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sábado, 15 de dezembro de 2018

Obliviar (Parte 3: Sonho)



O repetido som de algo metálico batendo nas paredes acordou-o de um sobressalto. Estava escuro, mas olhando para cima, podia-se ver uma fenda de luz, longe ao topo. O rapaz passou as mãos pelas roupas, tentando limpar-se e, talvez, perceber se ainda estava mesmo vivo e inteiro. Seus joelhos e os dedos estavam muito doridos. Ele estava vivo. Os mortos não sentem dor. Ele quase riu daquele pensamento, mas na situação em que estava, não fazia muito sentido sorrir. 

O som voltou, repetidamente, algumas vezes. Talvez fosse seu amigo a tentar resgatá-lo daquele buraco. 

- Ei. 

Ele gritou. Sua voz parecia estranha. O eco respondeu. 

- Ei. Ei. Ei… 

Ele sussurrou, para si mesmo. 

- Estou ferrado! 

- Ei. 

Ele olhou para cima. Alguma coisa estava pendurada e balançando de um lado para o outro, batendo contra a parede, alguns metros acima de sua cabeça. 

- Estou bem. Podes baixar mais um pouco? 

- A corda já está no máximo. Podes tentar subir até o gancho? 

- Posso tentar. A terra está muito seca e solta. 

- Tenta. Tenho o Jeep aqui. Posso-te puxar para cima se alcançares o gancho. 

Ele tentou olhar à volta, naquela escuridão. Ao ver o pedaço de metal, que era antes o cano, ele resolver usá-lo para cavar degraus na parede e tentar subir até onde o gancho alcançava. Ia levar algum tempo, mas era o que podia fazer. 

Depois de cerca de uma hora, ele, finalmente, alcançou o velho gancho de metal e gritou. 

- Já está! Pode puxar! 

Ele estava cansado e dolorido, mas o Jeep faria o resto. 

- Segura firme, que eu vou puxar. 

E foi o que ele fez, apesar da dor e da dificuldade em manter-se agarrado ao seu salvador. Seu corpo foi arrastado e pendurado, batendo contra a parede da ravina algumas vezes, mas ele manteve-se firme até chegar ao topo, onde o amigo puxou-o para fora, pela roupas e arrastou-o para longe da borda. 

Num ímpeto de alegria e excitação, o rapaz deixou escapar um imprecativo. 

- Putaquepariu! Pensei que havia-te perdido de vez. Tu estavas tão quieto. 

- Acho que desmaiei. 

O amigo riu e deu-lhe um abraço desajeitado. 

- Que bom que estás de volta! 

- Vamos sair daqui o quanto antes… para nunca mais voltar. 

- Vamos! Eu te ajudo a levantar. 

Eles entraram no veículo e começaram a descer a montanha, na direção do rio. O rapaz de óculos estava todo coberto de terra, poeira e havia sangue em alguns pontos. Ele tirou a camiseta e tentou bater a poeira das roupas e do corpo com ela. 

- Preciso de um duche, urgentemente. Ou mais de um. 

- Com certeza. Vamos parar no rio e tentar limpar um pouco. Depois vamos direto para casa. Chega desta loucura, de uma vez por todas. Tens que ultrapassar isso, amigo, para o teu próprio bem. 

- Eu sei. Eu gostaria somente de deitar minha cabeça no travesseiro e esquecer de tudo que ainda estas recordações tão vivas, à minha memória, mas não é tão simples… 

- Eu sei, amigo, eu sei. 

*** 

- É possível enviar uma mensagem ao futuro? Tu lembras de algo que ainda esteja lá e que pertença à esta era de agora? 

- Não tenho certeza. É muito tempo e, a menos que seja um marco importante, não poderia ter sobrevivido o passar dos tempos. 

- Pensa nisso! Se houver algo, nós temos que tentar. 

- Por que é tão importante assim? 

- Porque é. Já ouviste falar de cápsula do tempo? Tu também poder-te-ias beneficiar de uma. Pensa nisso. 

