domingo, 7 de agosto de 2016

Código de Barras (Parte 2)


- Como é que eles desapareceram daquele jeito?

- Não sei. Mas a mim pareceu-me que não é muito bom sinal. Quem são eles, afinal?

- Também não sei, mas gostaria muito de descobrir…

- Não acho que vamos voltar a encontrá-los. A não ser que…

Um pensamento perturbador passou pela mente do rapaz de óculos, interrompendo o fluxo das palavras. O outro logo percebeu o que ele queria dizer e balançou a cabeça, negativamente.

- Não… não… não… Não acredito. Não pode ser…

Coçou a cabeça, como quem procura uma razão para desfazer-se do mau pensamento.

- Ou pode?

- Nós dois estamos cansados de saber que tudo é possível… tudo mesmo!

- Só que não teremos tempo para descobrir. Temos que voltar à base amanhã... felizmente…

- Ou não…

- Ou não o quê?

***

- Fica quieta que eu vou soltar-te, devagar. Promete que não vais gritar. Não quero machucar-te... A não ser que seja necessário… e se for…

Ela acedeu. Ele afrouxou, devagar, a mão e o braço, deixando-a livre, mas sob sua cuidadosa atenção e vigilância.

- Estás maluca? Tu não podes expor-nos desta forma. Queres colocar-nos em risco, correndo no meio da multidão, daquele jeito? Sabes o perigo em que nos colocaste?

- Aparentemente quem expôs-se demais não fui eu. Olha bem para ti. Por que aqueles dois rapazes estavam a seguir-nos? Não pareceu-me que fosse ao acaso…

- Não passam de uns intrometidos. Nós podemos lidar com isso, mas não agora. Temos coisas mais importantes para tratar. A nossa tarefa é mais premente, neste momento. O tempo que nos resta é muito curto.

- Isto é mesmo essencial ou é, de facto, um grande engano? Ou, talvez, seja apenas um capricho, por não querermos aceitar o inevitável?

- Capricho? Sobreviver é um capricho, agora? E de onde vem esta dúvida, assim, do nada?

A moça olhou o homenzarrão, séria e firmemente. Seu semblante estava sombrio e um tanto desafiador. No fundo de seus olhos, porém, pairava uma triste dúvida. O certo já não lhe parecia tão certo e o óbvio já não era tão óbvio…

Seus olhos pareceram perder o foco e sua expressão mudou, de repente, de desafiadora para melancolicamente angustiada.

- Ainda não sei dizer, ao certo. Algo me diz que o sacrifício não dará o resultado esperado.

Aquela evidência de dúvida… na mente, no discurso e no comportamento da jovem mulher não eram normais e nem indicavam bons sinais…

Eles, na verdade, não estavam treinados ou programados para questionarem o propósito de uma tarefa que lhes fosse atribuída. Ou iam em frente e até a conclusão, ou colocariam em risco muito mais que o simples desígnio de uma missão considerada importante demais.

Garantir a sobrevivência, a qualquer custo, era, definitivamente, uma grande incumbência… e não somente para eles dois… só que, talvez, nunca chegasse a ser vista como tal… infelizmente…

Aquele era o heróico e triste destino dos soldados anónimos.

***

- Nosso voo é ao final da tarde. Vamos arranjar as coisas e passar no Mercado Público, uma última vez. De lá vamos direto ao aeroporto.

Embora não fosse o lugar predileto do rapaz de óculos, ele concordou. Tinha esperança de reencontrar a moça da trança negra, mas não manifestou seu desejo em alta voz. O outro estranhou a falta de protesto do amigo, mas ficou quieto. Queria aproveitar as últimas horas na ilha, antes de partirem de volta. Talvez não voltassem tão cedo… talvez nem sequer voltassem…

- Vamos fazer o ‘check out’ e sair em seguida, para aproveitar bem o tempo que nos resta aqui.

Pouco tempo depois, os amigos saíam com as mochilas às costas, em direção ao Mercado Público. Nas mentes dos dois haviam propósitos distintos, misturando-se a uma série de preocupações.

***

- É quase hora de voltarmos. Temos que partir daqui e concluir nossa tarefa o quanto antes. As duas cidades mais populosas do país já estão preparadas. Resta-nos ‘apertar o gatilho’, por assim dizer. Também já não precisaremos voltar para cá. Vamos ser levados de volta, de lá mesmo… cada um de uma delas… separados…

- Eu não quero ir. Não acredito que vamos ser bem-sucedidos numa loucura dessas...

- E desde quando tu tens esta opção?

- E se não der certo? E se…

O homem interrompeu-a, irritado.

- Se isso... Se aquilo… chega de se’s! Nós só saberemos, SE terminarmos aquilo a que viemos… Esse é o único SE que importa! Agora, vamos!

***

- Não te vires agora. Finge que estás interessado em alguma coisa lá na tua frente.

- Ok, mas diz-me o que está acontecendo…

- Código de barras diz-te alguma coisa?

