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sexta-feira, 1 de maio de 2020

Dança Lenta



Uma dança lenta, com o Valete de Espadas, não estava, definitivamente, no cardápio. Eu decidi observá-lo de uma distância segura, para não ser queimado pelo fogo dele... ou por aquele que começou a arder, lentamente, no meu peito, quando o vi pela primeira vez.

Lá estava ele, de pé, por trás do pequeno grupo de convidados, olhando casualmente para mim. Eu cumprimentei a todos e caminhei até ele, com um sorriso no rosto e a mão estendida para um aperto firme. Olhei em seus olhos azul-esverdeados, por um breve momento, e me apresentei. Ele fez o mesmo.

Eu quase podia ouvir meus próprios pensamentos gritando, na minha cabeça e, até, tive medo de que ele notasse as evidências, tão claras nos meus olhos, ou conseguisse ler minha mente, de alguma forma.

Eu me perguntei se ele, algum dia, teria ciência do efeito que teve sobre mim, naquele exato momento. Pouco sabia eu do que passava em sua mente, quando ele me sorriu daquele jeito.

"Por favor, goste de mim".

Aquela primeira impressão fora bastante surpreendente, a meu ver.

***

- É bom estar aqui, assim. Me sinto tão em casa.

Ele me abraçou mais forte. Tinha minha cabeça recostada em seu peito e seus braços envolviam-me a parte superior do corpo. Suas pernas musculosas estavam enroscadas nas minhas, como se ele estivesse me segurando para que eu não caísse do estreito sofá. Estávamos ouvindo algumas das minhas músicas favoritas. A maioria delas ele estava, apenas, começando a conhecer...

“You say you had your heart broken
 What a stupid little thing to do…
 Make no mistake
 I'll do whatever it takes
 To get over these walls
 High up in the atmosphere
 If I could catapult my heart
…To where you are” …*
(*Catapult, by Jack Savoretti)

Quando a música terminou, ele se levantou e eu também. Tocou meu rosto, tão levemente, com as duas mãos, que senti como se fossem plumas caindo suavemente na minha pele nua.

Sorri, meio sem jeito. Ele me beijou e me abraçou, firmemente. Em seus braços, sentia uma proteção infinita e aquele foi um dos melhores sentimentos que tive na vida.

Eu dançava, lentamente, com o Valete de Espadas e gostava daquilo, com todo o meu corpo e alma. Tive a sensação de que ele sabia, exatamente, o que estava fazendo e isso me deixava extremamente feliz.

A sala estava quieta, as luzes baixas, mas continuamos dançando as músicas, que continuavam a tocar, silenciosamente, em nossas cabeças, por uma banda invisível... por um bom tempo... Senti o calor suave de nossas peles nuas, uma contra a outra… nossos corações a bater no mesmo ritmo.

Ele, então, pegou minha mão na sua e me conduziu...

***

Minha atenção estava totalmente voltada para como suas mãos pálidas tocavam minha pele, viajando pelo meu corpo, de maneira muito leve e calorosa.

- Adoro tuas mãos e o jeito que tu me tocas. És tão carinhoso.

- Adoro tocar em ti. Tua pele é tão macia.

- E nunca pensei que amaria alguém desse jeito...

- Então teu coração tem sido negligenciado, meu amor...

Houve uma dor repentina no meu peito. Eu me virei. Não conseguia me controlar. Fechei os olhos e deixei minhas lágrimas correrem, silenciosamente, quentes e livres. E elas queimavam, como lava. Meu corpo estremeceu um pouco.

Ele colocou os braços à minha volta e me puxou para perto dele. Seu queixo repousava no meu pescoço. Eu senti que ele cheirava meus cabelos. Senti seu corpo aquecendo o meu, enquanto soluçava, incontrolavelmente, em seu abraço forte.

***

Era uma tarde ensolarada de sábado. Fui dar um passeio na praia e sentei-me em silêncio, olhando o mar. Uma brisa fresca soprou contra meu rosto e cabelo. O céu estava tão azul que me fez lembrar dele e de seus olhos.

Perdi-me a olhar um ponto inexistente, ao longe. Minha mente vagueou no passado. Eu estremeci.

- Quanto tempo faz?

Eu me virei. Além de algumas gaivotas barulhentas, voando acima, não havia ninguém à vista. Eu pensei que minha imaginação estivesse brincando comigo.

- Há quanto tempo? Tu lembras?

Eu decidi responder em voz alta.

- Sabes muito bem há quanto tempo.

Lembrei-me do dia em que nos conhecemos, há longos anos no passado, desde o momento em que as portas deslizantes se abriram e vi seu sorriso acolhedor e o coração nas mãos, até o flagrante beijo de despedida que ele me deu, antes que eu entrasse na área restrita do aeroporto, a caminho de casa.

- Estou tão feliz que tua dor se tenha ido embora.

Não respondi, apenas me levantei e saí silenciosamente.

Lágrimas quentes insistiram em desfocar minha visão, enquanto o vento soprava mais frio, desta vez por todo o meu corpo...

***

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Azul




Se for Azul,

Que eu seja Céu!


sábado, 25 de outubro de 2014

Os Olhos da Tigresa (Parte 2 de 2)





O ar frio da manhã nevoenta não me foi impedimento para sair à rua. Eu precisava espairecer, sentir o vento no rosto, estar fora de casa, por umas horitas, pelo menos. Talvez a temperatura baixa do Inverno fizesse minha mente trabalhar em outro ritmo e pensar mais racionalmente. Eu estava cheio de dúvidas e as desconfianças torturavam-me a cada passo que dava, nas calçadas ainda enregeladas pelo orvalho da madrugada. Caminhei por minutos incontáveis, sem rumo certo. Meus pés doíam menos que minha cabeça. Eu queria desaparecer por uns instantes, deixar de pensar, parar de martirizar meu coração, mas o desejo tinha força menor que as minhas dúvidas, que insistiam em complicar-me a vida.

- E se eu estivesse certo? E se eu estivesse errado? Oh, meu Deus! Eu queria ter, pelo menos, alguma certeza e menos desconfiança…

Até aquele dia, nunca havia sido injusto, nem sentido ciúmes infundados ou desejos de vingança. Naquela caminhada, porém, todos estes sentimentos vieram povoar-me a cabeça, com a força de fortes invasores em terras férteis, mas incultivadas. Sentia desejos contraditórios de matar e morrer, a crescerem dentro de mim, com uma facilidade incomum. Eram monstros alimentados pelo ódio e pelo medo… e eles multiplicavam-se e cresciam, como uma colônia de parasitas dentro do meu cérebro. Senti calor, apesar do frio da rua. Desabotoei o casaco e arranquei o cachecol do pescoço. Devia estar febril. Precisava, urgentemente, de um café forte. Tinha que parar. Entrei num Café, na esquina e sentei-me encostado a uma grande janela, mas sem olhar para fora. Eu queria, pelo menos por um simples segundo, parar de pensar. Queria sumir do mundo…

- Que m…!

- Bom dia. Algo errado, senhor?

O empregado de mesa olhava-me com uma expressão de, ao mesmo tempo, curiosidade e preocupação. Provavelmente eu devo ter falado em voz alta, mas não tinha certeza.

- Ahn… Bom dia… Não… Nada errado. Apenas traga-me um café forte e quente, por favor.

Ele assentiu e saiu, com um sorrisinho estranho no canto da boca. Dei-me conta que eu estava sendo ridículo demais, não só pelo martírio mental a que me submetia, quanto por falar sozinho, em voz alta. Tinha que assentar os pés no chão e pensar com clareza. Briguei comigo mesmo e disse, baixinho, entre dentes, para não ser ouvido, daquela vez:

- Chega disso! Já tenho idade e experiência suficiente para agir como um adulto! Já passei por isso outras vezes e não há motivo para mais dramas que o estritamente desnecessário…

Tomei o café, levantei-me e saí. Estava resolvido a enfrentar o ar gelado da rua e a fria realidade.

Ao chegar de volta ao apartamento, vi que havia um bilhete depositado sobre a cômoda no pequeno hall de entrada. Li a mensagem mecanicamente e fui tomar banho, sem pensar muito. Era sexta-feira e ainda tinha um dia inteiro e mais o fim-de-semana, antes de voltar ao trabalho. Pretendia fazer minhas coisas, escrever, nem que fosse um desabafo qualquer e tentar desenhar e pintar. Sim. Havia decidido que pintar, pelo menos, não exigiria muito da minha capacidade de raciocínio e poderia relaxar-me um pouco. Resolvera deixar o acontecido em banho-maria, pelo menos até passar aquela angústia.

Tomei um longo duche, de modo a aquecer o corpo, depois ingeri um comprimido para dormir. Em pouco tempo estava na cama, a tentar recuperar o sono que perdera. Dormi até perto do meio-dia. Quando acordei, meu primeiro pensamento, como não podia deixar de ser, foi para o acontecido nas últimas horas. Levantei-me de um salto e dirigi-me à cozinha, preparar algo quente para comer. No caminho, apanhei o bilhete e levei-o comigo, lendo e relendo, incontáveis vezes, enquanto tomava uma sopa instantânea, que preparei em menos de oito minutos…

***

Dois dias depois do incidente recebi o primeiro contacto, via internet. Eu ainda estava magoado e inseguro, por isso não respondi com mais que uma fria educação, sem demonstrar muita afeição. Ela deve ter percebido, mas não questionou-me nada. Não discutimos o assunto e somente trocamos umas poucas palavras, polidas e politicamente corretas. Esperava que os próximos dias fizessem melhor efeito sobre minha teimosia, mas estava cada vez mais irritadiço e sem paciência para conversas, por isso, sempre respondia com polidez, mas com pouquíssimas palavras. Nossos contactos esfriaram e rarearam, com o passar dos dias. Ela havia-me dito que estava tão ocupada que só viria dentro de quatro semanas, aproximadamente. Não protestei, nem ofereci-me para visitá-la, entrementes. Apenas respondi-lhe com um seco ‘OK’.

