face séria da minha
menina e respondi com sinceridade.
- Ela foi uma grande paixão, é verdade e deu-me a ti, que és o meu
maior presente de vida. É certo que tive muitas outras paixões, mas para ser o
grande amor, não pode ser uma coisa unilateral, não é mesmo?
- Não necessariamente. Se te fez sentir amado; se foi intenso; se te
fez sonhar; se te fez sentir especial e, de alguma forma, uma pessoa melhor… Se soube trazer à tona o melhor de ti...
- Quanta sabedoria em uma criatura tão jovem…
Ela riu, meio sem jeito, com as
faces enrubescendo ligeiramente. Eu reconheci que o tempo havia transformado
aquela menininha em uma jovem e sábia mulher e agradeci aos céus por aquilo.
Ela estava radiante e aquela felicidade fazia-a refulgir e contagiava a mim
também.
Mas ela estava certa. Quem, além
de nós mesmos, pode-nos fazer felizes, mesmo que por uns breves momentos? Não é
este a verdadeiro sentido do amor: brotar e desabrochar de dentro para fora?
Havia aprendido, contudo, que nem
os pequenos, nem os grandes amores sobrevivem à distância, ou à falta de
reciprocidade, ou à mentira. Mais cedo ou mais tarde estas coisas vêm à tona e destroem
o que de bom os sentimentos ainda possuem. As máscaras caem, as verdades
aparecem, o tempo e a distância esfriam as ligações e os afetos vão-se
desvanecendo, até o ponto em que o fio da ternura parte-se, para sempre e aquilo,
que era tudo, passa a ser, apenas, mais uma ilusão destruída e convertida em
dura e triste realidade e em uma quebra nas expectativas…
Pior ainda é quando o tal amor
transforma-se em ódio ou desprezo, ou outro sentimento tão negativo quanto
estes. Ao invés de nos sentirmos felizes pelo que foi, nos sentimos mal pelo
que deixou de ser.
Como eu ia dizer à ela que meu
coração teve muitas paixões muito intensas, mas que eu jamais poderia revelar
que alguma vez existiram? Para todos os efeitos, foram ‘affairs’ que nunca aconteceram. Para todos os efeitos, foram
paixões que só disseram respeito a mim e a mais ninguém… assim unilateralmente.
Sad but true…
- Pois eu acho que este é o grande amor da minha vida.
- Fico feliz por ti, meu amor. Tenho certeza que só pode fazer-te bem. Parece
até que viste um passarinho azul!
- É verde, pai! Passarinho verde!
Eu ri. Ela também. Aquela era uma
piadinha que nós fazíamos. Uma ‘private
joke’ só nossa.
- Meu amorzinho, nunca deixes as pessoas, que não sabem a tua história,
interferirem na tua vida amorosa. A vossa vida só interessa a vocês e a mais
ninguém…
- Eu sei, pai.
- E tenha cuidado para não te machucar. O coração vê através de óculos
que a razão não usa.
Mesmo sabendo melhor que ninguém
que uma pessoa apaixonada não ouve conselhos daqueles, por mais coerentes que
possam ser, eu não pude furtar-me de dá-los.
Sabia que o que importava,
realmente, era ouvir a voz do coração e viver intensamente… “Que seja eterno enquanto dure”, como
dizia o poeta…
E como eu poderia saber se ela
estava certa ou não, em definir aquele como “o” amor da sua vida, se não estava
vivendo o que ela sentia? No fundo eu só queria que ela fosse feliz.
***
- Estás nervoso?
- Não! Tu?
- Um pouco preocupada.
- Eu compreendo. Mas não te preocupes. Ninguém vai notar se alguma
coisa sair fora do teu plano. Faz parte do processo.
Ela pareceu absorver aquelas
palavras com tranquilidade. O que acontecesse, não ia estragar o brilho daquele
dia. Apenas as pessoas mais íntimas estavam presentes e não havia motivos para apreensões.
A simplicidade e o carisma dela eram suficientes para fazê-la brilhar, mas ela
talvez tivesse menos consciência daquilo, que eu mesmo tinha.
- Vai lá. Agora é encarar e ir em frente!
Ela ia, por assim dizer, marcar o
dia de seu aniversário com uma decisão bastante importante e muito corajosa.
Quando ela voltou, vestida como
se fosse para a ocasião mais marcante de sua vida, até então, parecia
deslumbrante e nervosa, ao mesmo tempo. Tinha um brilho no olhar que não
deixava dúvidas sobre o propósito daquela decisão.
Ao seu lado, o amor de sua vida
sorria, com os dedos entrelaçados nos dela, tão deslumbrante quanto a minha
menina.
As duas formavam um par
excepcionalmente suave, belo e, ao mesmo tempo, forte e destemido.
Eu sorri, abri os braços e as duas encaixaram-se no meu abraço. Ao pé dos ouvidos delas, eu disse,
baixinho:
- Vocês são duas deusas guerreiras! Sejam muito, muito felizes!
As duas me abraçaram e
beijaram-me as faces. Estavam abençoadas.
O que viesse, dali, para frente,
eram batalhas para as duas travarem juntas...
*( Benjamin Clementine's "The Movies Never Lie")