O rapaz de óculos parou, como se estivesse congelado. A decepção que sentiu antes, por não  encontrar a moça no Mercado Público, desapareceu instantaneamente. Por alguma razão estranha, porém, um arrepio subiu-lhe pelas costas.

- Estão indo para portas diferentes. Acho que vão separar-se. A moça veio para o lado de cá…. Está caminhando para perto da porta. Já podes olhar, agora.

O rapaz de óculos disfarçou um pouco e olhou na direção da porta, onde os passageiros começavam a enfileirar-se, em resposta ao chamado que acabara de ser ouvido pelos altifalantes da sala de espera do pequeno aeroporto. Os dois levantaram-se e seguiram a fila, mostrando desinteresse em quase tudo, exceto na moça de cabelos muito negros, uma dezena de passos à frente dos dois.

Em pouco tempo a porta de correr abriu-se e os passageiros passaram por ela, depois de mostrar os documentos, a dirigir-se para a aeronave que acabara de preparar-se para descolar. O homem de cabeça rapada dirigiu um último olhar para a moça, que atravessava a porta e avançava em frente, sem olhar para trás. Provavelmente certificava-se que ela não desistia.  

Os dois cruzaram a porta logo em seguida, com os olhos na dona da trança negra, que mal conseguia esconder uma tatuagem incomum e intrigante. Apressaram o passo para chegarem mais perto e observarem onde ela ia sentar. Quem sabe pudessem entrar em contacto…

Ao chegarem à pequena porta do grande avião, a aglomeração lenta dos passageiros a arranjarem as bagagens de mão e à procura dos assentos, distraiu os dois.

- Boa tarde. Sejam bem-vindos. Assento, por favor… Por este lado, por favor.

A comissária orientava os passageiros e separava-os nas duas fileiras, de modo a agilizar o embarque. Os dois, agora, estavam mais preocupados em alocarem as bagagens por cima dos assentos. O rapaz de óculos apressou-se a deixar a mochila e a procurar, rapidamente, antes de sentar-se, por uma figura conhecida mais ao fundo.

- Desculpe. Com licença…

A comissária passou pelos dois a passos apressados, na direção dos fundos da aeronave. O cabelo amarrado num coque atrás da cabeça mal conseguiu esconder uma pequena marca escura… uma tatuagem…

O rapaz de óculos ficou lívido quando viu-a aproximar-se da moça de trança e entregar-lhe um pequeno pacote. A moça olhou-a com um ar incerto e sentou-se, muito séria. A outra posicionou-se na fileira de trás, de onde podia observar a passageira, bem de perto…

- Senhor, sente-se, por favor e afivele o cinto de segurança. Já vamos partir…

O rapaz sentou-se a falou, em voz baixa, ao amigo:

- Há algo muito errado aqui.

Ele contou o que viu e ambos concordaram que estavam presenciando uma estranha sequência de acontecimentos. A meio do voo, quando as coisas pareciam mais controladas, embora ainda intrigado e quando voltava do toilete, o rapaz sentiu que alguém passou por ele, esbarrando, no momento em que curvava-se para afastar o cinto de segurança do assento, antes de sentar-se. Ele chegou-se para a frente e deixou uma moça passar.

- O que é isso saindo do teu bolso?

O rapaz puxou um pedaço de papel dobrado do bolso, que não estava ali, antes. Ao desdobrar, viu uma pequena mensagem escrita com uma letra não muito comum, quase rebuscada demais.

- Espere do lado de fora do aeroporto, na chegada, junto aos táxis. Preciso de ajuda…


Por baixo, havia uma marca, que ele logo reconheceu e que o deixou mais preocupado. Ele estendeu o bilhete ao amigo e os dois se entre-olharam, sem dizer nada, ao reconhecer um pequeno código de barras como assinatura…


domingo, 31 de julho de 2016

The Barcode (Part 1)


- How did he get into our photo, like this, out of the blue?

- I don’t know. He must have been sitting there for a while... but we never noticed it...

- What's that mark over there, on the back of his head?

- It looks like a tattoo... Zoom it, please... I think it's a barcode!

- Ugh!!! What kind of people would do that? I’m not saying that’s not original... but he looks more like a soldier or a scientific experiment, than a normal man. A bar code is not a beautiful picture anyway to be tattooed on someone’s head...

- He is pretty scary, actually and not the type you want to meet when you are alone in a dark alley...

- He’s not that scary, I think... or is he?

They both laughed. They had been scrutinizing the details of a "selfie” just taken on the terrace of the Café, where they were relaxing for a while. A stranger was clearly seen in the background for their own surprise. He was a big man, with shiny shaved head and was sitting half back to them. A weird tattoo was engraved on the back of his head, almost where the neck began. A black T-shirt, tightly fit to the body and arms, evidenced hard muscles worked out for long hours in the gym and weight lifting or perhaps even military training. The skin was very tanned, but in a natural and permanent way, as of a person living in the tropics, used to the outdoor life and the effects of many hours of skin exposure to the sun.