- Eu sei do que falas. Mas eu não vivi lá tempo suficiente para ver muitas coisas ou lugares. Talvez... 

- O quê? 

- Talvez algo possa haver algo… 

- Vale a pena, não vale? 

- Talvez. 

- Achas que podemos voltar no tempo? 

- Se pudermos, pode ser uma hipótese muito vaga. 

- Mas tem de haver uma saída. Sei que tem! 

- Isso é loucura. Tu tens que parar com isso. 

- Sabes que isso nunca vai acontecer. 

- Eu sei. Mas pensando bem, há uma coisa que eu trouxe comigo, do futuro. Embora seja o oposto do que devia ser, pode funcionar, se tentarmos. 

- E o que é? 

- Isso… 

- Mas isso é só… 

*** 

Ele acordou no meio da noite. Um sonho. Aquele havia sido um sonho muito estranho. 

- E se for, mesmo, verdade? Seria possível? Oh, meu Deus! Acho que estou ficando louco. Será que ele sabe mais do que diz e está com medo de contar a verdade? Por qual razão? 

O rapaz levantou-se e foi até a cozinha. Sua cabeça estava um turbilhão confuso de emoções contraditórias e diferentes, todas misturadas num novelo só. 

- Eu já devia ter esquecido tudo isso. Por que é que eu fico sempre a reviver aquela situação, o tempo todo? É uma coisa tão ultrapassada… tão morta! 

Tomou um largo gole de água fresca. 

- Mas, e se ele… 

Ele se perguntou se um sonho poderia ser assim revelador, ou se era apenas uma ilusão criada por sua mente, para compensar as perdas e o desejo de ultrapassar a nostalgia e a dor. 

Ele falou baixinho, para si mesmo. 

- Gostaria que o meu sonho fosse realidade. Far-me-ia sentir tão melhor e mais confortável… 

- O que aconteceu? 

O rapaz virou-se. Seu amigo estava de pé, na soleira da porta da cozinha. Teria ele ouvido seu pensamento dito em voz alta? 

- Tive um sonho e não consigo voltar a dormir. 

- Um sonho ruim? 

Ele inalou o ar, devagar e profundamente, num longo suspiro. O amigo percebeu, logo, o que estava acontecendo. Aquilo ainda não estava ultrapassado. Ele percebeu o olhar pesado e triste do amigo. 

Precisava fazer algo, o quanto antes… 

- Vamos! 

- Para onde? 

- Se a chave para fazer as pazes com o passado, está no futuro, somente uma pessoa nos pode ajudar! 

***

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Homens do Mar (Parte 3)


