Deitado, em silêncio, no sofá da sala e a olhar,
fixamente, para um ponto inexistente no teto, o rapaz tentava organizar os
pensamentos, depois de tudo o que já vira, ouvira e, obviamente, lera. Apesar
da quietude da noite, sua cabeça estava a trabalhar ruidosamente, como os
dentes de engrenagens secas e enferrujadas, a ranger uns contra os outros, num
campo fértil em ideias conflituantes. Era bastante tarde, mas ele não conseguia
dormir, por mais que tentasse.
Segundo constava no relatório da Polícia, uma
testemunha vira-o ser assaltado, espancado e jogado dentro de um carro, que
arrancou em alta velocidade, a muitas centenas de quilômetros dali. O que
acontecera depois era, ainda, uma incógnita.
Ele tentava lembrar de algo, mas aquele relatório e
aquela informação, nele contida, não batia muito dentro de sua mente, fazendo
com que tudo parecesse muito surreal, para ser verdade. Apesar de estar com o
pensamento assim, tão inquieto e de tentar resgatar qualquer coisa que pudesse,
de sua memória de longo prazo, entretanto, tudo o que ele conseguia era
imaginar alternativas… possibilidades, apenas… do que acontecera, mas sem
quaisquer fundamentos. O fino e frágil fio da memória havia-se rompido em algum
ponto e, inexplicavelmente, ele não conseguia encontrar as partes, para
juntá-las novamente.
Na verdade, ele nem sabia quem era. Podia ser tanta
coisa… tanto boa, quanto má. Podia ter sido uma vítima ou ter tido muito azar.
Podia ter entrado em confronto com alguém mais forte que ele. Podia ter sido,
realmente, atacado por assaltantes. Podia não ser nada daquilo, por mais
bizarro que pudesse ser…
O cansaço e o esforço infrutífero fizeram-no,
finalmente, adormecer e sonhar…
***
No único quarto da pequena e modesta habitação,
construída à beira da praia, o pescador rolava de um lado para o outro em sua
simples e antiga cama de madeira escura e resistente, sem conseguir pregar
sono. Sua mente também estava perturbada, especialmente depois da conversa mais
informal, que tiveram com o doutor. A investigação continuava, baseada no
relatório emitido pela Polícia, mas ele tinha um pressentimento de que algo não
estava certo. Como padrão, não costumava confiar na sua intuição, mas daquela
vez, sentia algo muito forte e não podia deixar de ouvir aquela voz na sua
cabeça, a dizer para vasculhar os factos mais a fundo e não confiar piamente em
tudo que lera.
Claro que um testemunho era melhor que nada, mas ele
preferia contar com o que seu hóspede conseguisse lembrar, em seu próprio
tempo, para certificar-se que não estavam enganados. Aquela situação estava
cada vez mais angustiante.
Ele havia desenvolvido uma grande afeição pelo rapaz
e, descobrir a verdade, bem como recobrar sua memória, de uma vez por todas,
tornaram-se suas prioridades. Ele sentia que o mais provável que acontecesse,
assim que estivesse recuperado, era que o outro voltasse a viver sua própria
vida e deixasse a ilha, talvez para sempre e, aquela quase certeza, também, o
afligia.
Mas, ele tinha que pensar com a razão e não com o
coração. Por mais tolo que pudesse parecer, porém, avaliar com o coração era
exatamente o que ele vinha fazendo, ultimamente, cada vez que ficava sozinho,
com seus próprios pensamentos. De esquivo pescador com, somente, a quase
impercetível companhia de seu velho e silencioso amigo felino, ele agora tinha
um bem-vindo parceiro, tanto para conversar, quanto para ajudá-lo no trabalho e
aquilo parecia divertir a ambos. Embora gostasse da assistência do rapaz, não
podia ser egoísta e pensar no que ele gostava ou queria para si, somente.
Sentia que ia perder seu camarada, mais cedo ou mais tarde, assim que as coisas
voltassem ao seu normal. Mas não podia deixar de desejar que mantivessem a
amizade, pelo menos por algum tempo.