An uneasy feeling went through the minds of the two friends, who slowly turned around, without saying anything. The place where the stranger was, however, was already empty and there was no one around with similar-looking, to their frustration.

- I had a bad feeling.

- Weird. Me too…

***

- Let’s go to the public marketplace. I’d love to have something nicer to eat and drink.

- It smells like fish. And there’s too many people...

- Stop being fussy and let’s move. There’s also a lot of people here on the boardwalk and you don’t complain. I don’t like to stay so long in the sun and I'm making you company anyway. I would rather sit on a bench, underneath the fig tree and see the passers-by or go to some cooler place, like those corridors in the Marketplace...

The Public Marketplace was an old building that had been restored to have some modern features introduced, but keeping the original architectural pattern of over two centuries ago. The last reconstruction had rescued both the style and the initial colors standard.

The moss-green Roman arched doors and windows contrasted harmoniously with the yellow walls of the building. The very high ceilings kept the building cool and pleasant throughout the warm season, without the need of air conditioning.

Two separate structures, the north and the south wings, were connected by Roman arches on the extremities, with one lookout tower on each extremity and, in the central part, there was a little square that housed the terraces of a food court, frequented both by locals and tourists.

Open corridors ran over the heads of passers-by, facing the inside of the small square. Stair accesses, one on each side, at the entrance and exit, completed the harmonious and simple frame, but with a strong presence in the old city center.

At the time when it had been built, the south wing was closer to the port, to facilitate the unloading and avoid unnecessary expenses on transportation of various goods and the fish that came fresh from the open seas, in numerous fishing boats of the island's companies. It was the place where the best, most abundant and fresher fish was sold. 

Later on, the bay was dredged up and the sand taken from the bottom of the channel filled part of the area where the quay was initially, causing the need of the docks to be moved to the other side. The building of the marketplace, however, remained in its original place, with its traditional trade, tailored to the needs of the local people, tourists and merchants.


The two entered the south wing, which still held the trade of fish and seafood, but had also evolved to a series of 'boxes', closer to the entrance, where they served typical and traditional dishes of the island. They ate some crab and shrimp fried balls, the local delicacies, while sipping a cold draught beer and watched the passers-by coming and going with their loud talk, trying to make themselves understood in the midst of a Babel of strange and familiar accents.

At the other end, the 'boxes' were in a frenzy trade and the scent of fresh fish, because of the wind, came towards them.

- I said this place stank...

- Of course. This is the fish marketplace after all...

A young woman dressed in very dark clothes walked in with quick steps. She had very black and shiny hair arranged in a braid that fell down along her back, leaving the white skin of her neck at sight.

For a second, the boy wearing glasses had the impression he saw a small mark on the back of her neck, on the base of her braided hair, as he watched the woman haste up and disappear through the center exit door which led to the north wing. The young man looked at his friend with a strange expression and an unexpected paleness to his face.

- What is it? It looks like you're going to pass out... You all right?

- I think the bar code tattoos are in fashion around here…

- What? This is nonsense...

- I think I saw someone else with the same kind of marking... Come with me... I want to be sure of something...

The two rose and went toward the exit. 

Someone pushed them briskly to the side, moving quickly ahead and without apologizing. It was a big, muscular man with a shaved head, dressed in a black t-shirt. Behind the head, on top of the neck, there was a small tattoo, depicting a bar code.

- Let's go!

The two followed the man with quick steps. That could not be a mere coincidence. At the other end, amongst the passersby who walked lighthearted, a dark-haired woman with a long braid, also dressed in black, walked very fast, without looking back. The man was very close to her and somewhat away from the two, at that time.

The two boys walked forward when she turned left, after passing the arch over the east entrance, with the shaved head man following her very closely.

They turned left when they reached the portal, but could not see the two characters they were chasing without even knowing why, amid the people walking up and down the busy streets. They looked around, but did not see that man or the woman. They ran up the street behind the Customs building, but no one who looked like them walked with fast or slow steps...

They had simply disappeared in the midsummer afternoon buzz.

The two young men finally gave up and went on, without even talking, following the striders who walked around and ahead over the cobblestone mosaics of the boardwalk floor.

A street musician played an old guitar and sang a known song to a tiny audience.


Behind the Venetian door of the lookout tower entrance of the public market, a big man with tanned skin, kept a hand covering tightly the mouth of a girl with black hair and pale skin. The other arm held her fragile body very firmly, preventing her from moving... 

On the outside, life was going on still and normal with tourists and locals walking by, oblivious to what was happening behind the venetian blinds of the green painted door...


segunda-feira, 25 de julho de 2016

Código de Barras (Parte 1)


- Como é que ele apareceu ali, do nada, dentro da nossa foto?

- Sei lá. Devia estar sentado ali há algum tempo…só que não o vimos…

- O que é aquilo ali, atrás da cabeça dele?