Deitado, em silêncio, no sofá da sala e a olhar, fixamente, para um ponto inexistente no teto, o rapaz tentava organizar os pensamentos, depois de tudo o que já vira, ouvira e, obviamente, lera. Apesar da quietude da noite, sua cabeça estava a trabalhar ruidosamente, como os dentes de engrenagens secas e enferrujadas, a ranger uns contra os outros, num campo fértil em ideias conflituantes. Era bastante tarde, mas ele não conseguia dormir, por mais que tentasse.
Segundo constava no relatório da Polícia, uma testemunha vira-o ser assaltado, espancado e jogado dentro de um carro, que arrancou em alta velocidade, a muitas centenas de quilômetros dali. O que acontecera depois era, ainda, uma incógnita.
Ele tentava lembrar de algo, mas aquele relatório e aquela informação, nele contida, não batia muito dentro de sua mente, fazendo com que tudo parecesse muito surreal, para ser verdade. Apesar de estar com o pensamento assim, tão inquieto e de tentar resgatar qualquer coisa que pudesse, de sua memória de longo prazo, entretanto, tudo o que ele conseguia era imaginar alternativas… possibilidades, apenas… do que acontecera, mas sem quaisquer fundamentos. O fino e frágil fio da memória havia-se rompido em algum ponto e, inexplicavelmente, ele não conseguia encontrar as partes, para juntá-las novamente.
Na verdade, ele nem sabia quem era. Podia ser tanta coisa… tanto boa, quanto má. Podia ter sido uma vítima ou ter tido muito azar. Podia ter entrado em confronto com alguém mais forte que ele. Podia ter sido, realmente, atacado por assaltantes. Podia não ser nada daquilo, por mais bizarro que pudesse ser…
O cansaço e o esforço infrutífero fizeram-no, finalmente, adormecer e sonhar…
***
No único quarto da pequena e modesta habitação, construída à beira da praia, o pescador rolava de um lado para o outro em sua simples e antiga cama de madeira escura e resistente, sem conseguir pregar sono. Sua mente também estava perturbada, especialmente depois da conversa mais informal, que tiveram com o doutor. A investigação continuava, baseada no relatório emitido pela Polícia, mas ele tinha um pressentimento de que algo não estava certo. Como padrão, não costumava confiar na sua intuição, mas daquela vez, sentia algo muito forte e não podia deixar de ouvir aquela voz na sua cabeça, a dizer para vasculhar os factos mais a fundo e não confiar piamente em tudo que lera.
Claro que um testemunho era melhor que nada, mas ele preferia contar com o que seu hóspede conseguisse lembrar, em seu próprio tempo, para certificar-se que não estavam enganados. Aquela situação estava cada vez mais angustiante.
Ele havia desenvolvido uma grande afeição pelo rapaz e, descobrir a verdade, bem como recobrar sua memória, de uma vez por todas, tornaram-se suas prioridades. Ele sentia que o mais provável que acontecesse, assim que estivesse recuperado, era que o outro voltasse a viver sua própria vida e deixasse a ilha, talvez para sempre e, aquela quase certeza, também, o afligia. 
Mas, ele tinha que pensar com a razão e não com o coração. Por mais tolo que pudesse parecer, porém, avaliar com o coração era exatamente o que ele vinha fazendo, ultimamente, cada vez que ficava sozinho, com seus próprios pensamentos. De esquivo pescador com, somente, a quase impercetível companhia de seu velho e silencioso amigo felino, ele agora tinha um bem-vindo parceiro, tanto para conversar, quanto para ajudá-lo no trabalho e aquilo parecia divertir a ambos. Embora gostasse da assistência do rapaz, não podia ser egoísta e pensar no que ele gostava ou queria para si, somente. Sentia que ia perder seu camarada, mais cedo ou mais tarde, assim que as coisas voltassem ao seu normal. Mas não podia deixar de desejar que mantivessem a amizade, pelo menos por algum tempo.
Como tudo na vida, a distância iria, invariavelmente, arrefecer aquela relação e os afastar, aos poucos, até que seus contactos desaparecessem de vez. Admitia que iria sentir muita falta do rapaz. Aquele devia ter sua vida e, talvez, uma namorada, uma família e possivelmente, até, um cão ou dois.
Ele, por sua vez, tinha somente seu casebre, seu gato e seu velho barco de pesca... e, absolutamente, nenhuma outra vida para a qual pudesse voltar. Decidira seu destino e tinha que viver com aquilo. Aprendera a viver com muito pouco e de mais não necessitava. Vivia apenas um dia após o outro, sem pensar em um futuro muito longínquo.
Se aquela vidinha era-lhe suficiente, ele já não tinha mais tanta certeza. Sabia somente que, até conhecer o inquilino, que dormia profundamente no sofá da sala, ele havia abdicado de muitas ambições e que não almejava muito mais que aquilo que presentemente possuía.
Agora queria saber mais do outro, vê-lo vencer na vida, testemunhar seu sucesso e, talvez, conhecer sua namorada, vê-lo casar e ter filhos de cabelos rebeldes como do pai. Talvez até pudesse participar de alguma atividade com eles, como um caro e bem-vindo amigo…