No mesmo dia em que recebera aquela notícia, também recebi, por e-mail, uma mensagem de uma sala de chat num site de relacionamentos. Era, aparentemente, um convite de um conhecido meu. Não percebi que era uma mensagem automática e acedi ao site, fiz minha inscrição e resolvi fazer uma visita a alguns perfis, que pareceram-me mais interessantes. Vi que os perfis mais visitados eram os que tinham fotografias, por isso fiz o upload de uma foto minha e deixei-a lá, para ver o efeito que causaria. Quando voltei a aceder o site, por curiosidade, poucas horas depois, havia uma mensagem na caixa de entrada. Abri-a e não consegui deixar de dar uma sonora gargalhada. Era minha primeira risada, em semanas…

***

- Eu não posso acreditar que tu pensaste isso de mim.

- E o que é que tu querias que eu pensasse, afinal?

- Eu achei que estavas sendo compreensivo e me dando espaço e  tu me fazes isso? Tu sabias que eu estava ocupada com o meu trabalho e que precisava de envolvimento total… É minha arte, ‘for heaven’s sake’… É minha vida!

Ela misturava as linguagens, quando ficava nervosa e eu achava aquela característica simplesmente adorável. Olhei-a mudo, sem saber o que dizer. Ela odiava quando eu silenciava no meio de uma briga. Já tinha feito a minha quota de asneiras e não queria piorar o que já estava ruim demais. Mas para ela, como mulher, o meu silêncio era uma afronta.

Mirei aqueles olhos antes tão cheios de vida e serenidade, com um misto de culpa e de apreensão. O olhar cristalino e de um verde que sempre havia sido tão tocante, pelo menos para mim, agora só trazia uma tristeza imensa.

Senti uma consistente confusão instalar-se confortavelmente dentro da minha cabeça e visualizei-a, vestida de robe e calçando pantufas com formato de bichinho, sentada num sofá macio e confortável, na minha sala de visitas, a assistir minha desgraça, de camarote.

Não havia muito a dizer, já que era totalmente culpado de haver feito o filme completo na minha cabeça, de achar que estava certo ao procurar outra forma de relacionar-me, de pensar que estava sendo traído, de haver sido biltre e otário, ao mesmo tempo. Fui tolo ao julgar, sem ter certeza; ao trair, por achar que estava sendo traído; a deixar-me levar pela minha dúvida, sem questionar nada, sem ter certeza de nada. Eu havia-me deixado levar pela grande e promíscua fatia de hedonismo e leviandade que nasceu dentro de mim, no dia em que fui contactado pela personagem responsável por despertar, em mim, uma tola vaidade. Pensava que estava sendo esperto em fazer o que pensava que Liana fazia a mim, sem sentir culpa, nem pesar. Não era, porém, por qualquer sentimento de vingança… era apenas por uma carência afetiva, uma sensação de abandono, uma tristeza impotente, que só crescia com a dúvida e a impressão de ter sido trocado por outro.

Oh, Deus… e como eu estava errado… 

Ela desistiu de brigar, de importar-se, de tentar fazer-me sentir mais culpado que eu já sentia. Foi-se embora no mesmo dia que chegou, dizendo que voltava para buscar suas coisas num outro dia, quando estivesse mais calma, mais centrada, menos decepcionada e com menos raiva de mim. 

***

Aquele olhar, cristalino e distante, com uma distinta pincelada da verde e pálida tristeza, fitou-me pela última vez, da janela embaçada do trem. Plantado, sozinho, a olhar o vagão afastar-se, senti minha alma inundar-se com aquele sentimento de angústia e impotência que nos assola, quando o dantes improvável transforma-se no absolutamente possível; quando nos vemos por uma derradeira vez, numa despedida seca e quase impessoal. É triste perceber como os sentimentos mudam tanto, diante de uma grande mágoa.

Não sei porque, naquela ocasião, faltou-me coragem, vontade de quebrar barreiras, de jogar tudo para o alto, ou se simplesmente já não importava-me mais com o futuro daquela relação. Sei, apenas, que aquela última conversa ficara gravada a ferro em brasa na minha memória, por muito tempo, a latejar e a molestar-me.

- Eu tenho que ir sozinha. Será um partir para sempre, como morrer de vez. O tempo vai curar as feridas. A distância vai facilitar a recuperação. Mas eu, simplesmente, não consigo perdoar-te. Não tenho armas para lutar contra um inimigo cujo poder ultrapassa os meus e cujas armas eu desconheço totalmente. Essa impotência ressecou-me o coração e quebrou as correntes que nos mantinham ligados um ao outro, de uma vez por todas. E eu não consigo viver com esta aridez a incomodar-me o peito deste jeito.

Os olhos da minha tigresa, antes tão cheios de vida e luz, mostravam, agora, uma baça melancolia, que era-me altamente perturbante e enchia-me de uma culpa irremediável. Eu queria conseguir fazer alguma coisa, mas um nó apertava-me a garganta, impedindo-me de falar. Se, antes, dizer-lhe um simples ‘eu te amo’ era-me difícil, é de imaginar-se quão muito mais difícil era-me dizer-lhe, então, ‘perdoa-me’. Eu, simplesmente, não conseguia. Minha mente até concluía o discurso, mas minha voz não saía de jeito nenhum. Eu sabia que a havia magoado e também sabia que, mesmo que ela me perdoasse, ia sempre sentir-se incomodada, desconfiada e em dúvida se eu não ia fazê-la passar pela mesma situação vezes e vezes sem conta, dali por diante…

- Levas-me à estação… pela derradeira vez?

- Claro.

Engoli em seco. Meu coração pesava. Minha vontade era dizer-lhe que não, que se virasse sozinha. Excomungar até sua última geração, dizer-lhe uma série de palavrões, mas não podia. Como podia amaldiçoar uma pessoa que havia sido ferida pela minha crueldade? Minha alma estava dilacerada. Eu remoía indignação, frustração e culpa, mas já não havia nada que eu pudesse fazer. Eu, no lugar dela, teria sido menos nobre, tanto nas ações quanto nas palavras. Nunca havia percebido como éramos tão diferentes. Ela era distinta, controlada e generosa. Eu era rasca, vulgar, impulsivo e mesquinho.

Mas eu sentia raiva. Muita raiva. Dela e, mais ainda, de mim. Eu havia sido descuidado e vítima da minha própria ingenuidade, hedonismo e arrojo. Que grande burro havia sido! Diante de uma cena de flagrante sexual com outra pessoa, onde as evidências são inquestionáveis, o que é que eu poderia dizer?

Eu sabia que ela tinha que recomeçar, sozinha, sua própria vida, longe de mim e eu não tinha o direito de impedi-la. Ela estava ferida. Suas asas haviam crescido e seu voo já a havia afastado de mim. Ela sentia-se no direito de voar alto e para longe e eu não queria sentir-me mais culpado que já estava, se tentasse demovê-la da ideia. Ela precisava de espaço e eu tinha a obrigação de dar-lhe, já que eu havia quebrado muitos elos das correntes que nos uniam.

A tigresa pulava para o outro lado da cerca, para ser livre, outra vez...

Olhei aqueles olhos por uma última vez, com imensa melancolia. Minhas entranhas eram roídas por sentimentos contraditórios, tanto de irritação, quanto de culpa. Ela partiu. Sozinha. Triste. Eu fiquei ali, a olhar o vazio sobre os trilhos, depois que o trem sumiu na curva, no meio da neblina de Outono. No mesmo vagão, partiu, para sempre, não somente minha grande amiga – a bela e terna tigresa - mas também minha confiança nos relacionamentos e no ser humano.

Na saída da estação, ainda a cruzar a calçada, esbarrei num transeunte que trazia umas sacolas e que caíram ao chão, com o impacto. Apressei-me, instintivamente, a desculpar-me e a ajuntar os pacotes caídos na calçada, quase sem olhar para quem eu ajudava, por pura vergonha. Foi somente quando entreguei-lhe os embrulhos, que notei aqueles olhos muito claros e verdes a fitar-me com curiosidade e um certo ar de gracejo.

Alguém lá em cima deve gostar muito de brincar comigo…


domingo, 19 de outubro de 2014

Os Olhos da Tigresa (Parte 1 de 2)




Quatro jovens tigres caminhavam, tranquilamente, ao meu redor e roçavam-se contra minhas pernas, como se fossem tão amistosos quanto dóceis gatos domésticos. Era como se estivessem a pedir-me algum carinho ou a marcar-me para reconhecimento, com suas glândulas de feromonas, espalhadas em pontos estratégicos de seus pujantes corpos. Eu sentia-me confortável e nem um pouco intimidado por qualquer um deles.

Um dos animais, uma belíssima fêmea com expressivos e cristalinos olhos, de um tom muito luminoso de verde, levantou-se nas patas traseiras e abraçou-me com afeição, numa atitude que eu realmente não esperava. Ela esfregou sua magnífica cabeça contra meu rosto, depois chegou-a mais para frente e mordeu-me a orelha, com cuidado. Alguém falou:

- Acho que ela gosta de ti. Este não é um comportamento comum.

Passei meus braços à volta do seu belo corpo, dando-lhe um abraço. Seu pelo era macio e luzidio. Provavelmente não sabia a força que tinha e o poder que dela emanava, quando deixou-se envolver por meu abraço. Não fiquei exatamente surpreso quando ela sussurrou ao meu ouvido:

- Deixa-me ir para o outro lado da cerca, onde posso ter mais liberdade. Por favor...

Ajudei-a a pular por sobre o cercado, dando-lhe impulso para ir-se, apesar de desejar que ela ficasse comigo, por muito mais tempo. Sabia, porém, que não tinha qualquer influência sobre seus desejos de independência. Mais cedo ou mais tarde, ela teria que ir-se para além das fronteiras do meu domínio… ou seria eternamente infeliz.

