Mostrar mensagens com a etiqueta confusão. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta confusão. Mostrar todas as mensagens

domingo, 12 de julho de 2020

Viajante do Tempo. Parte 1. O Farol.



- Sabe, às vezes eu sinto que não pertenço a este lugar e a este tempo. E é mais do que apenas algumas vezes.

- E tu és, agora, um viajante do tempo?

Ele fez a pergunta, sorrindo.

- Tu também não te sentes, às vezes, fora do tempo e do lugar?

Ele sorriu de novo, de uma maneira engraçada, como se soubesse mais do que estava dizendo ao amigo.

- Sinto, sim.

- Então me entendes, quando eu digo isso... É tão...

Dessa vez, ele ficou pensativo, como se algo mais sério lhe ocorresse.

- Tu não tens ideia do quanto eu te entendo...

***

- Nós não deveríamos estar aqui. Se alguém nos vê...

- Calado! Ninguém vai-nos ver. Nós estamos seguros. Já passa muito da meia-noite.

- E se a polícia aparecer?

- Seremos rápidos. Eu só quero ter certeza de que está realmente aqui.

- E como nós vamos saber?

- Eu vou saber, acredite em mim...

- Está bem.

- Deveria estar por aqui em algum lugar, mas é tão trivial que ninguém jamais notaria. Ou, se o fizerem, nunca teriam uma ideia do que realmente é. Cá está. Eu sabia!

- Pronto. Já achamos, agora vamos embora daqui! É apenas um ‘geocache’!

- É assim que pode parecer, mas é mais do que isso. Não é uma caixa. Vês? Tenho certeza que é um portal.

- O que nós vamos fazer?

- Nada. Não vamos fazer nada. É mais seguro que fique aqui, do jeito que está.

- Achas que há mais?

- Portais?

- Viajantes?

Ele olhou para o jovem de óculos, em silêncio. Seu rosto estava protegido pela sombra, mas houve uma súbita mudança na sua forma de respirar.

- Vamos sair daqui, agora. Não tarda a amanhecer.

- Espera. Alguém se aproxima. Ouves?

- Rápido! Faz alguns alongamentos. Finge que estamos exercitando.

O som dos passos ficou mais alto. Alguém vinha correndo a caminho do cais e se aproximava de onde eles estavam.

O rapaz de óculos virou-se e descansou a perna no parapeito inferior, esticando-se devagar com as mãos, tentado alcançar os pés, como se estivesse fazendo alongamentos. Seu companheiro segurava um pé com uma das mãos, suportado por uma perna, apenas.

Eles não conseguiam ver se o rosto do corredor recém-chegado, no interior do capuz do casaco de treino escuro, era jovem ou velho, mas pela maneira como ele se movia, podia-se dizer que era um homem atlético. Ele passou pela pista e deu a volta ao redor do farol, voltou ao cais e saiu pelo mesmo caminho que veio, entrando no calçadão. Logo ganhou a rua e desapareceu na escuridão novamente. O som de seus passos foi desaparecendo ao longe.

Os dois homens se entreolharam, aliviados.

- Essa foi por pouco!

- Que nada! Pare de ter tanto medo de tudo. Vamos voltar. Já tivemos mais que o suficiente esta madrugada.

Eles saíram rapidamente para onde o jipe ​​estava estacionado e entraram, não sem antes olharem a volta.

Não viram o homem vestindo um casaco de treino, escuro e com capuz, parado do outro lado da área do estacionamento, protegido da vista, pela penumbra.

Assim que o carro saiu, ele atravessou o parque e voltou a se aproximar do farol, correndo...

***

Os dois chegaram em casa em alguns minutos, já que não havia tráfego àquela hora da manhã. Ainda tinham algumas coisas para discutir.

- Que porra era aquela? Era mesmo um portal? A sério? Eu pensei que havíamos ido procurar um ‘geocache’…

- Tu sabes muito bem que era um portal e não um ‘cache’. Tu viste os detalhes…

O homem de óculos estava totalmente confuso, pois sabia que aquelas coisas eram difíceis de entender e acreditar.

Seu amigo parecia mais à vontade com a existência de um portal, embora desde que eles haviam deixado o farol, parecia bastante distraído, como se estivesse em outro mundo… ou época.

- Tu achas que nós deveríamos...?

- Eu acho.

- Quando?

- Quanto mais cedo melhor. Vamos arrumar algumas coisas nas mochilas. Talvez não voltemos hoje.