Que bobagem! Ele era apenas um velho casca grossa e sem nenhuma relação com o rapaz. Não adiantava iludir-se e achar que poderia ter, no futuro, alguma parte na vida dele.
Havia mudado tanto assim naqueles últimos dias? Um incidente daqueles não devia mexer tanto com sua rotina e sua vida. Era melhor enfrentar a dura realidade: ele iria, em breve, voltar a ser aquele homem solitário, carrancudo e distante, com tão poucas expectativas em relação ao seu próprio futuro.
O homem escarneceu de si mesmo. Estava ficando velho e piegas. Aquele coração ressecado e endurecido não deveria ter-se deixado amolecer tanto, em tão poucas semanas Esteve tão acostumado com sua velha amiga solidão, que esquecera os prazeres de uma boa companhia. Agora, sentia - ou melhor, ressentia – ter que voltar a ficar sozinho, quando a presença do outro, embora tão recente em sua rotina, trouxera mais cor à sua própria existência…
Sentiu-se triste, de repente. Estava cansado de pensar. Na verdade, estava cansado de muita coisa… Fechou os olhos, que começavam a ficar, por aquilo que considerava uma tola razão, tão húmidos quanto as delicadas pétalas das flores, que amanhecem róscidas de orvalho, nas manhãs de outono. Adormeceu… e logo começou a sonhar…
***
- A água está tão boa… Vem ter comigo. 
- Tu és louco! Está frio!
- Não está nada frio. Está bom… Vem.
 O rapaz nadava, tranquilamente, à volta do barco, divertindo-se a desafiar a namorada a mergulhar e nadar com ele, naquele imenso e quieto oceano. Embora o sol estivesse alto, sabia que a temperatura da água estava fresca demais para ela. Para ele, entretanto, estava perfeita. Ela não caiu na conversa dele. Apenas acenou-lhe, jogou-lhe um colchão insuflável e os óculos de sol e deitou-se sobre uma toalha, no convés, a tomar sol. Ele aproveitou e deitou-se no colchão, que flutuava serenamente, entre a intensidade do azul quase cobalto do céu e do verde-esmeralda do oceano, deixando-se levar pelo agradável balanço das ondas e com o pensamento a vagar muito longe dali. Sentiu um peso nas pálpebras e fechou os olhos, adormecendo logo em seguida.
De repente, aquele balanço confortável de seu sono pareceu mudar para um estado mais agitado e violento. O rapaz virou-se, involuntariamente, perdeu o equilíbrio e caiu ao mar. O choque com a água fez com que acordasse totalmente e em estado de confusão total. Ele sentiu que afundava na água fria e salgada do oceano e que seu fôlego fugia-lhe rapidamente. Tentou bater os braços e nadar, mas o movimento das ondas era muito violento. Ele engolia água e sentia-se enfraquecer. Uma dor na parte de trás da cabeça causava-lhe desconforto e ao passar os dedos, viu que estava a sangrar. Ele tentou manter-se na superfície, mas o esforço era muito grande. Sabia que se ficasse com o rosto na água, ia afogar-se, por isso tentou ficar de costas. A água fria ajudaria a aliviar a dor na cabeça. Ele fechou os olhos e deixou-se levar por uns minutos, esforçando-se por boiar, mas as ondas eram cruéis. Uma delas passou por cima dele e, engolindo água, sentiu-se afundar. Ele debateu-se, mas parecia em vão. Seus pulmões estavam inundados, seu corpo cansado e ele sentiu que as forças faltavam-lhe. Aceitou, finalmente, seu destino e deixou-se submergir, lentamente…
Pensou, enquanto afundava, que era muito jovem para morrer… O ar faltou-lhe de vez. Era a morte a envolver-lhe, num frio abraço, com mais afeição que ele esperava. O rapaz ainda pensou, antes de deixar-se desfalecer, que a ideia que tinha de morte era de uma agonia muito maior que aquela…
Um clarão acendeu-se por cima dele, num repente, fazendo-o crer que a lenda popular de que havia uma luz, que todos falavam e que ele nunca acreditou, quando se passa da vida para a morte, era mesmo verdadeira. Aquela luz, tão intensa e muito forte, bateu, em cheio, sobre seus olhos. Naquele momento, ele sentiu uma paz enorme e confortavelmente morna...
Abriu os olhos e viu, entre os raios de sol que entravam pela janela da sala, a familiar silhueta do gato malhado, sentado tranquilamente sobre o descanso da esquadria de madeira pintada de um já-fora-verde-musgo-algum-dia e que agora estava muito desbotada. O animalzinho olhava para fora, aproveitando o sol da manhã, que começava a elevar-se horizonte acima, num azul muito limpo e intenso, como somente o céu de inverno podia ser. Aquele ia ser um dia bonito, afinal… e, também, bastante frio.
O rapaz percebeu que havia tido, apenas, um sonho bastante vívido e pormenorizado, afinal. Sorriu, levantou-se, vestiu-se rapidamente e foi para a cozinha, seguido pelo gato, que esfregava-se em suas pernas, quase fazendo-o perder o equilíbrio, na sua faina de ganhar algum afago ou comida.