Senti um distinto aperto no peito, ao vê-la afastar-se. Ela olhou para trás e balançou a cabeça, de maneira carinhosa, como se agradecesse o impulso que eu dera, para que atingisse sua emancipação. Aqueles olhos, extremamente magnéticos, porém, tocaram-me a alma, de uma maneira que eu não esperava. Um sentimento estranho tomou conta de mim, numa mistura de melancolia com nostalgia, ao ver minha tigresa partir. Os outros grandes felinos juntaram-se à ela, do outro lado da cerca metálica, levando-a para longe de onde estávamos. Uma lágrima escorreu-me pelo canto do olho e senti a inquietação em minha alma aumentar e envolver-me, com muito mais força que minha tigresa abraçou-me o corpo. Um soluço cresceu dentro de mim e eu fechei os olhos, tentando controlar o pranto, mas já era tarde demais…

Acordei, chorando alto, no meio da madrugada, sentindo uma angústia enorme a pesar sobre meu peito, que arfava, descontrolado. A escuridão do quarto disfarçou a tristeza, mas não diminuiu a sensação de imensa solidão e abandono que aquele sonho me trouxe. Chorei como criança, sem conseguir conter os soluços e a dor que sentia, naquele momento, abraçado ao meu próprio corpo, deitado na cama de casal, que pareceu-me imensa, deserta e fria…

***

Liana tinha, em torno de si, uma suave aura de felina feminilidade. Seus olhos verdes, extraordinariamente expressivos e cristalinos, pareciam-me sempre inquietos, como se procurassem, em algum lugar ou, talvez, em algum tempo, vestígios de uma inocência perdida. Ela sabia ler-me como ninguém. E examinava-me com aqueles seus grandes olhos, despia-me a alma, como se conseguisse penetrar nos meus pensamentos, fazendo-me enrubescer, desajeitado, ante a sua singela majestade e a maneira como conseguia compreender, sem perguntar, meus estados de humor e da alma.

Eu costumava perder-me, completamente, a contemplar aquela sublime e meiga grandeza, por horas e horas a fio, sem precisar dizer nada e, ainda assim, a sentir-me totalmente compreendido e amado pela mulher que havia-me transformado no homem que eu passei a ser. Perto dela, eu sentia-me completo e sereno. Pela primeira vez na minha vida, a presença de uma pessoa, não violava minhas necessidades de ter meus momentos de silêncio. Ela respeitava meu espaço e compreendia que eu necessitava estar só, às vezes, para poder centrar-me, escrever, ou simplesmente ouvir música e pintar, numa tentativa de ilustrar minhas histórias amadoras: meus hobbies favoritos e que davam-me grande satisfação.

Ela aproveitava estes raros momentos para isolar-se, também, e fazer o que já gostava fazer, antes de conhecer-me. Liana era uma artista sensível e perfeccionista. Suas aquarelas eram hiper-realistas e detalhadas. Para fazê-las com esmero, costumava passar horas num dos quartos do apartamento onde morávamos, transformado em seu pequeno estúdio... um oásis de beleza e tranquilidade, que eu raramente invadia, a não ser quando convidado, por puro respeito ao espaço dela. Suas peças estavam expostas em galerias de artistas novos e promissores e ela havia sido convidada, mais que apenas algumas vezes, a viver num centro maior, onde teria mais reconhecimento e oportunidades artísticas. Ela nunca dera nenhuma resposta aos agentes, acerca dos tais convites. Dizia-se feliz onde estava, a produzir sua arte, em seu próprio ritmo. Tinha receio que uma grande metrópole fosse transformá-la em uma artista menos sensível, mais preocupada com a produção que com a sensibilidade.   

Eu compreendia seus medos, mas incentivava a ideia de ela abrir suas asas imensas por paragens mais desbravadas e por ares mais desafiadores. Ela tinha talento e merecia voar alto, mas dizia-se despreparada.

Eu sabia que parte daquele receio estava ligada ao nosso relacionamento. Eu tinha uma carreira, no lugar onde vivíamos e não poderia acompanhá-la, pelo menos no início. Ela inventava muitas de suas desculpas, dizendo-se feliz e satisfeita onde estava, mas eu a conhecia muito bem, para convencer-me que seus receios estavam  relacionados apenas à massificação de sua arte.

Um dia, quando cheguei em casa, depois do trabalho, percebi que ela estava bastante séria e pensativa. Havia recebido uma proposta praticamente irrecusável, mas que não havia aceitado de imediato. Ficara de pensar e dar a resposta em alguns dias. Claro que a proposta implicava em uma grande mudança. Ela iria lecionar uma cadeira na faculdade de Belas Artes, numa grande universidade, alguns dias, durante a semana e teria um estúdio, para produzir seus próprios trabalhos artísticos e desenvolver uma série de projetos, com outros novos artistas, para uma promissora galeria, em Londres.

Ela estava entre vários estados, bastante diversos. Se de um lado sentia uma euforia enorme, em relação ao reconhecimento do seu talento e aos projetos que iria participar, por outro lado, sentia-se totalmente insegura se ia corresponder às expectativas e, por um outro lado ainda,  estava triste, por termos que nos afastar durante semanas.

Tentei fazê-la ver que uma oportunidade destas não aparece mais que uma vez e que ela deveria aceitar. Era a possibilidade de vencer e mostrar seu trabalho e eu não poderia, jamais, deixar de incentivá-la a ir em frente. Prometi que nos veríamos semana sim, semana não... um ou outro viajaria e conseguiríamos vencer os obstáculos que, já sabíamos, iriam aparecer.

- O mundo é muito pequeno e as comunicações estão cada vez mais fáceis. Estaremos sempre em contacto.

Eu disse-lhe a frase esperada, tentando tranquilizá-la, mas meu peito acusava um desconforto, que traduzia o medo que eu sentia, de que algo não corresse tão linearmente como eu assegurava.

Os primeiros meses foram difíceis de suportar, mas fáceis de mantermos o contacto. Quando o estúdio começou a exigir mais do seu tempo e dedicação, até mesmo nossas comunicações começaram a rarear. Sabia que era natural que tal acontecesse, pois ela desabrochava, naturalmente, dentro de seu genuíno meio de expressão. Ela estava cada vez melhor, mais feliz, mais produtiva e mais ocupada que jamais estivera.

Eu, porém, sentia-me cada vez mais desamparado. Apesar da necessidade de estar só ainda tomar parte do meu tempo, não tê-la por perto corroía-me a alma. Pelo menos - tentava convencer-me - tínhamos as férias de fim de ano para estarmos juntos. Eu ansiava por aquele tempo junto dela e contava os dias que antecediam o período, já que nossos fins de semana juntos praticamente haviam desaparecido. Escrevíamos quase diariamente, deixávamos mensagens um ao outro, tentávamos sempre saber como iam as coisas, o trabalho, a vida... mas o tempo é cruel...e a distância também... 

Ficamos meses sem nos ver, a não ser pela internet, já que ela estava ocupada demais com seu trabalho, incluindo nos fins de semana.

Quando nos encontramos, em Dezembro, ela parecia diferente e distante. Algo havia mudado. Onde, antes havia uma imensa vivacidade e alegria de viver, havia, agora, um quê de tristeza, um intrigante mistério, uma distância quase inatingível. Ela disse que era somente cansaço. Estava com excesso de coisas a fazer. O projeto ia muito bem e ela precisava daquela chance de mostrar o trabalho do grupo e, mais especificamente, o seu, em particular. A mais famosa galeria de artes em Londres havia-lhe solicitado uma mostra individual e ela trabalhava em novas obras com avidez. Sabia que aquela seria sua grande oportunidade. O reconhecimento de sua individualidade artística era evidente e ela não podia deixar passar, sem fazer seu melhor.

Fiquei feliz por ela. Disse-lhe que aproveitasse, incentivei-lhe a ir adiante, mas disse-lhe também para cuidar de sua saúde, pois estava bastante magra e abatida. Ela afirmou que mal tinha tempo para alimentar-se, mas eu protestei. Ela prometeu cuidar-se. Aproveitamos aqueles poucos dias de inverno, para ficarmos mais juntos. Tratei de preparar-lhe meus melhores pratos, numa tentativa de dar um pouco de cor ao rosto, que eu adorava, e de compensar a perda de peso, que havia-se tornado evidente, no corpo que eu tanto desejei, desde que nos conhecemos. Ela contestou, no começo, mas cedeu à minha insistência e em poucos dias parecia mais vivaz e com as faces mais rosadas.

Uma noite, naqueles poucos dias em que estávamos juntos, eu adormeci no sofá, enquanto ela trabalhava no estúdio. Acordei, ao ouvir vozes. Ela estava ao telefone e parecia ter uma discussão com alguém. Tive a impressão de ouvi-la dizer, num tom mais baixo:

- Já te disse para não ligar-me aqui...

Levantei-me e fui até o quarto, mas assim que cheguei perto, ela desligou. Perguntei quem era.

- Nada importante... apenas assuntos de trabalho... Não te preocupes.

O semblante dela não era o mesmo. A luz vermelha da desconfiança acendeu na minha mente insegura, mas eu não insisti em saber o que acontecia. Pelo jeito a intimidade, que antes havia entre nós, quando compartilhávamos tudo, já não existia. Afastei um pensamento ruim, com um abano de cabeça e saí do estúdio, com o cenho franzido. Fui para a cama, mas não conseguia adormecer...

Uma noite mal dormida só agrava os pensamentos nefastos... e eu amplifiquei minha insegurança e minha paranoia, elevando-as à potências de dez...