- Parece uma tatuagem… Olha no zoom… acho que é um código de barras!

- Uff!!! Cada tipo que aparece por cá! Não quer dizer que não seja original, até… mas parece mais um soldado ou um experimento científico, que um homem normal. Um código de barras não é uma figura tão bonita assim, para ser tatuada na cabeça...

- Ele é bastante assustador, na verdade. Não é do tipo para encontrar-se quando estiver sozinho.

- Também não precisas exagerar. Nem é tao assustador assim… ou é?

Os dois riram. Olhavam uma ‘selfie’ que haviam tirado na esplanada do Café e, ao fundo, aparecia um homenzarrão de cabeça rapada, sentado meio de costas para eles, com uma tatuagem estranha, gravada na parte de trás da cabeça, quase onde o pescoço começava. Uma t-shirt preta, bastante justa ao corpo e braços, evidenciava músculos extenuadamente trabalhados por longas horas de ginásio e musculação ou, talvez até, treinamento militar. A pele era muito bronzeada, mas de uma maneira natural e permanente, como de uma pessoa que vive nos trópicos, acostumado com a vida ao ar livre e com os efeitos de muitas horas diárias de exposição da pele ao sol. 

Uma sensação incómoda passou pelas mentes dos dois, que sem dizerem nada, viraram-se lentamente, na direção de onde o homem se encontrava. O lugar onde ele esteve, porém, já estava vazio e não havia ninguém, com aspeto semelhante, por perto, para frustração dos dois.

- Tive um mau pressentimento.

- Estranho. Eu também…

***

- Vamos ao Mercado Público. Eu adoro aquele lugar.

- Tem cheiro a peixe. E tem muita gente…

- Deixa-te de histórias e vamos. Aqui no calçadão também tem muita gente e não reclamas. Também não gosto de ficar tanto tempo ao sol e estou a fazer-te companhia. Preferia ficar sentado em um banco, em baixo da figueira e ver o pessoal passar, ou em algum lugar mais fresco, como naqueles corredores do Mercado…


O Mercado Público era uma construção antiga, que havia sido restaurada, para dispor de algumas modernidades, mas mantendo o padrão arquitetónico original de mais de dois séculos atrás. A última reconstrução havia resgatado tanto o estilo, quanto o padrão de cores inicial. 

As portas e janelas, em arco romano e pintadas de verde musgo contrastavam harmoniosamente com o amarelo das paredes do edifício. Por ter um pé direito bastante alto, mantinha-se fresco e agradável durante toda a estação quente, sem necessidade de ar condicionado. 

Era construído em formato de um retângulo vazado, contendo dois edifícios separados, a ala norte e a sul e, na parte central, abria-se uma praceta que abrigava as esplanadas de uma praça de alimentação, bastante frequentada, tanto pela população local, quanto pelos turistas. 

Duas torres de atalaia apontavam para o leste e duas para o oeste, por cima de dois pares de arcos romanos, que davam entrada para o mercado e uniam as duas alas. Corredores corriam por cima da cabeça dos transeuntes, pelo lado de dentro da praceta, fechando o retângulo. Escadarias de acesso, uma de cada lado, na entrada e na saída, completavam o quadro harmonioso e simples, mas com uma presença forte no centro da velha cidade.  

Na época em que fora construído, a ala sul ficava junto ao porto, para facilitar a descarga e evitar gastos desnecessários com o transporte de mercadorias diversas e do pescado que chegava fresco do alto-mar, nos inúmeros barcos pesqueiros das companhias da ilha. Era o local onde o melhor, mais abundante e mais fresco pescado era comercializado. 

O aterro fez a terra crescer e o porto ser extinto, mudando para o outro lado da baía. O mercado, porém, permaneceu no local, com seu comércio tradicional, adaptado às necessidades do povo local, turistas e comerciantes.

Os dois entraram na ala sul, que ainda mantinha o comércio de peixes e frutos do mar, mas também havia evoluído com uma série de 'boxes', mais próximos à entrada, onde serviam pratos típicos e tradicionais da ilha. Comeram uns bolinhos de siri e camarão, enquanto bebericavam um chope gelado e observavam os transeuntes a passarem e a conversarem alto, para tentar fazerem-se entender no meio daquela Babel de sotaques estranhos e familiares. 

Na outra extremidade estavam os 'boxes' de peixe e o aroma, por causa do vento, vinha na direção deles.

- Eu disse que esse lugar cheirava mal…

- Claro. É o mercado de peixe…

Uma moça, vestida com roupas pretas, passou por eles, a passos ligeiros. Tinha os cabelos muito negros  e brilhantes arrumados em uma trança que descia-lhe pelas costas, deixando a pele muito branca do pescoço à mostra. 

Por um segundo, o rapaz de óculos teve a impressão que viu uma pequena tatuagem por baixo da trança, enquanto observava a mulher apressar o passo e desaparecer na saída central, que dava para o lado norte. O rapaz olhou o outro com uma expressão estranha e uma palidez inesperada, para o calor que fazia.