***

O sol mal acabava de nascer e eles já estavam na estrada para o norte. A A28 estava silenciosa, mas logo estaria movimentada, devido ao tráfego para as zonas industriais e às pessoas que iam para as praias.

- Um portal? Não é possível! Mas aquele último foi totalmente destruído!

- Eu sei. Mas tudo aponta para um novo e nós o localizamos. Está lá, tão à vista quanto um ‘geocache’ normal… mas com detalhes muito característicos.

- Como isso pode ser possível? A menos que... Espera!... Não, não, não... Isso é improvável...

- O quê? Espera aí! Tu estás sugerindo que eles voltaram para cá?

- Do que vocês dois estão falando? Isto não faz nenhum sentido.

- Mas por que aqui e por que agora? O que há aqui, nesta era, que poderia ser de algum interesse para eles?

- Eu não faço ideia. Se tivéssemos alguma indicação do que aconteceu, quando...

Eles olharam para o homem de óculos.

- ‘Oblívio’, o ‘Esquecimento’...

- OK! Vamos parar aqui e agora. Quero saber tudo sobre este incidente com ‘Oblívio’... Passou-se bastante tempo. Já está mais que na hora de falarmos sobre isso. E não me tentem enganar mais, por favor!

Os dois homens olharam para aquele que usava óculos. Ele estava lívido.

- OK. É melhor sentar. Vou-te trazer um pouco de água. Relaxe um pouco, sim?

- Eu não quero e nem vou relaxar. Tudo isso parece estar relacionado. Digam-me já o que aconteceu... Quero saber agora!

- Ok, mas agora, sente-se, por favor. Beba a água. Eu vou explicar... Ou, pelo menos, vou tentar esclarecer-te esta história, de uma vez por todas.

***



domingo, 4 de junho de 2017

Olhares (Parte 4)



- Vamos falar sobre coisas sérias.

- Já é mais que hora de falarmos a sério…

Ele chegou-se um pouco para frente e começou a falar. Eu, de minha parte, a ouvir com atenção, não conseguia deixar de ficar impressionado pelo que aquele homem ruivo dizia.

***
- Nós somos prisioneiros.

- Como assim? Prisioneiros?

- Ainda não percebeste que tudo o que nós fazemos tem uma consequência? Nós somos prisioneiros das nossas vontades, dos nossos vícios e dos nossos medos.

- Isso é retórica…

- Será? Eu sei que tu gostas daquela frase. E é uma verdade.

- Qual frase?

Ele sorriu. Eu sabia à qual frase ele se referia, mas como sempre, queria que fosse ele a ser claro e específico. Eu sempre precisava de uma confirmação.

- Tu sabes… ah, sabes… e sabes muito bem!

Eu sorri. A ele não se podia enganar.

- Que mal há em desejar? Se o desejo for mesmo firme… se acreditarmos…

- Aí é que está o perigo… Por sorte, nem todos acreditam o suficiente… “Se tiverdes fé como um gão de mostarda” …

Eu ri, um tanto desconcertado. Não esperava que ele fosse usar uma citação daquelas.

- Tu deves saber que eu não defendo as coisas transcendentais, nem sigo nenhuma religião. A frase, entretanto, faz mais sentido que possas imaginar.

- Assim como minha frase preferida… Mas não esperava uma citação desta, de alguém que se diz “não-seguidor” de religiões.

- Nós dois sabemos que foram os homens, nos seus primórdios, que inventaram seus deuses para compensar a inépcia em explicar os fenómenos naturais, dando nomes românticos e atribuindo, assim, super-poderes às forças do universo.

E ele desfiou um longo discurso sobre como foram criadas as religiões e como a manipulação do conhecimento, pelos mais eruditos, ricos e espertos, conseguiu atravessar as eras e impingir o medo naqueles que não podiam - ou não deviam - tomar ciência da verdade.  

- Os homens têm sido enganados ao longo deste tempo todo, levados a acreditar numa grande mentira, tentando dar sentido às suas vidas insípidas e salvar suas almas pecadoras. Se soubessem a força que possuem, acima desta mentira toda, mudavam o curso da História…

- Por outro lado, não acreditar em nada pode ser tão ou mais perigoso ainda. Veja o que acontece com o mundo, quando as pessoas não têm no que acreditar ou estão simplesmente perdidas, sem fé e sem direcção. Elas não têm medo da impunidade, não tem consciência e não sentem culpa. Veja o caos que o mundo acabou se tornando, com os crimes mais absurdos e hediondos, não só uns contra os outros, mas também contra si mesmos. Nunca se cometeram tantos homicídios, nem suicídios como agora.