***
O homem levantou-se, como de costume e ao passar pela sala, não viu o rapaz deitado no sofá. Estranhou que a porta da varanda estivesse destrancada. Intrigado, vestiu um casaco e saiu. O rapaz estava a alguns metros da margem, caminhando lentamente, cada vez mais para dentro do mar. Ele ficou a observar, por uns instantes, o que acontecia. Apesar da temperatura da água, ele avançava, como se fosse alto verão. Não olhava para trás, nem hesitava. Parecia determinado a algo, que o outro não percebeu, a princípio. Prosseguiu, até onde a água batia-lhe, à altura do peito, deu mais alguns passos e submergiu, em silêncio.
Uma má sensação percorreu a espinha do pescador. O instinto gritou-lhe, mais alto que a razão, dentro de si. Ele livrou-se do casaco, tirou a camisa e os calçados e atirou-se ao mar. A adrenalina, que corria-lhe intensamente pelo corpo, não permitia que sentisse o frio a enrijecer-lhe os músculos. Sem conseguir avistar o rapaz, mergulhou, à procura do corpo, nas águas geladas do oceano. Viu uma sombra à frente, parecendo ser o corpo a afundar e nadou naquela direção, emergindo para tomar fôlego e mergulhando novamente, de modo a resgatar seu protegido.
O homem não pensava; apenas agia, movido pelo desespero e pelo medo de perder o amigo, para um inimigo cujas armas desconhecia completamente. Ele aproximou-se e tentou alcançar os braços do outro, que estavam esticados para cima, já sem movimento algum. Ele fechou os dedos à volta dos pulsos do outro e puxou-o para cima, com energia, para que emergisse, facilitando o resgate e permitindo-lhe, também, encher os pulmões de ar. Ainda deu um impulso no corpo, enquanto via-o subir, antes de alcançar a superfície da água.
Ao emergir, passou o braço à volta do peito do rapaz, que estava inconsciente, mantendo a boca e o nariz acima da linha da água. Ele aprumou-se e começou a nadar, arrastando-o para a praia, quase sem dificuldade e deitando-o, de costas, na areia, iniciando a massagem cardíaca, logo em seguida, na tentativa desesperada de trazê-lo de volta à vida.
- Por que fizeste isso? Onde é que estavas com a cabeça?
O homem não compreendia a atitude descabeçada do rapaz... E agora não conseguia fazê-lo respirar e despertar do estado inconsciente. Segurou-lhe o nariz, abriu-lhe a boca e soprou ar para dentro, voltando a massajar o peito do rapaz.
- Vamos lá! Vamos lá! Acorda, por favor!
Repetiu o procedimento, desta vez, soprando com mais força. Ao apertar-lhe o peito, com as duas mãos, percebeu uma espécie de convulsão e o rapaz tossiu, expelindo a água que havia engolido. O homem sacudiu-o e viu que ele abriu os olhos, confuso, como se não soubesse o que acabara de acontecer.
O pescador levantou-o, abraçando-o e, sem dizer nada, simplesmente chorou, sentindo um misto de alívio e alegria.  Um pouco abaixo da linha do peito, uma estranha pontada de dor sinalizou que algo estava errado.
Fechou os olhos e afrouxou o abraço, sentindo-se cair, numa espécie de desmaio. O esforço que fizera, até aquele momento, talvez houvesse sido demasiado para ele. A pontada ficou mais perfurante e pareceu mover-se com uma pressão a subir-lhe o peito.
Uma sensação fria na ponta do nariz e um leve e contínuo ronco, fê-lo abrir os olhos e deparar com o gato a mirar-lhe nos olhos e pressionar-lhe uma unha na altura do peito. Deu uma risada e levantou-se, percebendo que havia tido um sonho absolutamente invulgar.
***
 - Tive um sonho muito estranho e detalhado.
- Por isso estás levantado tão cedo?
- Já não é tão cedo assim. É quase hora de sairmos para o mar. Já preparei o café…
- Também tive um sonho pouco comum. Acho que ficamos impressionados pelo relatório que o médico nos trouxe…
- Provavelmente…
- Queres falar sobre isso?
- Não. Não, ainda…
***
Quando voltaram da lida matutina, numa ensolarada quinta-feira, algumas semanas depois, notaram um movimento diferente na rotina do cais. Havia um burburinho maior que nos dias normais. A matrona vinha pelo madeirame, com seus passos pesados e sua face rosada, castigada pelo sol e vento do inverno. Ao aproximar-se dos dois, disse-lhes, meio ofegante:
- Ainda bem que chegaram. O doutor quer vê-los imediatamente.
- Aconteceu alguma coisa?
- O doutor disse para trazê-los com urgência. Não me perguntem mais do que eu sei…
Mas eles já a conheciam e perceberam que ela evitava olhar-lhes diretamente. Escondia algo, com certeza, mas havia sido instruída para não dizer-lhes nada, além do necessário. Os dois homens trocaram olhares preocupados e apressaram o passo, atrás da esbaforida mulher, na direção do consultório, no pequeno Posto de Saúde da ilhota.
Quando chegaram, foram recebidos pelo médico, que estava acompanhado de um desconhecido, vestido de maneira muito formal para a rotina insular. O visitante cumprimentou-os com um firme aperto de mãos e, concentrando sua atenção no rapaz, perguntou-lhe:
- Sabes quem eu sou?
- Não. Não sei. Deveria?
O homem sorriu, de uma maneira estranha. O rapaz e o pescador tentaram esconder a preocupação que passou-lhes pelas faces, quando entreolharam-se.
O estranho limpou a garganta, com um típico ‘hahn-hahn’ e começou a falar…