- O que foi? Parece que vais desmaiar… Estás bem?

- As tatuagens de códigos de barra estão em moda por cá?

- O quê? Que bobagem…

- Acho que vi outra pessoa com o mesmo tipo de marca... Vem comigo… Quero certificar-me de uma coisa…

Os dois levantaram-se e foram na direção da saída. Alguém passou por eles a passos largos e empurrou-os para o lado, passando ligeiro, sem pedir desculpas. 

Era um homem grande e musculoso, de cabeça rapada, vestido com uma t-shirt preta. Atrás da cabeça, no alto do pescoço, havia uma pequena tatuagem, representando um código de barras.

- Vamos!

Os dois seguiram o homem, com passos apressados. Aquilo não podia ser uma mera coincidência. Na outra extremidade, entre os transeuntes, que passeavam despretenciosamente, uma mulher de cabelos negros, com uma longa trança, vestida também de negro, andava muito rápido, sem olhar para trás. O homem estava muito próximo dela e um tanto longe dos dois, à aquela altura.

Os dois rapazes adiantaram-se, quando a moça virou à esquerda, depois de passar o arco da entrada leste, com o homem de cabeça rapada seguindo-a muito de perto.

Viraram à esquerda, quando chegaram ao portal, mas no meio do povo não conseguiam ver os dois personagens que perseguiam, sem nem ao menos saber porquê. Olharam à volta, mas não avistaram o homem, ou a moça. Correram até a rua atrás do prédio da Alfândega, mas ninguém que se parecesse com eles caminhava a passos rápidos ou lentos… 

Haviam desaparecido no meio do burburinho da tarde de verão.

Os dois rapazes, finalmente, desistiram e continuaram, em frente, pensativos e sem conversar, no meio dos pedestres que caminhavam, em direções diversas, pelas pedras dispostas em mosaico, no chão do calçadão. 

Um músico de rua tocava guitarra e cantava uma velha e conhecida canção, para um público diminuto.


Por trás da porta em veneziana, na entrada da torre de atalaia do mercado público, um homem grande e de pele bastante bronzeada, mantinha uma mão a tapar, firmemente, a boca de uma moça de cabelos negros e pele muito alva, que tinha os olhos arregalados e o corpo preso pelo outro braço do seu algoz, impedida de gritar ou mover-se…

No lado de fora, a vida continuava normal, com os turistas e locais a caminharem, alheios ao que acontecia por trás das tabuinhas da porta pintada de verde…


***

quinta-feira, 14 de julho de 2016

The Two, At Two


She is late.

I like it better when they come together. The two. As every day... At two.

The other one has arrived already. She wears that almost too tight white uniform fastened up the front except for that top button, which opens over her breast and draws my eye involuntarily to it every time I glance at her, attracting me like a strange magnet that defies me to look away.

As soon as she got in the room, she opened the curtains and let the sun in, like she always does, at this time of the day. The place immediately seems to be filled up with life and light…. Just like her… just like a bright sunshine day…

Since I was very young I’ve never really appreciated to stay out in the sun, but now, under different circumstances, things have changed… I have changed… I have really changed...

Now I wait for this moment of the day, just to have this unfamiliar and simple pleasure...

It's my tea time. Taking into account that lunch comes too early, half an hour before noon, bringing me some tea, at two, is a gift for several reasons. One of them is to have them both giving me attention and care…

She comes at last, so stylish and serene, though a bit late. She is always so well dressed. I love the way she arranges her hair and how she wears that ‘tailleur', which suits her so well… The well-marked waist… The very upright shoulders…

Everything in her is so awesomely remarkable...

Her lips are always so red. Her skin, always so pale. I wonder if that's the effect of the makeup she wears… Those legs are always so firm on the high ‘stiletto’ heels, marking the beat with that intermittent toc-toc on the wooden floor. I wonder if her feet suffer in those so fine and so fashionable shoes. A sacrifice, certainly, on behalf of the elegance.

She reminds me of an aunt of mine, always standing so straight, keeping her looks in an almost limitless vanity…

- Good morning, sweet uncle.

I love it when they greet me like the Spanish do, calling me ‘uncle’.

I consider it a caring and loving way, as it is always followed by a spontaneous and sweet grin. I reciprocate the smile. It's the best I can do, under the current situation.

She respects my will and leaves the cat, which sleeps quietly at my feet, alone. She knows I like having him around and close to me... as well as her... and the other one. Having a bit of their attention and their gaudy presence in the room makes me feel so alive and joyful, besides the condition I’m in…

She reads my eyes. She knows what's going on in my mind. She is aware that I entertain myself observing them, since there is not much else I can do…

I like to watch them both in continuous movement in the room, telling me jokes, smiling and giggling, just like two swallows flying around and making my last summer still so warm and so bright...

Would they pay me the same attention, if circumstances were different?