- Num mundo onde o acesso às informações é tão imediato, as mentiras e as notícias sem profundidade e sem sentido, espalham-se com a velocidade de um incêndio na palha seca, levado pelo vento. Poucos querem ler os jornais, mas todos acreditam no que lêm nas redes sociais. Alguma coisa precisa ser feita urgentemente.

- Mas eu sou muito pequeno para promover qualquer mudança que possa ser considerável…

- Será que és mesmo?

***

Eu nunca havia pensado naquilo, daquela forma. Era bastante triste, complexo e profundo, embora muito verdadeiro e credível.

O som de um estranho e intermitente bip começou a perturbar-me a cabeça, quando ele me estendeu a mão e disse:

- Está na hora de voltares ao outro lado…

Eu olhei para o fim daquele emaranhado de túneis, numa galeria muito iluminada, cada qual com um tipo diferente de saída, onde pessoas vestidas de negro iam e vinham apressadas. Ele conduziu-me até um dos terminais de passagem e disse-me que dali para diante eu tinha que ir sozinho, mas que tudo ia dar certo...

Confesso que tive um certo receio, quando vi o carro preto e reluzente parado do lado de fora, mas quando a porta se abriu, tive a sensação de ser sugado para fora, com uma violência inesperada, na direcção de uma luz muito forte.

Os bips pareceram mais altos e intermitentes e em cadência mais rápida.

Fechei os olhos com força. Eu, porém, sabia que tinha de encarar os factos. Senti um calor sobre meu rosto e abri os olhos, gradualmente. Uma luz muito forte ainda parecia cegar-me, mas foi diminuindo a intensidade, conforme eu piscava os olhos, tentando manter o foco nas figuras disformes à volta dela.

Poucos segundos depois, ouvi uma voz agradável, que acompanhou a solidez e forma do rosto suave e conhecido da mulher vestida de branco.

‘Um rosto familiar afinal’...

Eu sorri e ela correspondeu.

- Que bom vê-la novamente.

Ela sorriu, condescendentemente e falou, com muita delicadeza.

- O senhor acaba de sair do coma em que estava, desde que sofreu o acidente de carro. Esteve naquele estado há vários meses.

- Mas eu saí do hospital, logo em seguida… Nós já nos encontramos depois daquilo e até conversamos…

- Só se foi em sonho. É normal sonhar sonhos muito realísticos, em alguns estados comatosos. Mas agora tudo vai ficar bem. Só tem que tomar os medicamentos e fazer a fisioterapia direitinho. Em pouco tempo vai voltar à sua vida de antes…

‘Isso é impossível! Não pode estar a acontecer. Acho que estou dentro de um pesadelo recorrente’

- E o meu amigo? Ele veio fazer-me uma nova visita, pelo menos?

- Que amigo? O senhor não teve nenhuma visita.

- Aquele que se veste sempre com roupas pretas…

Ela riu e puxou o lençol, cobrindo-me até o peito. Ajustou o fluxo do medicamento intravenoso, pediu-me para ficar calmo e saiu do quarto, em silêncio.

Fechei os olhos, meio entorpecido pelo efeito dos analgésicos. Senti-me a cair num poço sem fundo, em câmara lenta, não sei por quanto tempo.

***

No canto do quarto, um homem vestido de negro mantinha os olhos fixos em mim.

- Deixei ali uma mensagem importante para ti, dentro da gaveta. Vais reconhecer pelo símbolo desenhado no papel dobrado.

Eu senti-me muito cansado, de repente, e fechei os olhos.

***

Quando abri olhos novamente, já não havia ninguém, além de mim, no pequeno quarto do hospital. Ouvi o silêncio, para ter certeza que eu estava mesmo sozinho.

Com um pouco de esforço, abri a gaveta da cómoda, na cabeceira da cama e procurei por qualquer coisa deixada lá, mas não encontrei nada, além de um Novo Testamento deixado pelos Gideões Missionários. Pensei que estava mesmo a delirar. Eu já devia saber que havia tido outro sonho…

Tive sede. Precisava de água. Olhei à volta. Havia uma garrafa plástica com água mineral, sobre a mesinha. Ao lado dela, um copo. Tentei mudar para uma posição mais sentado que deitado, para alcançar ambos, mas como não segurei a garrafa com firmeza, ela caiu no chão, com um estrondo seco e rolou pelo piso térmico.