Não tenho muita certeza se realmente ouvi vozes, durante a madrugada, ou se adormeci e sonhei, no estado de tortura mental em que me encontrava. Quando amanheceu, eu ainda estava de olhos abertos e ela não havia vindo para a cama. Levantei-me e procurei-a pela casa. Estava na cozinha, a olhar para fora, com o olhar baço e os pensamentos tão distantes, que mal conseguiu ouvir-me aproximar. Ela virou-se para mim e disse, muito séria:

- Tenho que voltar a Londres... hoje mesmo, se conseguir um voo.

- Aconteceu alguma coisa?

- Nada que eu não possa resolver sozinha...

Aquela resposta, seca e num tom que eu desconhecia, apanhou-me de surpresa e deixou-me de queixo caído. Ela passou por mim, apanhou a bolsa de cima da cômoda na entrada e saiu pela porta afora, sem olhar para trás.

Eu fiquei ali, de pé, no meio da cozinha, a matutar o que poderia ter acontecido que a deixara daquele jeito. Aquela luz vermelha da insegurança piscava como um grande farol na beira da praia, parecendo gritar, na minha mente torturada:

Alerta! Alerta! Alerta!

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Outros Estudos em Vermelho e Azul - Parte 3


Vermelho… Azul… vermelho… Azul… Vermelho… Azul…

O fino veio de fluido escarlate, ainda levemente viscoso, escorria vagarosamente por entre os espaços das pedras do passeio. Mais à frente, juntava-se a outros, como afluentes a um mesmo rio, formando, ainda mais adiante, uma pequena lagoa esmaltada, tinta de um brilhante tom rubro, que ia lentamente aumentando de tamanho, diante de seus olhos. 

Ajoelhada no gasto calçamento de granito cinzento e sujo, ela examinava o corpo caído - meio de lado, meio de bruços - no meio do passeio público. Uma mistura de perturbação e profunda dor comprimiram-lhe o peito, ao tocar a pele - ainda morna - do jovem homem. Impelida pelo senso de dever, tentou privar-se de pensar em seus sentimentos, procurando ser a mais científica e profissional detective, diante da situação e dos factos. Sendo cruelmente consumida pela dor, entretanto, ela não já conseguia separar a razão da emoção. Engoliu em seco, tentando reter as lágrimas que sentia inundarem seus olhos e seu espírito que, em objecção, retribuiu com uma aguda fisgada no principal órgão pulsando em seu peito. 

Controle-se, pensou ela. Controle-se… 

Aqueles olhos, de um tom intenso de safira, ainda abertos, não pareciam haver sido inteiramente surpreendidos pela fatalidade. Na verdade, davam a impressão de contemplar, imperturbavelmente, o espaço vazio à frente. A mulher estremeceu levemente, tendo a falsa impressão que ele apenas descansava, desajeitadamente, sobre o duro piso da rua. Questionou-se, intrigada e em silêncio, o que aqueles olhos teriam visto, antes que a vida fosse arrebatada deles, triste, violenta e definitivamente? 

Desviou a atenção, sentindo um certo mal-estar pela cena daquela peça lúgubre, descortinada ali, diante de si, em vermelho… e azul… Os peritos já chegavam para examinar, detalhada e cientificamente, o corpo e o local, recolhendo amostras de tudo que podiam. Alguém dignou-se a fechar-lhe, com cuidado, as pálidas pálpebras. Ele, agora, parecia serenamente adormecido… 

Curiosos ajuntavam-se à volta, apesar do cordão de isolamento estendido pela polícia em volta da cena do crime. Seu mal-estar cresceu diante daquela situação. Pensou em abutres em torno de um animal morto, prontos a atacar, na primeira oportunidade. Aquele pensamento inquietou-a grandemente, ao ponto de fazê-la querer estar longe dali, alheia a tudo e a todos.

Numa situação normal consideraria um corpo sem vida como um objecto de estudo… um conjunto de provas que se tornariam irrefutáveis para os peritos do laboratório forense determinarem a causa da morte e conduzirem as investigações aos policiais. 

Aquele caso específico, todavia, mexera bastante com seus nervos. Sentiu uma súbita convulsão no estômago. Teve fortes ânsias de vómito. Precisava de ar fresco, distância daquele local e um pouco de descanso.

As luzes a piscar intermitentemente feriam-lhe os olhos, enquanto as imagens misturavam-se em sua mente, tornando difícil separar passado e presente, realidade e imaginação, memórias e factos. Apesar daquele tipo de ‘espectáculo’ não lhe ser nenhuma novidade, o excesso de horas seguidas de trabalho, sem repouso, estava dando cabo de sua paciência, com uma facilidade descomunal. 

A investigadora de polícia – sempre durona, fria e impessoal - começava a mostrar sinais de fraqueza e stress. O facto de conhecer a vítima contribuía grandemente para aumentar o seu incómodo e incutir-lhe uma estranha sensação de culpa, que já começava a aumentar o peso em sua torturada consciência. Ela estava de pé por mais de 24 horas, não dormia direito já por vários dias seguidos e começava a desconfiar que a quantidade de cafeína ingerida causava-lhe delírios. 

Percebeu, quase sem querer, que do outro lado da pequena multidão de curiosos, ela estava sendo observada por um certo par de olhos profundamente azuis – como as águas do Oceano Pacífico. Ele estava lá, atento a cada movimento que fazia, como se a estudasse com grande interesse. Se a vigiava como a uma presa, preparando um futuro bote, ela não tinha realmente certeza, mas aquela visão deixou-a, de alguma forma inquieta e desconfortável. Qual a relação que ele tinha com aquele contexto, ela ainda não sabia, mas o instinto de policial bem treinada acendeu uma luz vermelha dentro de si e alertou-a para o facto de que aquela não era uma curiosidade inocente… nem tampouco casual. 

Franziu o cenho, ao olhar naquela direcção, mas uma distracção qualquer a fez perder o contacto visual com o rapaz. Quando tornou a procurar Misha, no meio da multidão, este já havia desaparecido. Perguntou-se se o havia visto realmente, ou se o havia imaginado naquela cena. 

Vermelho… azul… vermelho… azul…

As luzes acesas em cima das viaturas policiais pintavam a noite com tons quase irreais de cores fortes. Os olhos da mulher, anteriormente atentos, começaram a perder o foco, gradativamente, enquanto ela procurava, na faixa por detrás do cordão de isolamento, a presença do personagem que ela não tinha certeza de haver verdadeiramente visto. Os sons das vozes, sirenes e trânsito foram-se distanciando, lentamente… Sentiu as pernas fraquejarem e, por sorte, estava suficientemente próxima do carro parado, para poder apoiar-se. Fixou-se nas cores a girar, na tentativa de voltar a manter o foco, mas sua mente começou a vaguear no tempo… 

Os olhos azul-cobalto… o facho de luz filtrada pelo vitral vermelho da janela… outros olhos de um distinto tom de safira… a explosão em vermelho dentro de si… os olhos azuis do corpo caído na sarjeta… a poça de sangue vermelho e brilhante à volta do rapaz morto… 

  - Pare de olhar estas luzes assim... 

Sentiu um firme puxão no braço, fazendo-a voltar à realidade…

***

- Eu gosto tanto de estar aqui… Contigo sinto-me segura e bem… protegida, como toda mulher deve, na verdade, sentir-se… 

Deitada ao lado dele, na ampla cama de casal, ela esperou uma reacção. À declaração seguiu-se apenas um profundo suspiro. Ela virou-se para ele e viu que uma lágrima silenciosa e solitária escorria-lhe lentamente pelo lado do rosto.

Num gesto de espontâneo carinho, ela tocou-lhe, com cuidado, a face molhada. Uma sensação desconfortável envolveu-lhe o espírito, como se o prenúncio de uma tragédia se aproximasse a passos largos.

Ele deu outro suspiro e falou, com voz grave e baixa:

- Só não me faça sofrer, por favor. Já passei por muita dor na minha vida. Não sei quanto mais eu iria conseguir suportar...  

Num momento em que deveriam estar relaxados e felizes, fazendo planos para o futuro, ou rindo de coisas bobas, ele, de repente parecia tão distante e tão perdido… tão sem perspectivas… 

Ela puxou-o para si e abraçou-o com força, sem dizer nada. Ele entregou-se àquela demonstração de ternura e chorou, com a cabeça nos ombros da mulher que, naquele momento mostrava-se tão forte a ampará-lo, enquanto ele desabava diante dela, deixando cair todas as suas defesas, sem medo de parecer ridículo. Quão frágil e carente aquele homem se encontrava ali, aninhado em seus braços… Seu choro era triste… angustiado… convulsivo... 

Ela beijou-lhe a cabeça, com suave e autêntica afeição.

(Vinte e seis anos de idade e já assim tão sofrido? Quem fez isso contigo, minha criança? Quem te magoou esse tanto a ponto de deixar-te tão desiludido… tão fragilizado?) 

Um sussurro, ao pé do ouvido, foi o melhor que pode oferecer-lhe. Ele suspirou e, aparentemente, acalmou-se, ainda abraçado a ela.

- Não tenha medo, meu menino, de parecer fraco. Não tens que ser forte sempre. O passado, que te trouxe até aqui, ficou lá atrás. Deixa-o ficar onde ele pertence. Ele pode ter feito quem tu és, hoje, mas não precisa determinar quem tu serás amanhã. O que passou, passou, meu querido amigo. O presente é aqui… comigo. O que vier daqui para frente só depende de ti… de mim… de nós… mas o melhor ainda está por vir… acredita em mim… Para falar bem a verdade, eu não tenho saudades do passado que vivi. Eu acredito num futuro melhor e quero que faças parte dele. Confia no teu coração… e no meu... Dê uma hipótese a nós dois para que essa relação possa dar certo. 

Ele não respondeu. Ficou em silêncio, como se estivesse tentando absorver o sentido daquelas palavras, digerindo-as devagar, depois de mastigá-las um grande número de vezes. Sabia que ela estava correcta, mas não tinha convicção de haver-se convencido a entregar-se totalmente, como quem se jogasse na escuridão fria e incerta do oceano, numa noite de tempestade. 