 ***

quarta-feira, 10 de abril de 2013

A Visita


Eu tinha a cabeça recostada ao grande travesseiro que jazia, desalinhado, na cabeceira da cama. Meus olhos estavam cerrados, mas eu não havia adormecido ainda. Havia um leve perfume de alfazema no ar.

Na taciturna penumbra do quarto, minha intuição alertou-me que não estava sozinho. Foi como se a atmosfera à minha volta houvesse mudado. Senti sua forte presença, muito próxima de mim. Sabia, com uma certeza absoluta, que ela estava ali e que só poderia abrir meus olhos se tivesse permissão para tal. Por incrível que pareça, são esses instintos que sempre flutuam na minha cabeça, naqueles tipos de ocasiões. Eu não precisava de mais certeza que aquela.

Senti seu rosto repousar sobre minha cabeça, com suavidade… leve e carinhosamente... quase um toque de pluma. E ela disse, baixinho:

- Eu precisava vir…

Sem abrir os olhos, eu falei:

- Quero te ver.

Ela sussurrou, incerta:

- Mas eu estou diferente.

- Não tem importância, disse-lhe eu.

Ao que ela respondeu:

- Tenho medo.

- Eu também...

Minha afirmação era uma verdade incontestável. Minha razão receava que, ao abrir os olhos, um sentimento negativo assolasse meu espírito e o medo ou decepção a afastasse de mim.