- Que droga!

- Calma. Eu ajudo.

- O quê? Como…?

Ela juntou a garrafa, pegou o copo e serviu-me um pouco de água, que eu bebi com satisfação. Tive a impressão que não bebia água há muito tempo.

Ela sentou-se numa cadeira, cruzou as pernas e ajustou o casaco do tailleur de um moderno tweed cinzento-escuro, muito elegante, que trajava. Passou a mão pelos cabelos, trazendo uma mecha para trás da orelha direita, certificando-se que o coque estava bem preso atrás, no alto da cabeça. 

Eu ainda estava atónito, a olhar para ela, que me falou, sorrindo:

- Podes fechar a boca… Pareces muito surpreso de me ver aqui.

- Estou, claro. Não te vi entrar… Pensei que estivesse sozinho...

- Tu nunca estás sozinho.

Ela sorriu. Impressionante como parecia tão senhora de si… e, dependendo do que estava lá a fazer, talvez, também, senhora de mim…

- Tu não procuraste direito na gaveta. Devias ter aberto o livro…

Naquele instante a porta abriu-se e a enfermeira entrou e falou firme e directamente à outra mulher.

- Já acabou o horário de visitas. Ele precisa descansar.

A mulher levantou-se, aproximou-se da cama e deu-me uma palmadinha na mão.

- Eu volto outro dia, com mais tempo. Ainda temos muito a conversar…

Encarou a enfermeira, olhando-a nos olhos e saiu sem dizer mais nada. A enfermeira não pareceu abalar-se com o confronto, ainda mais que a outra obedeceu as regras do hospital.

- Se amanhã estiver bem, retiramos a intravenosa e iniciamos com as sessões de fisioterapia.

- OK.

Quando ela saiu, eu abri a gaveta e tomei o livrete de capa cinzenta, distribuído gratuitamente pelos missionários, com o objectivo de fornecer conforto espiritual aos doentes de corpo e alma. Folheei, rapidamente, as finíssimas páginas, para confirmar a informação que havia recebido. Um pequeno bilhete dobrado havia, realmente, sido deixado bem no meio do livro, onde se lia o Salmo 91. Reconheci o símbolo desenhado do lado de fora, assim que pousei meus olhos no papel.

Comecei a abrir o bilhete, com dedos trémulos. Meu coração deu um salto e senti um desconforto no estômago, como acontece quando levamos um susto, ou quando temos que enfrentar uma situação desagradável.

Era hora da verdade…


terça-feira, 25 de abril de 2017

Olhares (Parte 3)


‘Desta vez pareceu-me tão real… O que será que poderia significar, afinal?’

O dia mal começava e eu já estava estranhamente confuso. Aquele sonho pareceu-me mais uma verdadeira visão, de tão realístico e intenso que havia sido.

Olhei para fora, através da grande porta de vidro que levava à varanda, com uma xícara de café quente na mão. Percebi que chovia e ventava, como num dia de inverno, embora a Primavera já tivesse começado há algumas semanas.

Cheguei a pensar em voltar para a cama, mas logo desisti, pois não queria correr o risco de voltar a adormecer e sonhar. Era melhor ocupar-me com alguma coisa mais proveitosa, até compreender o que se passava com minha cabeça… ou esquecer, de vez, o sonho de alguns momentos atrás.

***

Sentado ao lado de uma grande janela, no Café da esquina, eu olhava distraidamente para fora, quando o telefone tocou. Não foi surpresa, quando ouvi a mesma rouca e monótona voz, já velha conhecida minha. Ouvi, com atenção, sem responder mais que uns poucos resmungos. Levantei-me, paguei a conta e fui até a garagem, entrei no meu carro e saí em direção à praia. Tinha vontade de acabar com aquilo de vez, ou não teria paz.

Evitando pensar muito, durante o percurso de pouco mais de quinze minutos, aumentei o volume do som e fui cantando a plenos pulmões, até chegar ao meu destino. No fundo, eu tinha um certo medo a rondar minha cabeça e perturbar minha razão e discernimento.

Quando cheguei ao meu destino, a chuva ainda caía insistentemente. Pensei que era um péssimo dia para qualquer tipo de encontro, ainda mais sendo na praia.