Ela percebeu que, afinal, eram ambos náufragos, em um mar de decepções passadas e tinham receio de ter o coração machucado, como já havia acontecido vezes sem conta, pelo menos no seu caso. Ele também parecia haver experimentado profundas decepções – daquelas que fazem o medo ofuscar a razão e bloquear a emoção. Para não sofrer, tanto um como o outro, restringiam, assim, o ‘permitir-se enfrentar’ o que a vida pudesse lhes oferecer, aberta e intensamente, por tanto tempo quanto merecesse durar qualquer relação afectiva… 

Apesar de encorajá-lo, ela percebia que também estava assustada…. Na verdade, sentia-se cada vez mais angustiada e assustada… 

- Eu preciso de um tempo… sozinho… Estou tão confuso neste momento…

(Oh, Deus… e essa agora…) 

Naquele momento ela pareceu distanciar-se daqueles olhos azuis e daquele sorriso de menino travesso, pelos quais havia-se deixado, inadvertidamente, apaixonar. Aquele pedido havia-lhe caído como uma grande pedra na água serena de um lago, levantando uma imensa onda… de apreensão… em seu coração. Custava-lhe acreditar que ele dissera aquilo, daquele jeito, ali, naquele momento…

(Quantos erros podem ser cometidos, até uma pessoa se convencer que apenas os repete indefinidamente?) 

***

Assegurou à amiga que estava bem e que podia conduzir, sozinha, para casa. Deixou-a, ainda um tanto desconfiada, numa estação de metro e seguiu adiante, já pensando no conforto de um banho quente e da grande e confortável cama. As luzes da noite passavam, praticamente imperceptíveis, pelas janelas do carro, em velocidade acelerada.

Vermelho… 

A mudança repentina na cor da luz no semáforo à sua frente a fez pisar nos freios com força. Um caminhão de bombeiros, seguido de uma ambulância - ambos com as sirenes ligadas - passou em alta velocidade pela rua transversal à que estava parada. 

Ela se viu, entre imagens trazidas à sua mente activa e consciente, cercada de braços, mãos, estilhaços de vidro e vozes - que ouvia, mas não conseguia compreender. Apagaram-se as luzes, as vozes, as pessoas e ela deixou de sentir dor, caindo no profundo vazio de um imenso e silencioso buraco negro…

Lembrou, então, de quando acordou do coma a que esteve por uma boa temporada. O trágico acidente de viação deixara-a entre a vida e a morte, em coma, por um longo tempo. Perdera, definitiva e irreparavelmente, quem mais havia amado até então. O marido não resistira ao impacto da colisão e morrera instantaneamente. A ela, foi restituída a vida, mas não sem um preço.

Enquanto estava no hospital, pessoas que a visitavam traziam-lhe presentes e flores, em tentativas desastradas – a seu ver - de minorar a dor e a solidão da perda e da convalescença pós-coma. Ela se sentia derrotada e assumia que provavelmente não tinha direito aos presentes que lhe traziam. A compensação parecia-lhe imprópria e injusta. Flores e presentes passaram, então, a representar sua grande perda, portanto ela abominava-os com todas as suas forças.

A partir dali, passava a ficar desiludida para o resto da vida, de modo a sentir aversão a toda e qualquer ocasião que se relacionasse com presentes. Paradigmas que se repetiam. Continuava a deixar-se levar pelo comportamento padrão que tinha menos direito que os outros. Queria satisfazer os desejos dos outros, sem pensar naquilo que realmente queria. 

(A vida, por ironia ou maldade, como resultado do acidente, privou-me do direito de procriar. Eu confundi com o direito de amar ou relacionar-me e assumi que tinha de ser durona, insensível, quase masculina, característica que se acentuava até no modo de vestir-me. Meus poucos relacionamentos, após aquele, haviam sido fugazes, sem nenhuma profundidade. Nas duas únicas vezes em que tivera um mínimo de esperança em ter alguém por mais tempo, fora surpreendida com os tristes e cruéis golpes do destino. Parece que tenho um pesado ‘carma’ a pagar e este está a custar-me bem caro…)

Ela se tornara uma pessoa solitária, amarga e sem expectativas em emoções e outras coisas imateriais, que decidira dedicar-se inteiramente ao trabalho, já que não sobrava muita coisa além daquilo em sua vida. As longas horas de trabalho duro e obsessivo afastavam-na de pensar em sequer relacionar-se com alguém. O que ela mais prezava era aquele pouco de paz, quietude e o conforto do silêncio, quando voltava para casa no fim do dia, onde o fiel Ginger sempre esperava à porta, invariavelmente, saudando sua chegada, sempre disposto a ganhar um pouco de atenção e esperando ser alimentado convenientemente. 

Tinham uma relação bastante especial e única. Passavam o tempo livre dela sempre juntos, muitas vezes em intuitivo silêncio ou ouvindo música baixinho, grudados um no outro, deitados no sofá da sala, em dias frios, debaixo de um espesso cobertor. Era ele quem a ouvia, talvez sem compreender, quando a mulher entrava em modo de depressão, mas o bichinho nunca reclamava – apenas a olhava nos olhos, como quem dissesse: ‘eu não sei se percebo bem o que dizes, mas estou aqui, a dar-te todo o apoio que precisares’. 

Esboçou um sorriso um tanto triste ao pensar no seu companheirinho de quatro patas e voltou à realidade do momento presente. 

O sinaleiro havia estado em vermelho pelo que tomou por tempo demasiadamente longo. Sua cabeça não conseguia manter o foco em nada, por mais que umas fracções de segundos. Seus pensamentos voltavam invariavelmente para aquela cena e para os olhos que a observavam, como se analisassem seus movimentos, por um lado, mas por outro mostravam algo mais: talvez uma espécie de retaliação. E se, conscientemente, ele a estivesse punindo por não havê-lo ajudado? E se ele estivesse a vingar-se, tirando-lhe algo que sabia que ela prezava, para compensar a noite que tivera de passar na cela da cadeia, por não ter como pagar uma fiança? 

O sinal mudou para verde e ela prosseguiu, pelas ruas da cidade, semi-consciente do que fazia, confiando mais no instinto que em seu estado de alerta. Uma pontada de dor atingiu-lhe as têmporas e os músculos em seu pescoço formigaram. Tensão, pensou… Precisava parar. 

Já via diferentes olhos em todos os diferentes lugares. Ela não tinha certeza se estava fascinada ou em completa alucinação. Não conseguia parar de pensar na fascinante cor azul daqueles expressivos olhos, que faziam parte de seu passado recente, tão cruel e violentamente arrebatado de si.

Chegar em casa foi uma experiência estranha, da qual não se recordava de nada muito claramente. Parecia haver uma névoa em seus olhos e em seu discernimento. Estava praticamente semi-consciente. Só deu-se conta de onde estava, depois de sair do carro, caminhar até a porta do saguão e deixar cair as chaves da mão. 

Foi como se acordasse de um estranho transe. Sua cabeça parecia estar em turbilhão e os pensamentos não encaixavam… eram uma sequência recortada de imagens passando completamente sem nexo – aleatória e rapidamente. 

Não sabe ao certo como chegou à porta do apartamento. Entrou e jogou as chaves sobre a mesinha no hall de entrada, seguindo para a cozinha, a fim de preparar algo para comer. 

Ginger a esperava naturalmente ansioso, como todos os dias quando chegava em casa e saudou-a com uma cabeçada na perna: sinal que estava na hora da sua comida. Alimentou o bichinho e preparou para si uma sanduíche de queijo quente, por ser mais prático e rápido e por ser já bastante tarde na noite. 

Uma taça do seu vinho tinto favorito acalmou seus ânimos e relaxou-lhe o corpo demasiadamente tenso. O banho ia ter de esperar. Jogou-se no sofá da sala logo em seguida, ainda completamente vestida, atirando os sapatos para o lado, para o desespero do gato, que abominava desarrumação. Seu pequeno companheiro aproximou-se, deitou-se sobre seu peito, ronronando de satisfação e olhando no fundo de seus olhos, como costumava fazer, quando queria um carinho. 

Adormeceu ali mesmo, cansada que estava para fazer qualquer outra coisa minimamente producente.

Os olhos azuis perseguiram-na pela noite adentro, em sonhos cheios de agonia e suor frio, num sono agitado, como já vinha ocorrendo muitas vezes ultimamente. Acordou-se no meio da madrugada, mais cansada do que se não tivesse dormido ali, devido ao pouco conforto do sofá… Levantou-se sentindo frio, tomou um duche morno, enrolou-se no roupão e foi preparar algo quente para beber. Estava ainda tão tensa que não iria conseguir voltar a dormir, de todo jeito.

Uma boa xícara de café forte iria deixá-la desperta o suficiente para pensar e avaliar mais coerentemente as circunstâncias e os eventos do último dia. Precisava juntar os factos de maneira lógica. Tinha que tentar seguir uma linha de raciocínio que a levasse à uma conclusão acertada, ou pelo menos que desse uma pista de como desvendar aquele mistério. Seu instinto apontava uma direcção, mas precisava de factos concretos e sabia que ia ter que esforçar-se bastante para consegui-los. 

Começou a fazer anotações apressadas, sem muito critério, como se num brainstorming, para tentar organizar os detalhes ainda vivos em sua memória. A aparente tranquilidade na face do rapaz morto ainda a intrigava. Por qual razão não deixara gravada nenhuma surpresa no olhar congelado pelo último acontecimento de sua vida, ela não conseguia ainda perceber. 

O que mais a atormentava, porém, naquele momento, era descobrir qual a relação Misha tinha com aquela cena toda. Não poderia estar apenas por um acaso do destino, naquela hora, naquele lugar. Não era um comportamento que ela aceitaria com base no que conhecia dele. Ela tentava sem parar, mas sua cabeça começava a dar sinais de cansaço. 