Ela havia mantido seu silêncio, como se os meus temores fossem também os dela. Foi então que decidi que devia abrir meus olhos e enfrentar o que visse e viesse. Era necessário mais que coragem naquele momento – era preciso uma atitude arrojada, que derrubasse barreiras e juízos pré-concebidos…

Abri os olhos devagar.

Sua face realmente estava diferente, mas ela me olhava do mesmo jeito – aquela maneira meio triste, como se estivesse sentindo uma certa apreensão em relação à minha possível reacção. Os ossos da face pareceram-me mais acentuados e ela tinha aquela melancolia incerta no semblante… Minha mãe parecia mais jovem, todavia, que da última vez que a vira.

Toquei-lhe a face com delicadeza, como uma criança faria e vi que ela fechou os olhos ao meu contacto, como se aquele leve roçar de meus dedos sobre sua pele lhe fizesse algum bem. Foi então que eu chorei. Não por medo, nem por angústia… chorei por nostalgia, por sentir uma saudade enorme...

O relógio despertou-me, apagando de imediato meus pensamentos, chamando-me à realidade e à vida. Levantei-me de um salto e fui ao duche, entrando automaticamente na rotina diária.

Ela havia vindo a mim em um sonho, como não podia deixar de ser; um sonho cujos detalhes não lembrei imediatamente, ao despertar. Foi somente quando voltei ao quarto, para vestir-me, antes de sair para trabalhar, que as imagens vieram como num filme.

Foi como se acordasse, naquela hora, a memória de poucos minutos antes. Meu peito apertou-se, diante da tristeza gigantesca que me tomou os pensamentos. Daquela vez meus olhos inundaram com lágrimas incontroláveis e eu chorei mais… muito mais que no sonho. Sentado à beira da cama, enterrei o rosto nas mãos e me deixar levar por aquela emoção estranha, que misturava dor e saudade – uma saudade impossível de matar com uma viagem programada ou um telefonema de longa distância...

Como já era costume, Tiger entrou no quarto, mas ao ver-me soluçar, chegou-se, deu-me a tradicional cabeçada na perna e sentou-se a observar-me, quieto e com fixa atenção. Somente quando viu-me composto novamente, o astuto gato saiu do quarto… ainda em absoluto silêncio. Aquele respeito tácito fazia-me ter grande consideração pelo animalzinho que soube cativar-me tão bem e exercer tão marcante presença na minha vida.

Durante aquele dia, muitas vezes senti ondas de tristeza irem e virem, comprimindo-me o peito, incontrolável e inconsolavelmente. Por várias vezes tive de engolir, a seco, a vontade de chorar, para não parecer tolo, nem ter que explicar o inexplicável, para quem olhasse e percebesse o estado em que eu me encontrava.

Quando voltava para casa, vinha a pensar no que me acontecera durante o dia ou em coisas que me afectaram o humor, incidentes pessoais ou mesmo pensamentos aleatórios, engatilhados pela música que tocava no momento. Foi então que compreendi…

Em meu pequeno mundo, sua ausência ainda é sentida e um certo inconformismo diante do facto de não haver podido dizer-lhe adeus, propriamente, faz-me pensar, de vez em quando, nas últimas palavras que trocamos.

- A gente se fala na semana que vem…

Nem mais, nem menos. Entre nós existia aquela espécie de comunicação que sempre indicava continuidade. Quando ainda estava por perto, era a mim que ela esperava nos fins-de-semana para ir à farmácia, ou ao supermercado, ou ao shopping center comprar algo que necessitasse ou desejasse. Era o meu telefonema que ela aguardava sempre aos domingos, às 3:00h da tarde, estivesse no Brasil ou longe de lá.

No fundo, dizer que ia ligar-lhe na semana seguinte foi a melhor despedida que pude fazer. Era um simples “até breve”, que ficara entre nós… e agora ela vinha, em um sonho, apenas ver se tudo estava bem comigo… matar um pouco daquela saudade que ficou arranhando o peito… que gesto assustadoramente bonito!

- Até breve, então, mãe…