I suppose they feel sorry for me... and my current state...

Oh, God! I hate this damn cancer! I hate this cursed sickness that now keeps me manacled, subdued and doomed to this bed... my last one... before the inevitable finally comes...

I truly loathe the ones who are overwhelmed by the sight of this sick man in his bed, but taking into consideration the way things are now, I just could never judge these two amazing creatures… nor would I criticize anyone else. Not today. Not now. Not anymore…

Today I just want to look at these two beautiful summer forecasting swallows flying in my room and making my last joy before all the lights are turned off for once and forever...

Tomorrow, at two, the two - the blonde nurse, in her impeccable and well-dressed white uniform and the brunette psychologist, in her especially designed navy-blue 'tailor-suit' - will no longer have to come back here... ever again…


quinta-feira, 7 de julho de 2016

As Duas, Às Duas


Está atrasada.

Prefiro quando elas veem juntas. As duas. Como todos os dias... Às duas.

A outra já chegou. Costuma usar um uniforme branco, de uma peça só, abotoado na frente, mas o primeiro botão, na altura do peito, parece provocar-me.

Como sempre, àquela hora, ela abre as cortinas e deixa o sol entrar… como ela… cheia de luz e de vida, pelo quarto adentro. E eu que nunca gostei muito de ficar ao sol, agora espero por este momento, só para ter um prazer tão simples…

É a hora do meu chá. Levando em conta que o almoço vem muito cedo, para o meu gosto, trazer-me o chazinho, às duas é, mesmo, uma dádiva, por vários motivos.

Ela entra, finalmente. Elegante e tranquila, apesar de um bocadinho atrasada. Sempre bem vestida. Adoro a forma como arranja os cabelos e como veste-se com aquele ’tailleur’, que lhe cai tão bem. A cintura bem marcada. Os ombros muito aprumados. 

Tudo nela é muito… 

Os lábios sempre tão vermelhos. A pele sempre tão pálida. Será que aquilo é maquiagem? As pernas sempre tão firmes sobre aqueles saltos altos e finos, a marcar o compasso com seu toc-toc intermitente. Imagino como seus pés devam sofrer dentro daqueles sapatos, tão finos, tão na moda. Um sacrifício, certamente, em nome da ‘finesse’.

Lembra a figura da minha tia, sempre empertigada, mantendo a aparência e uma vaidade quase sem limites…

- Bom dia, tio.

Adoro quando elas me cumprimentam assim, como os espanhóis o fazem, chamando-me de tio.

Considero que seja uma forma carinhosa, pelo sorriso tão espontâneo. Eu retribuo o sorriso. É o melhor que posso fazer. Ela respeita minha vontade. Não afasta o gato que dorme tranquilo aos meus pés. Sabe que eu gosto de tê-lo por perto… assim como à ela... e à outra. Enquanto eu tiver a atenção delas e a presença dele, sinto-me vivo.

Ela lê meu olhar. Sabe o que há dentro da minha mente. Sabe que eu entretenho-me a olhá-las, já que não há mais muito que eu possa fazer.

Gosto de observar as duas, em movimento contínuo no quarto, a dizer gracejos, a sorrir, como duas andorinhas a fazer meu último verão…

Será que dariam a mesma atenção, se as circunstâncias fossem diferentes?

Imagino que sintam certa pena de mim… da minha condição…

Eu odeio este maldito câncer! Odeio esta doença que, agora, prende-me à esta cama… meu último leito… antes do inevitável…

Embora odeie, também, que sintam pena de mim, do jeito que as coisas estão, não posso condená-las. Não hoje. Não agora. Não mais…

Hoje eu só quero olhar estas duas belas andorinhas a voarem dentro do meu quarto e fazerem a minha última alegria, antes que todas as luzes apaguem de vez…

Amanhã, às duas, as duas - a loira enfermeira, em seu impecável uniforme branco e a bem vestida psicóloga morena, em seu justo ’tailleur’ azul-marinho - já não mais terão que vir cá…


domingo, 26 de junho de 2016

Acerca de Ana Maria (Parte 2 de 2)


A porta, a bater com mais força que o habitual, deixou meus sentidos em estado de alerta, mas não consegui ouvir mais que os sons tranquilizantes e impessoais do vento e do mar. Estava do lado de fora, a trabalhar na pequena horta que cultivava na parte de trás da casa e não era possível filtrar muito do que se passava lá dentro.

O som do motor do carro foi desaparecendo na distância e sendo sobreposto pelo monocórdio e lânguido marulhar das ondas naquele ir e vir contra as areias da praia. Esperei um pouco e, depois de um tempo, mais ou menos calculado, para não parecer óbvio, entrei.

Ele estava de pé, junto à janela, a olhar para fora e não virou quando eu me aproximei, como seria de esperar.

- Aconteceu alguma coisa?

- Nada importante.

Eu tinha certeza que aquela afirmação não estava nada perto da verdade, mas respeitei a reticência da resposta e deixei-a passar como se não tivesse importância.