A sua velha conhecida dor nas têmporas, voltou a afligi-la, impedindo-a de pensar claramente. Sentiu os músculos atrás do pescoço e ombros a formigarem. Passou, instintivamente, as pontas dos dedos pelos músculos doloridos… A um calor subindo-lhe pela espinha, seguiu-se uma tontura quase deliciosamente confortável, como se fosse o torpor gerado pela ingestão de uma grande taça de vinho, quando se está com o estômago vazio. Ela fechou os olhos e deixou-se cair numa escuridão suave e silenciosa, apagando completamente todos os sentidos… 


sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Em Branco...

Dor… Letargia...

Por que não consigo abrir meus olhos. Que zumbido é este na minha cabeça? Onde estou eu?

Meus pulsos doem, meus braços estão imóveis. Com esforço, abro os olhos, devagar. As imagens vão se ajustando, aos poucos, na luz quase ofuscante do quarto onde estou. Este lugar é estranho.

Flash… Branco…

Tudo aqui é branco. As paredes são brancas. A cama e os lençóis são brancos. A camisa deste jovem é branca…

Não…

Ele está todo trajado em branco. Quem é este homem, que me olha com uma expressão engraçada?

“Calma”, ele pede, ao me ver forçar os braços. Sua voz é calma, branda, relaxante, quase me causa mais sonolência. “Não se mexa muito, para não abrir os ferimentos”.

“Que ferimentos?”, pensei eu. Ele toca minha fronte, como se tentasse perceber se tenho febre.

A pele dele é pálida - talvez pálida demais - mas os olhos… os olhos… são azuis… profundamente azuis. Eles me fazem lembrar… Acho que estou enlouquecendo.

Flash… Azul…

Os olhos de outro homem adornam a face deste jovem, que me olha com um misto de compaixão e curiosidade. Ah! Como eu lembro bem… amei o dono daqueles olhos com todo o meu coração…

Ele sorri, ao me ver fixar o olhar no dele e gemer, baixinho, com dificuldade. Um sorriso tão suave e encantador. Aquela curvinha adorável, decorando o canto da boca bem desenhada. Ele se aproxima e acomoda o travesseiro atrás da minha cabeça. Chego a sentir o perfume suave da pele dele. Parece até que conheço este cheiro, de outra época, de outro lugar…

Este homem me traz o passado de volta, tão nitidamente…

Minhas pálpebras pesam. Tenho sede. Peço água. Quase não reconheço minha própria voz. Estou fraca. Fecho os olhos e as lembranças vêm claras na minha mente.

Vejo a figura dele - seu sorriso, seu porte altivo e encantador… e seus olhos. Quando o vi, pela primeira vez, pareceu-me que dois faróis azuis iluminaram a sala de espera próxima ao portão 21, que se tornou vazia, de repente, no meu delírio momentâneo. Ele era magnífico, como uma grande e imponente fortaleza, não necessariamente intransponível.

Na minha cabeça era mais belo que o era, na realidade, mas eu também não via muita diferença na ocasião. Não percebi que não era tão alto quanto a impressão que me causou.

“Beauty is in the eye of the beholder”…

“Cuidado com os movimentos bruscos”- pediu-me o enfermeiro.

Eu ainda não sabia do que ele falava. Tentei me concentrar, para buscar uma memória que fosse, que explicasse os tais ferimentos.

Minha cabeça dói. As luzes enfraquecem… meus olhos pesam… Acho que vou desfalecer.

Outras vozes se aproximam. A única coisa que consigo distinguir, nesta confusão de sons é uma frase solta: …”os pulsos cortados”…

Flash… Vermelho…

Não queria perder os sentidos, mas meus esforços não pareciam surtir efeito.

Algum deus brincalhão aproximou-o de mim naquele voo. Meu coração deu um salto quando ele se sentou ao meu lado. Surpresa e extasiada pela sua presença, fiz de tudo para que me visse melhor que eu realmente era. Aqueles cativantes olhos de safira mostraram uma certa melancolia que me comoveu de imediato…

- Ah, meu anjo caído! –

… Como eu queria refrescar a sua aflição. Ele mostrou que confiava em mim. E abriu a alma, para que eu pudesse ver que ele era uma pessoa normal, embora não o fosse. Falamos de coisas que outros não falariam, dissemos coisas que o coração queria partilhar - parecíamos grandes amigos, daqueles que a gente não tem vergonha de dizer que ama. E eu percebi que já o amava.

Mais do que deveria… menos que poderia.

Quando ele falava de sofrimento, eu sofria mais que ele. Se ele sorria, eu me alegrava como se fosse a minha própria felicidade. Eu já nem era mais eu. Me tornara confidente e conselheira, mas não era isso que eu queria ser. Eu queria ser mais importante. Queria ser parte da vida dele. Observava-lhe, com cuidado e atenção, os gestos, a forma de falar, a risada dele, solta como de uma criança. Eu me concentrava só nele. Havia sido uma paixão imediata. Justamente eu, que tenho meus pés firmes no chão e que não tenho tendência para obsessão…

Onde está o enfermeiro? Deus me ajude! Não quero deixar aqueles olhos saírem de perto de mim. Não sei se vou suportar isso… outra vez...

Perdi a vergonha de me tornar ridícula, desde que ele soubesse que eu o amava. Ele percebeu, por isso pareceu-me que teve o cuidado de não me dar corda demais. Mas eu já nem tinha mais freio. Deixei-o saber que estava totalmente apaixonada por ele. Ele riu. Eu também. Já ansiava por um reencontro, que ele dizia que também desejava. Por fim, trocamos endereços de e-mail e Messenger. Nossos contactos on-line haveriam de ser frequentes. Pelo menos eu assim pensava.

Como era possível que tanta coisa tenha acontecido em apenas uma viagem com cerca de 10 horas de duração?

Como o mundo parecia pequeno. Como a vida é incrivelmente engraçada e nos dá tanto, em tão pouco tempo. Como aquelas horas passaram rápidas, na viagem que havia sido a maior alegria que eu tivera em muitos anos. A partir daquele dia, passei a amar o Oceano Atlântico e os céus por nos terem aproximado daquela maneira inusitada.

Quando ele partiu, pela mesma porta que eu cruzei, momentos depois, senti meu peito apertar. Ia pegar a conexão para longe e eu ficaria neste lugar. Prometera-me a mim mesma que faria de tudo para diminuir a distância e abreviar o tempo em que ficaríamos afastados um do outro.

Mas não foi tão fácil quanto parecia, a princípio. Ele tinha uma vida toda dele. Eu queria fazer parte dela. A distância lhe dava segurança e mantinha a intimidade debaixo de um chapéu protector, ao qual meu acesso era limitado. Tentei várias vezes programar um reencontro, mas algo sempre se interpunha no meio.

Quando ele estava bem, espaçava os contactos. Quando estava mal e precisava desabafar ou pedir algum favor, ligava-me ou mandava-me mensagens. Eu estava sempre lá. Compreendia as razões dele, mas me martirizava. Para ele, estava sempre pronta, sempre disponível, sempre disposta a ajudar. Em meu coração, cada vez mais, sentia uma insegurança corroer meu espírito, como um veneno, que agia devagar, mas constantemente. Fiz-lhe vários favores, liguei quando teve crises de depressão, incentivei-o a manter-se vivo e ter objectivos palpáveis… enfim, esqueci de mim mesma.

Ele era um sonhador. Eu sonhava com ele. Ele era um deus e, eu, uma simples adoradora. Ele voava. Eu mantinha meus olhos em suas asas e em seu magnífico voo. Ele me inspirava a querer ser melhor… sempre… para impressioná-lo.

Me mordia de ciúmes, quando falava de outras mulheres em sua vida, mas dizia que tudo ia ficar bem, que ele merecia ser feliz, da forma e com quem escolhesse. Era mentira, claro, mas ele tinha que pensar que eu era a rocha onde ele poderia se apoiar. O que eu queria, na realidade, era que ele fosse meu, só meu. E eu estava disposta a fazer qualquer coisa para que isso acontecesse…

Eu nunca perdia a esperança de revê-lo e comecei a insistir sem parar. Ele cedeu aos meus muitos apelos, depois de algum tempo. Me aventurei numa despretensiosa viagem de cerca de três horas, por uma estrada cheia de desvios, até a cidadezinha onde se encontrava, num morno e nublado domingo de verão.

Ele me esperava, sentado num banco da pracinha, em frente à igreja. Veio e sentou-se ao meu lado. Olhei aqueles vívidos olhos azuis e aquela boca magnífica dele. Ele sorriu e eu derreti, ali mesmo, na sua frente… Que sorriso esplêndido ele me presenteava. Toda aquela ansiedade havia valido a pena. Tentei parecer natural, apesar de completamente extasiada pela sua presença. Ele me estendeu a pequena - mas não exactamente delicada - mão e eu apertei-a. Mas não me contentei somente com aquilo. Abracei-o como se fossemos velhos amigos. Minha vontade era bem outra, mas eu não podia ultrapassar nenhuma fronteira, antes do tempo. Almoçamos juntos e, depois, andamos sem destino certo pelas ruas.

(Ah! Como eu fazia questão de caminhar devagar e esbarrar despropositada - mas, ao mesmo tempo, propositadamente - nele, só para sentir o contacto com seu corpo, que eu já desejava loucamente).

Paramos para tomar sorvete e ele disse, então, que tinha que ir para a casa da namorada. Fingi que não percebi a subtileza da saída e dei-lhe mais um abraço, despedindo-me. Desta vez meu coração apertou-se mais que o abraço que lhe dei. Eu queria que ele me tomasse nos braços, que me dissesse que ia sentir minha falta e que me amava. Talvez me amasse… mas somente como um amigo. Aquilo não era justo, depois de tudo que eu havia passado por aquele encontro.