Não estava bem-disposto, nem muito paciente. Esperei uns minutos e, como não apareceu ninguém, resolvi sair dali e voltar à minha vida. Dei partida no carro, engatei a marcha à trás e pressionei o acelerador, devagar. Quando virei o volante e ia sair do estacionamento do pequeno restaurante, à beira da praia, a porta do passageiro abriu-se e ele entrou, para meu espanto, pois julguei que estava trancada por dentro.

***

- Acelera e vai em frente, em linha reta...

- Mas isso é suicídio!

- Não sejas covarde! Acreditas ou não?

Eu não gosto de ser desafiado, nem de ser chamado de covarde. Não olhei para o lado. O carro subia a estrada e eu devia fazer a curva, mas não virei o volante. Acelerei e fui em frente.

Pensei que ia acordar, quando o carro passasse do limite do penhasco, quebrando a pequena cerca de madeira e voando, na direção do mar, algumas dezenas de metros abaixo de nós, mas aquilo não era um sonho. Era a dura realidade. O homem, entretanto, sorria satisfeito, sentado ao meu lado.

O som que se seguiu foi estranhamente ensurdecedor. Senti um gosto estranho na boca e apaguei completamente.

***

- Foi uma bela queda. Poderia ter sido morte certa. Se pensarmos bem, o resultado do acidente até que nem foi tão grave, como poderia ter sido, tendo em vista a altura do penhasco… Se não fosse pelos surfistas que viram o acidente e foram logo em teu socorro…

- Será? E o homem que estava comigo? O que aconteceu com ele?

Eu quase nem reconhecia o som da minha própria voz, que parecia, apenas, um eco do que costumava ser. O médico olhou-me, muito sério, sem esconder uma manifesta preocupação.

- Não havia ninguém contigo no carro…

Encarei, com os olhos arregalados, aquele homem vestido de branco. Uma forte angústia aninhou-se em meu peito. Eu ouvi o som do aparelho ligado ao meu corpo acelerar o ritmo dos bips, quase ao mesmo tempo.

- Acalme-se, por favor. Agora, é melhor, primeiramente, tomar todos os medicamentos, com rigor. Acrescentei uns comprimidos com sais de Lítio, só para testarmos uma teoria. A princípio não pode ser nada muito grave, mas é conveniente termos mais certezas...

Respirei fundo e fechei os olhos, pensando no que havia ouvido.

‘Teoria… Teoria, o cacete!’

Eu sabia para que tipo de distúrbios os sais de Lítio eram usados. Era inconcebível que aquilo estivesse acontecendo comigo.

Quando reabri os olhos, o médico já seguia pelo corredor, andando na direcção da sala de Raio-X, com um grande envelope, que continha minhas radiografias, na mão.

Minha cabeça doía.

A enfermeira estendeu-me um copinho plástico com um bocado de comprimidos e pediu-me que ingerisse todos de uma vez, com um pouco de água. Até então, nem havia dado por sua presença naquele quarto. Ela observou-me com cuidado, certificando-se que eu engolia os medicamentos e saiu em seguida.

Ainda a ouvi conversar baixinho com alguém, mas não consegui perceber o que dizia, nem com quem ela falava. Pareceu-me, entretanto, que era algo como: ‘tudo vai ficar bem’…

Ela puxou a porta atrás de si, deixando-me sozinho, deitado, quase imóvel, por conta de duas pernas quebradas e umas costelas fracturadas, na cama do hospital.

Ouvi uma batida muito leve na porta e esperei, mas meus olhos fecharam-se, sem que eu conseguisse enxergar se via alguém a entrar. O efeito dos analgésicos era muito poderoso e eu adormeci muito rapidamente, naquele sono sem sonhos…

***

Poucos meses depois, com muita terapia e o uso rigoroso dos medicamentos, deixei o hospital e recomecei minha vida. Fui buscar o gato, que havia ficado na casa da minha sobrinha e trouxe-o de volta comigo. Aquele ato simples representava que minha vida voltava ao normal, aos poucos e que eu podia retomar minhas rotinas e meu emprego. 

Ainda tinha que fazer fisioterapia até recuperar meus movimentos na normalidade e visitava o hospital, pelo menos, uma vez por semana.

Numa das visitas, topei com a enfermeira que estava no quarto no dia em que acordei pela primeira vez, depois do acidente. Ela reconheceu-me e cumprimentou-me com um largo sorriso.

- Vejo que está melhor. Como vai seu amigo? Ele demonstrou uma preocupação muito grande quando o viu na cama, todo engessado…

- Que amigo?