Como tudo na vida, a distância iria, invariavelmente,
arrefecer aquela relação e os afastar, aos poucos, até que seus contactos
desaparecessem de vez. Admitia que iria sentir muita falta do rapaz. Aquele
devia ter sua vida e, talvez, uma namorada, uma família e possivelmente, até,
um cão ou dois.
Ele, por sua vez, tinha somente seu casebre, seu gato
e seu velho barco de pesca... e, absolutamente, nenhuma outra vida para a qual
pudesse voltar. Decidira seu destino e tinha que viver com aquilo. Aprendera a
viver com muito pouco e de mais não necessitava. Vivia apenas um dia após o
outro, sem pensar em um futuro muito longínquo.
Se aquela vidinha era-lhe suficiente, ele já não tinha
mais tanta certeza. Sabia somente que, até conhecer o inquilino, que dormia
profundamente no sofá da sala, ele havia abdicado de muitas ambições e que não
almejava muito mais que aquilo que presentemente possuía.
Agora queria saber mais do outro, vê-lo vencer na
vida, testemunhar seu sucesso e, talvez, conhecer sua namorada, vê-lo casar e
ter filhos de cabelos rebeldes como do pai. Talvez até pudesse participar de
alguma atividade com eles, como um caro e bem-vindo amigo…
Que bobagem! Ele era apenas um velho casca grossa e
sem nenhuma relação com o rapaz. Não adiantava iludir-se e achar que poderia
ter, no futuro, alguma parte na vida dele.
Havia mudado tanto assim naqueles últimos dias? Um
incidente daqueles não devia mexer tanto com sua rotina e sua vida. Era melhor
enfrentar a dura realidade: ele iria, em breve, voltar a ser aquele homem
solitário, carrancudo e distante, com tão poucas expectativas em relação ao seu
próprio futuro.
O homem escarneceu de si mesmo. Estava ficando velho e
piegas. Aquele coração ressecado e endurecido não deveria ter-se deixado
amolecer tanto, em tão poucas semanas Esteve tão acostumado com sua velha amiga
solidão, que esquecera os prazeres de uma boa companhia. Agora, sentia - ou
melhor, ressentia – ter que voltar a ficar sozinho, quando a presença do outro,
embora tão recente em sua rotina, trouxera mais cor à sua própria existência…
Sentiu-se triste, de repente. Estava cansado de
pensar. Na verdade, estava cansado de muita coisa… Fechou os olhos, que
começavam a ficar, por aquilo que considerava uma tola razão, tão húmidos
quanto as delicadas pétalas das flores, que amanhecem róscidas de orvalho, nas
manhãs de outono. Adormeceu… e logo começou a sonhar…
***
- A água está tão boa… Vem ter comigo.
- Tu és louco! Está frio!
- Não está nada frio. Está bom… Vem.
O rapaz nadava,
tranquilamente, à volta do barco, divertindo-se a desafiar a namorada a
mergulhar e nadar com ele, naquele imenso e quieto oceano. Embora o sol estivesse
alto, sabia que a temperatura da água estava fresca demais para ela. Para ele,
entretanto, estava perfeita. Ela não caiu na conversa dele. Apenas acenou-lhe,
jogou-lhe um colchão insuflável e os óculos de sol e deitou-se sobre uma
toalha, no convés, a tomar sol. Ele aproveitou e deitou-se no colchão, que
flutuava serenamente, entre a intensidade do azul quase cobalto do céu e do
verde-esmeralda do oceano, deixando-se levar pelo agradável balanço das ondas e
com o pensamento a vagar muito longe dali. Sentiu um peso nas pálpebras e
fechou os olhos, adormecendo logo em seguida.
De repente, aquele balanço confortável de seu sono
pareceu mudar para um estado mais agitado e violento. O rapaz virou-se,
involuntariamente, perdeu o equilíbrio e caiu ao mar. O choque com a água fez
com que acordasse totalmente e em estado de confusão total. Ele sentiu que
afundava na água fria e salgada do oceano e que seu fôlego fugia-lhe
rapidamente. Tentou bater os braços e nadar, mas o movimento das ondas era
muito violento. Ele engolia água e sentia-se enfraquecer. Uma dor na parte de
trás da cabeça causava-lhe desconforto e ao passar os dedos, viu que estava a
sangrar. Ele tentou manter-se na superfície, mas o esforço era muito grande.
