Uma estrela e dois pequenos
planetas podiam ser vistos no céu, pela janela da Sala do Conselho, no Edifício
Principal. Um homem sozinho contempla, sério e pensativo, a imensa escuridão,
decorada com minúsculos pontículos de luz, brilhando no lado de fora, alheios
ao seu pesar.
“Este mundo já está condenado
pela mesmice e pela rotina. Vive-se por tempo longo demais, mas não é
necessariamente uma existência com prazer. Não há um real objectivo em viver
longamente, preservar a espécie, ou até mesmo o planeta. Se houvesse um
acidente que destruísse esta civilização, que diferença o universo iria sentir?
Qual a diferença que o passado poderia fazer? E se o tal acidente for em algum
lugar do passado, antes mesmo da grande destruição? Será que fará mesmo alguma
diferença?
Aqui, neste momento, não há nada que possa nos dar qualquer razão para
orgulho ou para querermos viver. A existência é vazia. É tudo muito cinza e sem
beleza. Não existem sentimentos. Para que manter essa coisa a funcionar?”
***
- Chega de ser mais um experimento. Chega de servir de cobaia para a
criação de uma vacina estéril. Eu já não quero ser mudado. É isso que me faz um
ser único, no meio desta multidão de iguais.
- Mas a mutação está bastante acelerada. Tuas costas estão cobertas destas
manchas negras e brancas, que já se espalham pelo resto do corpo e tuas defesas
estão em baixa. Não vais resistir muito tempo.
- É uma opção minha.
- Tu não tens esta opção, pelas regras… Nenhum clone tem… nestas
circunstâncias…
- Eu sou David, o Décimo-Terceiro… Se as coisas tivessem sido
diferentes, eu seria escolhido para ser o próximo Supremo, por ser mais forte e
resistente, ou para viajar pelo Universo. Agora sou apenas uma aberração. É
melhor deixar que a vida siga seu curso normal. … e vou viver com isso…
enquanto for possível…
- O que pode ser por muito pouco tempo, agora.
- Que seja. A vacina não funciona, de qualquer maneira.
***
- Nós vivemos num complexo de
planetas, que gira em torno de uma pequena estrela, que possui luz natural
limitada, mas mantém o sistema a funcionar equilibradamente. A órbita do
planeta em torno de si mesmo ocorre por um período menos longo que na terra,
por razões óbvias. O tempo passou, então, a ter um conceito diferente. Como o
dia tem menos horas, a contagem dos anos é, portanto, diferente. O controlo da
vida neste sistema de planetas pertence a um grupo de cientistas, que formam
uma elite intelectual.
- Por que usam a contagem dos anos
como A.D.?
- Porque os fundadores quiseram
homenagear a Terra, o planeta de onde vieram, originalmente.
- E para que servem os clones, afinal?
- Este pequeno
planeta fica ao centro de um grupo de outros planetóides de menor tamanho, cada
qual com sua própria particularidade. O que o faz habitável é a característica única
e pouco comum de possuir oxigénio, embora em quantidade muito menor que no
planeta Terra. O elemento, vital para vida humana, é tratado, filtrado e usado
dentro das estruturas protegidas, que chamamos de Estações. Esta característica
não é a única coisa que temos em comum com o nosso distante antecessor da outra
galáxia. Um manancial de líquido, com composição semelhante à da água, que corre
por rios subterrâneos, é colhido, reprocessado e transformado em água potável
e, então, disponibilizada aos habitantes, de forma natural. Mas estamos a
enfrentar um novo problema: o manancial é limitado e está escasseando
rapidamente. Equipas de pesquisa já foram enviadas em busca de alternativas,
pela galáxia, mas até agora, nada real. Estas pequenas equipas, são, na sua
maioria, compostas por clones seleccionados e treinados especialmente para isso.
Uma unidade robótica avançada acompanha a tripulação de cada nave que parte. No
momento, temos umas poucas, porque não conseguimos criar clones em quantidades suficientes.
- A clonagem é, na verdade, uma realidade e
é inevitável, sendo praticamente a única forma de reprodução, neste momento. O
processo é interrompido, a partir do momento em que verificamos que a
resistência do corpo a qualquer tipo de problemas, físicos ou mentais, está praticamente
garantida. Depois de aplicada a vacina, deixa-se que algumas características
amadureçam sozinhas, formando indivíduos diferentes, dentro dos casulos, como
crisálidas, nas incubadoras. Não usamos úteros humanos. Nem todos chegam ao fim
do processo e sobrevivem, porque a vacina é bastante agressiva, mas é
necessário que assim seja. Quando estão prontos, os mais fortes são seleccionados e reportados ao Supremo, que os inspecciona, juntamente com o
Conselho, para mandá-los para o Edifício Principal. O planeta é habitado por
uma raça única, que fala uma língua única. Os novos humanos são praticamente
desprovidos de pelos, tendo sua caixa craniana aumentado em tamanho e seus
corpos diminuído em proporção. Depois de bem treinados, farão parte das equipas seleccionadas pelo Conselho, para explorar a galáxia. Os outros, de uma linhagem
mais regular, porém resistente, são enviados para a produção de Oxigénio. A densidade
demográfica é mantida sob estrito controlo. Os nossos recursos são limitados,
por isso temos que usá-los com eficácia.