(You´re so fucking special… I wish I was special…)*

A caminho de casa, estava feliz, por havê-lo reencontrado… e tragicamente triste, ao mesmo tempo, lutando para aceitar a minha condição de amiga, somente. Eu não podia deixar a magia quebrar. Não ia desistir assim tão facilmente. Tentei, desesperadamente, manter a comunicação activa. Vigiava o Messenger o tempo todo, iniciando conversa assim que ele entrava. Pedi-lhe que não desistisse de mim. Ele prometeu que isso não iria acontecer, mas não cumpriu a promessa e eu sabia porque. Escrevi-lhe muitas mensagens, fingindo que estava tudo bem. Por fim, disse-lhe que sentia a distância aumentar entre nós. Ele, porém, não se deu ao trabalho de responder. Nossos contactos cessaram, assim, abruptamente.

Eu entrei em depressão profunda. Sofri muito com aquele silêncio, pois não estava preparada para o fim de uma relação que eu considerava tão importante e que me havia feito feliz por tanto tempo. Me sentia triste, decepcionada e rejeitada. Eu tinha que fazer alguma coisa, urgentemente, antes que perdesse, por completo, a vontade de viver.

Foi então que decidi reprimir, bloqueando de vez, tudo que eu pudesse sentir por alguém – tanto as coisas boas quanto as más. Para evitar sentir a dor da solidão e a sensação de abandono, endureci meu coração e passei a não sentir mais nada por ninguém. Mergulhei de cabeça no trabalho e somente nele… No começo foi difícil me concentrar, mas acabei me adaptando.

Um dia, quando menos esperava, voltou a contactar-me, brevemente… laconicamente. Apesar de uma sensação estranha manifestar-se em meu peito, tentei parecer natural. Perguntei-lhe como se sentia. Me disse que estava tranquilo. Não me disse que estava feliz. Mas percebi que eu já não me impressionava tanto com a sua sorte. A vida brincava comigo.

Aquilo me fez pensar na forma que estava me conduzindo. Eu não sabia se sentia necessidade de alguém ou saudade de mim mesma - daquela que havia sido. Havia-me transformado numa mulher amarga e sem consideração pelas pessoas. No meu peito havia, apenas, um bloco de gelo, envolto numa capa de aço. Eu não era triste, nem feliz – era indiferente.

Meu coração estava calejado, machucado e frio… mas havia algo vivo, ainda pulsando, lá no fundo… Senti, então, que aquela circunstância me fazia envergonhada do que havia-me tornado. Aquela sensação estranha, que se manifestara no meu peito, me fizera sentir a vontade de experimentar, novamente, alguma sensação real… Nem que fosse alguma dor…

A dor física, na verdade, não me incomodava… Ela não chegava nem perto da outra, que afligia meu espírito…

Flash… Vermelho…

Ao abrir a porta, chegando em casa, há poucos dias, meus olhos captaram o brilho do aço inoxidável, no instrumento em cima da mesa…

… Os ferimentos nos meus braços… Agora lembro... Cortei-me, para ter certeza que ainda sentia alguma coisa… Uma atitude desesperada e radical, para garantir-me que ainda estava viva por dentro.

Já sei como devo ter vindo parar neste lugar…

O enfermeiro se aproxima, provavelmente ao perceber que meu semblante mudou. Agora que vejo estes seus “faróis azuis” assim tão perto, iluminando minha alma alquebrada, quase esqueço o que passei, por um homem que não mereceu meu amor. Apesar de muitas semelhanças, este outro mostra uma dedicação diferenciada pela pobre mulher deitada, com os braços atados e pulsos envoltos em uma longa faixa de gaze. Eu até consigo perceber quão especialmente ele me vê, somente pela forma com que me olha e me trata nesta cama de hospital.

Minha alma está atraída como magneto, por estes olhos. A roda-viva recomeçou seu movimento contínuo, dentro da minha cabeça. Sinto uma chama reacender-se em meu peito e borboletas voarem no meu estômago.

Um simples olhar pode mudar o rumo dos acontecimentos e da minha história? Já sonho em estar em seus braços, em fazer aquilo que não fiz anteriormente…

Não hesitarei em fazê-lo ver-me por uma lente mais especial ainda. Nem que para isto tenha que voltar cá… de alguma maneira.

Flash…. Branco…

Tenho notado aqueles mesmos olhos a me observarem, quase acidentalmente, de uma mesa à frente da minha, no restaurante em que almoço. Procuro sempre avistá-los, para ter certeza que, mesmo disfarçadamente ou fingindo desinteresse, há a curiosidade de saber onde eu estou. Eu sei que ele tem interesse em mim, sem dúvida nenhuma. Não o perco de vista, do momento em que entra, até a hora em que sai do meu campo de visão. O destino quer, definitivamente, brincar mais um pouco com meu coração.

Ele sempre veste branco. Descobri seu nome recentemente. Fiz umas pequenas investigações, por conta própria. Uma mulher tem que saber usar seus recursos para obter informações. E eu, diga-se de passagem, sei muito bem como fazer isto, já que frequentamos o mesmo local, todos os dias de semana, no mesmo horário. Já sei que este jovem homem de lindos olhos azuis faz plantão esta noite.

A tentação tem sido impossível de resistir. Tive uma ideia que me aproximaria dele, de maneira casualmente premeditada... Planeei a estratégia cuidadosamente, para parecer aquilo que não é, na realidade…

Quanto tempo leva o tempo a fechar os sulcos abertos pela dor da saudade ou da indiferença, afinal?

*

Ainda tive uma última visão do fio da tesoura, sujo de sangue, quando fui socorrida pelos homens da emergência, antes de perder os sentidos, momentaneamente, em meio à grande poça de líquido vermelho, formada no chão, à minha volta…

Ele sorri subtilmente ao me ver entrar. Não me pareceu surpreso, quando a ambulância me trouxe, deitada na maca, entrando às pressas pela emergência a dentro, com os pulsos vertendo sangue. Mal sabe ele que eu faria de tudo para voltar a ter a sua atenção, só para mim, outra vez…

Ainda ouço, antes de desfalecer de fraqueza, vozes que não sei se são reais ou não.

“Déja-vu?”

“Pois é. Parecem mais profundos, desta vez.”

“Por que ainda não internaram esta maluca num manicómio? Preparo os instrumentos de cirurgia?”

“Sim, claro…. Como de costume! Deixe-os perto da mesa, na sala, ao alcance da mão.”

“Depois, colocamos no mesmo quarto? A Administração vai ter que saber disso…”

“Tenho certeza que sim. Certifique-se somente que não haja nenhum instrumento cortante por perto! Mande trazer talheres de plástico, por via das dúvidas.”

sábado, 30 de outubro de 2010

Em Olhos de Mar


A mulher, sentada sobre a grande rocha à beira mar, parecia alheia ao tempo e ao espaço à sua volta. Seu corpo miúdo e bem formado, escondia a verdadeira idade, enquanto seu rosto de menina amadurecida trazia pequenos vestígios de uma vida melancólica, marcados na testa e em volta dos olhos. O vento da tarde brincava com as madeixas de seus cabelos loiros, enquanto os pensamentos vinham e iam, como as ondas a arrastar-se sobre as areias à sua volta. Em seus inquietos e cristalinos olhos, perdidos na distância, onde o horizonte confunde o céu com o oceano, as lembranças iam-se alternando, aleatoriamente, sem critério algum. Ela se deixava levar, sem considerar a dor que sua alma já suportara, ou as velhas cicatrizes deixadas por acontecimentos de outros tempos. Por que razão vinha o presente trazer, cruelmente, o passado de volta, como um cadáver despejado aos seus pés, trazido por um mar de memórias?

- Qual é a sua idade?

A pergunta não era somente retórica. O rapaz, de pé atrás do balcão do bar, mostrava uma certa inquietação perante a mulher dez anos mais velha que ele e que agora inquiria-o, com uma naturalidade que ele não possuía.

- Dezoito. Por que a pergunta?

Ele se colocara na defensiva. Os cabelos cacheados, de um castanho claro, emolduravam-lhe a face angulosa. Ela percebeu que ele trazia uma melancolia no olhar, que não desaparecia quando sorria.

- Você parece tão jovem, entretanto suas poesias parecem ser escritas por uma pessoa que já passou por tanta coisa na vida…

A frase, assim colocada, fê-lo sentir-se desconfortável. Aquela mulher pisava uma linha que ninguém havia sequer chegado perto, antes dela. Ele não costumava falar de si próprio. A escrita era seu ponto de fuga – invisível - na paisagem desenhada pelos dedos da vida, que mal começara a se descortinar, perante aqueles inexperientes olhos, de um verde musgo semi-escondido por detrás da quase reticulada flor de renda castanha. Não comentou a resposta, apenas baixou o olhar. Ela sorriu levemente, a pensar naquela timidez, como uma característica que o fazia encantador, a seu ver.

- Me dê a sua mão, aqui.

Ele não pensou, apenas estendeu a mão, que ela segurou firmemente, enquanto dava um longo e profundo suspiro, fechando os olhos ao mesmo tempo. A mão dela era pequena, delicada, morna e macia. A dele era fria, grande, com dedos longos e fortes, mas não chegava a ser áspera. Ele sentiu-se incomodado. Puxou a mão com delicadeza, para não magoá-la. Ela apenas riu, divertindo-se com a atitude desajeitada dele.

***

As intermináveis tardes mornas de Outono passaram a ser amenizadas pelas visitas constantes, nas horas mais quietas, acendendo uma pequena chama de conforto no peito do rapaz. Ele, que nunca havia se sentido especial, ansiava por aqueles encontros casualmente intencionais. Ela tinha o propósito de surpreendê-lo, mudar alguma coisa naquela aparência verde e despreparada, moldá-lo como Pigmalião havia feito ao mármore, para amar sua criação, quando esta estivesse pronta. A vida, propriamente dita, viria em seguida, em resposta aos caprichos do destino.