Sabia que se ficasse com o rosto na água, ia afogar-se, por isso tentou ficar
de costas. A água fria ajudaria a aliviar a dor na cabeça. Ele fechou os olhos
e deixou-se levar por uns minutos, esforçando-se por boiar, mas as ondas eram
cruéis. Uma delas passou por cima dele e, engolindo água, sentiu-se afundar.
Ele debateu-se, mas parecia em vão. Seus pulmões estavam inundados, seu corpo
cansado e ele sentiu que as forças faltavam-lhe. Aceitou, finalmente, seu
destino e deixou-se submergir, lentamente…
Pensou, enquanto afundava, que era muito jovem para
morrer… O ar faltou-lhe de vez. Era a morte a envolver-lhe, num frio abraço,
com mais afeição que ele esperava. O rapaz ainda pensou, antes de deixar-se
desfalecer, que a ideia que tinha de morte era de uma agonia muito maior que
aquela…
Um clarão acendeu-se por cima dele, num repente,
fazendo-o crer que a lenda popular de que havia uma luz, que todos falavam e
que ele nunca acreditou, quando se passa da vida para a morte, era mesmo
verdadeira. Aquela luz, tão intensa e muito forte, bateu, em cheio, sobre seus
olhos. Naquele momento, ele sentiu uma paz enorme e confortavelmente morna...
Abriu os olhos e viu, entre os raios de sol que
entravam pela janela da sala, a familiar silhueta do gato malhado, sentado
tranquilamente sobre o descanso da esquadria de madeira pintada de um já-fora-verde-musgo-algum-dia e que
agora estava muito desbotada. O animalzinho olhava para fora, aproveitando o
sol da manhã, que começava a elevar-se horizonte acima, num azul muito limpo e
intenso, como somente o céu de inverno podia ser. Aquele ia ser um dia bonito,
afinal… e, também, bastante frio.
O rapaz percebeu que havia tido, apenas, um sonho
bastante vívido e pormenorizado, afinal. Sorriu, levantou-se, vestiu-se
rapidamente e foi para a cozinha, seguido pelo gato, que esfregava-se em suas
pernas, quase fazendo-o perder o equilíbrio, na sua faina de ganhar algum afago
ou comida.
***
O homem levantou-se, como de costume e ao passar pela
sala, não viu o rapaz deitado no sofá. Estranhou que a porta da varanda
estivesse destrancada. Intrigado, vestiu um casaco e saiu. O rapaz estava a
alguns metros da margem, caminhando lentamente, cada vez mais para dentro do
mar. Ele ficou a observar, por uns instantes, o que acontecia. Apesar da
temperatura da água, ele avançava, como se fosse alto verão. Não olhava para
trás, nem hesitava. Parecia determinado a algo, que o outro não percebeu, a
princípio. Prosseguiu, até onde a água batia-lhe, à altura do peito, deu mais
alguns passos e submergiu, em silêncio.
Uma má sensação percorreu a espinha do pescador. O
instinto gritou-lhe, mais alto que a razão, dentro de si. Ele livrou-se do
casaco, tirou a camisa e os calçados e atirou-se ao mar. A adrenalina, que
corria-lhe intensamente pelo corpo, não permitia que sentisse o frio a
enrijecer-lhe os músculos. Sem conseguir avistar o rapaz, mergulhou, à procura
do corpo, nas águas geladas do oceano. Viu uma sombra à frente, parecendo ser o
corpo a afundar e nadou naquela direção, emergindo para tomar fôlego e
mergulhando novamente, de modo a resgatar seu protegido.
O homem não pensava; apenas agia, movido pelo
desespero e pelo medo de perder o amigo, para um inimigo cujas armas
desconhecia completamente. Ele aproximou-se e tentou alcançar os braços do
outro, que estavam esticados para cima, já sem movimento algum. Ele fechou os
dedos à volta dos pulsos do outro e puxou-o para cima, com energia, para que
emergisse, facilitando o resgate e permitindo-lhe, também, encher os pulmões de
ar. Ainda deu um impulso no corpo, enquanto via-o subir, antes de alcançar a
superfície da água.