- OK. Preciso ir ao mercado. Vens comigo?

Na verdade, eu não precisava de nada que não pudesse esperar, mas queria ter certeza de que estava tudo bem. Como não queria voltar a perguntar diretamente, fingi não dar mais relevância ao caso que merecia, para não parecer invasivo.

- Não. Preciso fazer umas coisas. Mas se lembrares, compra laranjas, que já não temos nenhuma.

- Vou lembrar, claro.

A voz parecia muito baixa e grave. Eu percebi que não me olhou, quando o telefone tocou e ele atendeu. Apressou-se a ir para a varanda, falar com privacidade, o que não surpreendeu-me de todo, mas sentia que alguma coisa havia mudado.

Será que ele não confiava mais em mim, ou estava, tão-somente, a tentar resolver o problema sozinho?

Ainda avistei-o a andar de um lado para o outro, com o telefone ao ouvido e a gesticular nervosamente. Decidi sair e deixá-lo na casa, enquanto ia ao supermercado da aldeia, que ficava a menos de dez minutos dali, de carro. Ambos precisávamos de tempo.

Quando voltei, ele estava a caminhar na praia, com os pés na água, como se a brincar com as ondas, como fazia quando era criança e sempre que precisava pensar. Já era além do fim da tarde e eu decidi que deveria tratar de arranjar algo para jantarmos.

O que nós dois tínhamos em comum, além de muitas outras coisas, era a tendência a ficar sós quando queríamos pensar em algo sério e tomar decisões. Se precisasse conversar, ele sabia que eu estava à mão…

Quando finalmente entrou, eu estava a arranjar a mesa, para jantarmos. Ele parecia drenado de tanto pensar. Não perguntei nada, apenas esperei que falasse, enquanto eu me ocupava com os talheres, os pratos e, também, com as panelas.

- Ela ganhou uma bolsa para estudar… na América… A bolsa é patrocinada por uma grande empresa e há grandes possibilidades de que lhe deem um emprego quando os estudos acabarem.

- É uma oportunidade enorme e incomum…

- É, sim. Mas não é isso que me incomoda.

- Então?…

- Ela disse que precisava de um tempo para concentrar-se nos estudos e carreira. Eu apoio totalmente esta decisão, mas não queria que isto pusesse um fim ao que nós temos. Nenhum argumento foi forte suficiente para convencê-la a mantermos o relacionamento, apesar da distância, entretanto. Isso não é certo, pai.

- Ela tem o direito de optar. É a vida e a carreira dela. Mas hoje em dia, com a tecnologia que temos à mão, é tão mais fácil conversarem e manterem os contactos, mesmo à longa distância…

- Eu sei, pai. E as passagens não são tão inacessíveis assim…

- Pois não. Sempre arranja-se uma promoção ou outra… Vocês brigaram?

- Discutimos por divergir as opiniões em relação a ficarmos em contacto ou não. Ela disse que íamos manter contacto, sempre que lhe fosse possível, mas pediu tempo e espaço e que eu respeitasse a decisão dela…

- É justo.

- Não é. Não é nada justo.

- Dê tempo ao tempo… e à ela… ou nunca terás perdão… As mulheres não gostam que as decisões delas sejam questionadas…

- E se levar tempo demais?

- Vais ter que aceitar e aprender a viver com isso…

Ele soltou um suspiro de impotência… ou desespero. No fundo, sabia o fim que aquela história ia ter, mas negava-se a aceitar o óbvio.

***

Eu fiquei apreensivo com a decisão que ele tomara. Eu jamais faria o mesmo, mesmo porque eu sou teimoso demais para ir contra um “dá-me espaço” daqueles, como ela pediu…

Como os contactos entre eles haviam ficado cada vez mais espaçados, ele resolveu que deveria ir vê-la, na América e fazer-lhe uma surpresa. Achava que quando se vissem, tudo voltaria ao normal.

A falta de notícias desde que viajara, deixava-me com um mau pressentimento…

***

- Oh! Meu Deus!

- Eu tentei avisar-te, mas sabia que não ias ouvir-me… Nem sempre o coração ouve a voz da razão… Nós somos muito parecidos mesmo!

- Pai, eu perdi a cabeça! Isso nunca me aconteceu!

Eu olhei para a expressão de desespero, tão claramente estampada na sua face e esperei. Não havia nada que eu pudesse dizer ou fazer.

- O que faço agora?

- Não fazes nada… já fizeste…

Ele baixou a cabeça e pareceu-me que estava enterrando-se num buraco sem fundo…

Aquela angústia cortava-me a alma, mas ele tinha que bater no fundo, sozinho, para poder levantar-se. Não há nada pior que a decepção, para acabar com nossos sonhos e fazer-nos enxergar a vida com olhos menos míopes e lentes mais grotescamente verdadeiras. A crua realidade é, muitas vezes, mais dura que achamos ter forças para suportar. Viver, enfrentar e conviver com nossos erros é, também, um ato de coragem, sem precedentes. Às vezes, as forças esvaem-se, a vontade de viver vai-se junto, mas é preciso ser muito bravo, para levantar-se.