***

- Será que ele saberá o que fazer? É apenas uma criança…

Ante a pergunta e a observação da amiga, assumia que a natureza tomaria seu próprio curso, se fosse necessário.

- Se não souber, depois que estiver lá, não há mais volta…

Há uma parte animal em todo ser humano – o instinto não falha, quando a razão é legada a segundo plano. As reacções do corpo não mentem jamais e ela contava com essa verdade universal. O melhor, mal sabia ela… assim como o pior… ainda estava por vir. Que raízes seriam profundas o suficiente para aguentar as ventanias que viriam a seguir?

***

Poucos dias depois, observava a maneira meio desastrada com que ele abria, com dedos trémulos, o presente que havia-lhe entregado. Dentro do pequeno pacote, uma caneta dourada, com o nome dele gravado, deixou-o completamente sem acção. Com um rubor autêntico, aquecendo-lhe a face, só soube dizer obrigado e mordeu o lábio inferior, o gesto que a fazia estremecer. Ela desejou beijar aquela boca de lábios bem desenhados, mas conteve-se na ocasião.

- É para escrever os poemas. Uma caneta digna da beleza de sua emoção.

Ela usava o pronome “você” com precisão e destreza, mostrando afinidade com a língua, bem e correctamente usada. Mantinha o coloquial fora do seu linguajar habitual, não por arrogância, mas por índole. Quanta coisa o jovem ainda tinha que aprender da vida, para se aproximar da experiência e da sabedoria daquela mulher?

***

Sabendo onde o rapaz guardava o caderno de poesias, ela ia, ávida, em busca de sinais deixados, intencionalmente. Muitas vezes deixava mensagens escritas para que ele as lesse quando chegasse da universidade. Um longo poema, feito especialmente, foi presenteado com uma marca de batom, deixada enquanto estava ausente de casa. Naquele, ele abria um mundo novo, mostrando-se amadurecido e preparado, lançando um convite, irrecusável - embora velado - ao desconhecido. Ao ver a marca no papel, sorriu. Tinha ficado reticente se deveria mostrar, abertamente, aqueles versos, mas a vida - ou parte dela - se encarregou de fazer a sua parte. Ele se perguntava se os deuses estariam ao seu lado…

***

A ruela por trás do horto estava deserta, excepto pelo casal sentado sob a sombra de uma grande árvore. A luz do sol caía sobre as folhas que atapetavam o chão, pintando de luz e cor a amena tarde de Outono. A mulher beijou as mãos pálidas e frias do rapaz, que pendeu a cabeça sobre a dela, para surpresa da mesma. Ele fechara os olhos e cheirava-lhe os cabelos louros, pela primeira vez, desde que se viam, há meses. Enquanto sempre havia sido cuidadoso, ela havia sido ousada, mas desta vez, ela quem fora surpreendida. Os dedos entrelaçados, o ar sério e verosimilmente preocupado, no rosto juvenil, fizeram-na estremecer, quando ele mordeu, como de costume, o lábio inferior. Ela não resistiu e aproximou-se, com cuidado, para que ele não fugisse do que parecia inevitável. Aquele contacto tinha um sabor insólito. Era a aventura, o proibido e um estranho prazer, juntos num mesmo pacote. Os lábios dele, macios, tocaram os dela, devagar e suavemente. Apesar de tudo que já vira e experimentara, ela não estava preparada para aquilo. O beijo fora suave, como a sensação da seda na pele nua. Ele não era um aprendiz, de forma nenhuma, concluiu a mulher que quis abandonar-se ao momento e avançar com ardor, mas ele pediu-lhe calma. Queria senti-la, completamente, vagarosamente, detalhadamente. Foi então que ela compreendeu que um aprendiz pode tornar-se um mestre, desde que tenha as ferramentas necessárias.

***

Na penumbra do quarto, o contacto entre os corpos confundia as sombras, em nuances de luz, cores, volumes e sons. Ela estava certa. A natureza sabia levar seu próprio curso. Ela conduzia, ele seguia. Ela se entregava, ele tomava. Ela ousava, ele controlava. Ela aprendia a se deixar levar e ele a levar. Quem era mestre e quem era aprendiz, naquela hora, não importava. O que importava era estar ali, naquele momento, com aquele menino que se tornava homem, colado à pele dela, como uma tatuagem, que bebia dela como se tivesse sede, que cruzava a fronteira do mundo dela, como se fosse parte do mesmo corpo que possuía. Deixaram-se arrastar pelas ondas que iam e vinham, como no movimento incessante e harmonioso do mar sobre as areias da praia. E ela explodiu, como se as cores fossem todas graduações de vermelho, levando-a a gritar, um grito que ficou abafado pela boca quente do amante. Ele, por sua vez, sentiu-se envolvido por uma onda de calor, que lhe subia pelo corpo, despertando sensações que desconhecia, enquanto ia e vinha, devagar, provocando reacções descontroladas na mulher sob o corpo dele. Quando sentiu seu próprio corpo lançar-se para dentro de um mundo que apenas começara a conhecer, abraçou-se a ela, como se fosse um náufrago agarrando-se à sua tábua de salvação… e chorou. Ela entrelaçou-se ao corpo do menino-homem e chorou junto com ele. A obra ganhava vida, surpreendendo o artista, no melhor estilo da mitologia grega. Ficaram ali, como se fossem um só corpo, na meia-luz do quarto, até o mundo despertar, outra vez, chamando-os para vida que os esperava lá fora. Era a realidade a roubar-lhes a fantasia que acabara de os envolver em sua ténue teia de prata.

Diz-se que a teoria do yin-yang é mais verdadeira que se possa controlar, conscientemente. Para tudo existe um equilíbrio. Para todo mal há um bem; para toda dor, um prazer … e vice-versa… Quantas almas um homem deve possuir, até que lhe roubem toda a esperança? Quantos sonhos serão extirpados à realidade, pela crueldade acre da perfídia? Que ardis se escondem por trás das supostas boas intenções?

***
- Não posso aceitar isso, de jeito nenhum. Eu tenho que me explicar.

A mulher tentava apegar-se à coerência e aos pequenos vestígios de esperança que a notícia, trazida pelo rapaz, ainda deixava aceitar. Era o fim de um sonho que mal começara a acontecer. Por que razão deveria abrir mão da pequena conquista, que se tornara sua única loucura? Há quanto tempo ela não se sentia tão viva? E, agora…

- Por favor, não vá se explicar. Vai ser pior. Não quero que sejas atacada, como eu fui. Não pense que foi fácil ter a família inteira reunida, me agredindo e condenando… As evidências estavam à mostra, na folha de papel com a marca de batom e no bilhete que eu não joguei fora, por prezar tanto a sinceridade da tua emoção. Não temos outra saída. Foi-me dado um ultimato. Temos que por um fim a este caso. Nós sabíamos que isto iria acontecer, mais cedo ou mais tarde. Só não achamos que seria tão cedo. Sei que não é justo, mas não vejo outra alternativa. Temos que nos afastar, antes que seja tarde demais.

Ele tentava ser racional e manter os pés firmes no chão, embora seu coração estivesse estraçalhado. Já era tarde demais e ele sabia. A emoção havia sido relegada a segundo plano, depois da tal reunião, quando sua voz não havia sequer sido ouvida, nem suas razões - se é que havia alguma - consideradas. Nem toda a verdade fora contada, para poupar a mulher de maiores transtornos. Nem tudo que ouviu, ele contou. Ele estaria sendo vigiado de perto e lembrado, em cada oportunidade que aparecesse, das consequências de sua irresponsabilidade, por um bom tempo. Ela jamais saberia nem este, nem mais detalhes.

Ele manteve-se sério e irredutível entre o o que sentia e queria e o que devia ser feito. Ou resistia firmemente ou jogaria tudo para o alto, enfrentando uma guerra que não estaria preparado para vencer, tanto por inabilidade quanto por imaturidade. Sua vontade era abraçar, beijar e proteger a mulher, talvez até morrer por aquela, cujos olhos marejavam com um misto de ódio, decepção e impotência, face à realidade que lhe jogava contra uma parede tão sólida quanto o que sentia. Ele sabia, porém, que os alicerces daquela relação rompiam-se, naquele momento, por falta de uma estrutura consistente para sustentar o peso do futuro e da responsabilidade. Por dentro, sentia o punhal afiado e perverso do destino a dilacerar-lhe, profundamente, com seu corte certeiro e cruel. Um golpe cujas consequências seriam lembradas para todo o sempre. Uma cicatriz profunda demais a marcar eternamente a alma despreparada de um homem, que mal desabrochara para vida e que nunca mais seria o mesmo.

A mulher não conseguia ouvir o discurso com a razão, mas com a emoção. Sentia-se decepcionada, traída, revoltada e só. Sentia que ele entregara os pontos muito cedo e sem luta. Quão frágil era a linha que separava a coragem do medo, ou o amor do ódio…

***
- Mãe!

Os pensamentos da mulher esvanecem com o presente trazendo-a de volta à realidade. Virou-se para onde o menino de cabelos castanho-claros e olhos verdes vinha, desceu da rocha onde se encontrava e foi ao encontro do filho que a chamava. Os cachos que decoravam a face angulosa do menino, dançavam ao vento da tarde, enquanto ele corria de encontro à mãe. Ela abraça-o, beija-lhe a cabeça e saem pela praia, a caminhar sem dizer nada. Havia um entendimento entre eles, que não precisava de palavras. Estas seriam desnecessárias naquele momento e em qualquer outro. Existem segredos que, para permanecerem ocultos, devem ser completamente enterrados em algum lugar secreto da alma… terna e eternamente.

Ela sabia que o tempo (sempre) cura as feridas, mas não apaga as cicatrizes jamais.