Ao emergir, passou o braço à volta do peito do rapaz,
que estava inconsciente, mantendo a boca e o nariz acima da linha da água. Ele
aprumou-se e começou a nadar, arrastando-o para a praia, quase sem dificuldade
e deitando-o, de costas, na areia, iniciando a massagem cardíaca, logo em
seguida, na tentativa desesperada de trazê-lo de volta à vida.
- Por que fizeste isso? Onde é que estavas com a cabeça?
O homem não compreendia a atitude descabeçada do
rapaz... E agora não conseguia fazê-lo respirar e despertar do estado
inconsciente. Segurou-lhe o nariz, abriu-lhe a boca e soprou ar para dentro,
voltando a massajar o peito do rapaz.
- Vamos lá! Vamos lá! Acorda, por favor!
Repetiu o procedimento, desta vez, soprando com mais
força. Ao apertar-lhe o peito, com as duas mãos, percebeu uma espécie de
convulsão e o rapaz tossiu, expelindo a água que havia engolido. O homem
sacudiu-o e viu que ele abriu os olhos, confuso, como se não soubesse o que
acabara de acontecer.
O pescador levantou-o, abraçando-o e, sem dizer nada, simplesmente
chorou, sentindo um misto de alívio e alegria.
Um pouco abaixo da linha do peito, uma estranha pontada de dor sinalizou
que algo estava errado.
Fechou os olhos e afrouxou o abraço, sentindo-se cair,
numa espécie de desmaio. O esforço que fizera, até aquele momento, talvez
houvesse sido demasiado para ele. A pontada ficou mais perfurante e pareceu
mover-se com uma pressão a subir-lhe o peito.
Uma sensação fria na ponta do nariz e um leve e
contínuo ronco, fê-lo abrir os olhos e deparar com o gato a mirar-lhe nos olhos
e pressionar-lhe uma unha na altura do peito. Deu uma risada e levantou-se,
percebendo que havia tido um sonho absolutamente invulgar.
***
- Tive um sonho muito estranho e
detalhado.
- Por isso estás levantado tão cedo?
- Já não é tão cedo assim. É quase hora de sairmos para o mar. Já preparei
o café…
- Também tive um sonho pouco comum. Acho que ficamos impressionados pelo
relatório que o médico nos trouxe…
- Provavelmente…
- Queres falar sobre isso?
- Não. Não, ainda…
***
Quando voltaram da lida matutina, numa ensolarada
quinta-feira, algumas semanas depois, notaram um movimento diferente na rotina
do cais. Havia um burburinho maior que nos dias normais. A matrona vinha pelo
madeirame, com seus passos pesados e sua face rosada, castigada pelo sol e
vento do inverno. Ao aproximar-se dos dois, disse-lhes, meio ofegante:
- Ainda bem que chegaram. O doutor quer vê-los imediatamente.
- Aconteceu alguma coisa?
- O doutor disse para trazê-los com urgência. Não me perguntem mais do que
eu sei…
Mas eles já a conheciam e perceberam que ela evitava
olhar-lhes diretamente. Escondia algo, com certeza, mas havia sido instruída
para não dizer-lhes nada, além do necessário. Os dois homens trocaram olhares preocupados e
apressaram o passo, atrás da esbaforida mulher, na direção do consultório, no
pequeno Posto de Saúde da ilhota.
Quando chegaram, foram recebidos pelo médico, que
estava acompanhado de um desconhecido, vestido de maneira muito formal para a
rotina insular. O
visitante cumprimentou-os com um firme aperto de mãos e, concentrando sua
atenção no rapaz, perguntou-lhe:
- Sabes quem eu sou?
- Não. Não sei. Deveria?
O homem sorriu, de uma maneira estranha. O rapaz e o
pescador tentaram esconder a preocupação que passou-lhes pelas faces, quando
entreolharam-se.
O estranho limpou a garganta, com um típico ‘hahn-hahn’ e começou a falar…
***