- Isso é incrível. E tudo começou com base na minha pesquisa, num
passado tão remoto…
O chefe dos cientistas riu, meio
sem graça. O homem parecia não ter plena consciência da importância que sua
pesquisa teve no desenvolver daquela raça, que representava, de uma forma ou de
outra, o futuro da humanidade. Não se podia condená-lo, afinal, levando-se em
consideração que mais de vinte e cinco séculos se haviam passado desde então.
- Sim, doutor. Tudo isso com base na sua preciosa pesquisa… num passado
remoto e num planeta um bocado diferente deste.
***
- Leona! Preciso que vocês venham até o laboratório imediatamente.
Aconteceu uma coisa muito estranha.
- Que coisa?
- Melhor virem ver… eu não sei o que dizer…
Ao chegarem constataram que o
laboratório estava vazio, exceto por uma Monarca, pousada na parede.
- Como isso veio parar aqui?
Leona riu.
- Eu não sei, ao certo, mas tenho uma ideia de onde possa ter vindo… Um
certo clone… que viajou ao passado e que se encantou com uma revoada de
borboletas…
***
- O surto está incontrolável. Os clones perecem muito rapidamente e a
linha já não dá conta de produzi-los, para suprir as necessidades, devido ao
período de incubação. A continuação da vida está condenada.
- Tive uma ideia. Ainda temos a Monarca connosco?
- Sim. Mas para que serve uma borboleta, agora?
- Foi como o estudo começou. Talvez tenhamos uma hipótese…. Vamos ter
que recomeçar o processo todo. Isolamos o ADN e produzimos uma nova vacina. A
original não funciona mesmo. Temos que começar do nada. Houve alguma coisa neste
meio tempo, que deixou de funcionar e não temos mais tempo para tentar reparar.
Temos que fazer tudo novo.
- Deixemos de tentar recuperar o irrecuperável e fazer tudo, do começo,
outra vez.
- OK. Mas pode levar muito tempo, até conseguirmos chegar ao ponto em
que estávamos, antes do incidente.
- Talvez. Pelo menos saberemos o que fazer…
***
O Supremo olhava para as manchas
negras e brancas a cobrir seu corpo magro e pálido. Elas pareciam cobertas de
uma densa camada de pelos, muito suaves ao toque. Sentiu uma pontada de dor na
cabeça. Sabia que suas defesas estavam comprometidas, por consequência da
anomalia e por já não tomar as vacinas.
Ele suspirou e olhou para o céu daquele
planeta desolado, tão insignificante, no meio do infindo Universo, tão pouco
conhecido, apesar de todas as evoluções, após o Caos Primeiro, e decidiu que estava
em tempo de tomar uma decisão radical.
“Não era isso que eu queria. Eles estão muito perto de chegar à uma solução.
Se desconfiarem de alguma coisa, vão-se voltar contra mim. Mas nunca vou deixar
que eles saibam o que eu fiz. Agora vou ter que dar um jeito, em definitivo,
nesta situação, antes que seja tarde demais.”
Programou o computador principal,
que comandava todas as unidades, para duas acções. A destruição era
absolutamente necessária. Concluiu o comando e sentou-se, relaxadamente, como
nunca havia feito, desde que se havia tornado o Supremo.
“Genocídio e suicídio. Fiz bem em sabotar a produção das vacinas, desde
que descobri que a anomalia podia ser uma grande oportunidade, para o extermínio
desta raça. Isso tudo vai parecer um acidente, mas para quem terei que explicar
algo, afinal? Não sobrará nada! Que grande plano!”
Ele fechou os olhos e esperou. Em
poucos segundos, o planeta implodia e, em seguida, explodia completamente, numa
sequência predeterminada, tonando-se uma imensa nuvem de detritos, já desprovida
de qualquer sinal de vida, viajando em alta velocidade pelo espaço, em todas as direcções.
Uma cápsula solitária vagava, à
deriva, não muito distante de onde o asteróide existia, poucos momentos antes.
Em seu interior, um tubo de metal trazia informações preciosas sobre uma raça
de humanóides, que viveu em um pequeno e árido planeta e que deixara de
existir. A cápsula é lançada, juntamente com os detritos do planeta destruído,
pelo vazio silencioso e escuro do espaço, sendo puxada para dentro de uma fenda
no meio do caos, em meio a um clarão e, a seguir, desaparecendo completamente.
***
Numa praia quase deserta, dois
rapazes caminhavam lado a lado, cada um com uma lata de cerveja na mão e conversando tranquilamente. Um clarão riscou o céu, vindo da frente deles,
chamando-lhes a atenção, especialmente porque o céu parecia limpo, estrelado e
sem previsão de chuva. O som de algo grande, caindo no mar, bem atrás de onde
vinham, fê-los parar e voltar.
O estranho objecto metálico boiava
na água salgada, balançando ao sabor das ondas, ainda fumegando.
Era um dia quente de Verão, no Anno Domini 2018.
***