- Aquele que se veste sempre de negro…

Devo ter feito uma cara muito estranha, pois ela logo completou.

- Ele veio cá várias vezes, até o dia em que você recuperou a consciência. Naquele mesmo dia, disse que ia viajar, por uns tempos…

- Pois. Já não o vejo há algum tempo. Obrigado pela preocupação.

***

No sábado, ainda de manhã, estava em casa arrumando minhas roupas, quando senti que, num dos bolsos de um casaco, havia um papel dobrado. Reconheci o pequeno símbolo desenhado em negro, assim que o tive na mão. Desdobrei, novamente, aquela pequena mensagem, entregue a mim, por um funcionário de um restaurante, alguns meses antes e li-a, com novo interesse.

Foi como se minha cabeça voltasse no tempo. Fiquei ali, não sei por quanto tempo, com o bilhete na mão, pensando no que havia acontecido…

O gato entrou, lembrando-me que era sua hora de comer e eu fui até a cozinha, servir-lhe a ração, mas ele parou diante da tigela de água, que estava vazia. Eu tinha certeza que havia enchido a mesma, logo depois do café da manhã, mas voltei a preencher, para satisfação do bichano, que bebeu em seguida. Ele agradeceu com uma leve cabeçada e roçou o corpo nas minhas pernas. Acariciei-lhe o dorso e a cabeça, ouvindo seu ronronar satisfeito.

Resolvi almoçar fora. Vesti o casaco e saí, com intenção de ir na direção da estação de metro. Ainda não podia conduzir normalmente e, ademais, não tinha o carro. Quando cheguei ao saguão do prédio, vi que, no vidro empoeirado da porta de entrada, havia um símbolo desenhado e que eu reconheci de imediato. Procurei algum vestígio do autor daquela façanha, do lado de fora, mas não havia ninguém por perto.

‘Alguém anda de brincadeiras comigo.’

***

Estava sentado na esplanada, num pequeno restaurante à beira da praia, com os pensamentos a vaguear muito longe. Um cálice de vinho verde, branco e fresco, pela metade, descansava ao lado do prato de peixe, que eu havia terminado há pouco.

- Pensei que preferias vinho tinto…

Reconheci o tom da voz assim que ouvi as primeiras palavras. A mesma monotonia e o timbre rouco, típicos dele, denunciaram o interlocutor.

- E prefiro, mas dado ao calor e à leveza do prato, acabei decidindo pelo branco. Senta-te.

Ele sentou à minha frente e à sombra do para-sol. Vestir-se de negro, daquele jeito, não era comum na hora do almoço e nem na esplanada de um restaurante à beira da praia, mas não comentei nada. 

Seus olhos azuis pousaram sobre os meus, naquela maneira fixa e provocadora, que era característica dele e que me incomodava sobremaneira. Senti um arrepio. Ele logo percebeu e sorriu.

- Vejo que estás bem melhor…

- Em pouco tempo estarei a cem por cento… Vi o sinal que deixaste na porta.

Ele sorriu, novamente.

- Não fui eu quem deixou o sinal.

- Ai, não? E quem foi, então?

- Quando é que vais acreditar? Ainda não tiveste provas suficientes?

- Acreditar? Eu quase morri, por tua causa e por acreditar… Queres mais que isso? Olha como eu estou. Saia da minha vida de uma vez. Isso tem que acabar…

- Mesmo que eu quisesse, isso já não seria possível.

Ele esperou pela minha reação, olhando-me fixamente. Senti que a confusão transpareceu nos meus olhos, pela forma como ele franziu o cenho.

- Vamos sair daqui.

Ele levantou-se e esperou que pagasse a conta e viesse para o lado de fora, onde as calçadas estavam povoadas de gente a caminhar ao sol. Seus cabelos reluziam com a luz de início de tarde e sua cabeça parecia incendiar. A minha parecia que ia explodir…

Caminhamos por uns minutos, sem falar nada, quando um carro preto, com os vidros protegidos por películas escuras, parou ao lado da calçada e ele disse:

- Vamos!  

- Mas esse é o carro que quase me atropelou há tempos atrás!

- Mas tu estavas bem protegido. Não foste puxado para trás, na hora certa? Nós estamos sempre atentos…

- A mulher…

Ele riu e abriu a porta. Eu segui meu instinto e entrei, com ele, no carro, que partiu imediatamente dali. Sentado no banco de trás e com os olhos no motorista, eu ainda me sentia meio atordoado pelo que acabara de ouvir... e de ver...

***