Ele estava a aprender, da pior maneira e muito cedo, para o meu gosto, a ser um adulto…

Eu não aprovei a decisão dele antes e não apoiava o que ele fez, então.

Fiquei ali, parado, a acompanhá-lo com os olhos, enquanto ele saía pela porta de trás e ia na direção da praia. Sabia que ele precisava daquele momento de solidão… ou muitos momentos daqueles… Seu caminhar parecia o de um velho, de tão pesado e arrastado…

Duas lágrimas desceram, quentes, dos meus olhos, pela face abaixo. Sentia que ele precisava de mim e queria estar lá para ele, mas não podia invadir seu martírio interior, sem que ele me desse permissão para fazê-lo. Por mais que eu quisesse protegê-lo, naquela hora, não seria capaz, sequer, de aliviar uma minúscula gota de sua angústia. Resisti e não fui atrás dele…

De longe, enquanto seguia a silhueta conhecida, a caminhar solitária, na beira do mar, imaginava o tumulto que devia ter criado, quando perdeu a cabeça e a razão e partiu para cima do rapaz que estava com Ana Maria, em atitudes muito mais íntimas que poder-se-ia esperar de um simples amigo.

Ele podia ter agido de maneira mais nobre, mas um coração partido não quer saber de nobreza ou raciocínio lógico. Se não fosse a moça a chamar-lhe à razão e expulsá-lo da esplanada onde estava com o tal “amigo”, ele teria sido preso por assédio e violência… ainda mais na América! 

Foi mesmo irresponsável! 

Mesmo para um rapaz tão centrado como ele sempre havia sido, sentir-se traído, fê-lo perder, completamente, a estribeira... não que ele não tivesse certa dose de razão...

***

- Pai?

- Ahn?

- É sempre assim?

- Assim como, meu filho?

- Dolorido. Dói sempre assim?

- Só quando a gente ama… ou amou… muito… Só quando há muito amor… ou então muita mágoa… é que dói tanto assim…

- Não é muito justo.

- Nunca é!

Ele sentou-se no degrau da varanda, cobriu o rosto com as duas mãos e chorou como uma criança.

Para mim, na verdade, ele ainda era uma criança… a minha criança, aprendendo a viver com as injustas agruras da vida. Por mais que eu tentasse consolá-lo, não iria conseguir minimizar o que ele experimentava naquele momento.

Infelizmente, quando é assim, a dor tem que ser sentida.

Ele nunca mais ia ser o mesmo. Aquela agonia ia, invariavelmente, passar, com o tempo, com outro amor, com outras visões do mundo, mas ia deixar suas cicatrizes, profunda e indelevelmente tatuadas na memória dele. Era como um batismo de fogo e aflição a marcar-lhe, para sempre, mas, também, a amadurecer-lhe os sentimentos e a ensinar-lhe a encarar a vida sob vários ângulos diferentes.

Eu daria minha alma para que ele nunca tivesse que sofrer, mas não tinha qualquer poder sobre aquilo, por isso apenas sentei-me ao seu lado, passei o braço por sobre seu ombro e puxei-o para perto de mim.

Ele não ofereceu resistência, nem mostrou-se envergonhado ao abrir sua fragilidade diante do pai, chorando daquele jeito.

Abraçado a ele, não me contive e chorei também…


***

sábado, 18 de junho de 2016

Acerca de Ana Maria (Parte 1 de 2)


- Ana Maria?

- É.

- É um bonito nome. Como ela é?

- Tem olhos esverdeados e cabelos castanho-claros, que lhe caem como uma cascata pelas costas. É tão cheia de vida, que me faz sentir que eu posso tudo, quando estou com ela.

- E podes… se quiseres…

- Só de pensar nela, eu me sinto tão bem… Ela é música e dança ao mesmo tempo.

- Estás mesmo apaixonado!

- Acho que sim. Eu penso nela o dia inteiro… o tempo todo…

- Estás irremediavelmente infectado. Não há vacina contra isso e a cura é difícil…

Ele riu. Eu também.

Era bom ver que havia crescido, tornando-se um homem responsável e bom e, agora, apaixonado pela menina Ana Maria. Só agora dei-me conta que o tempo passou tão rápido, que eu mal percebi. Há tão pouco tempo era apenas um menino a brincar com blocos de legos e bonecos de super-heróis com poderes sobre-humanos e a fazer-me perguntas sobre tudo. Agora, devo admitir, já é um ‘homem feito’, como dizia meu pai.

A imagem que me vinha à cabeça, quando o ouvia falar daquela forma, sobre o objeto de sua afeição, era de um passarinho que aprendera a voar e agora já podia abandonar o ninho e fazer seus voos solo.

Era engraçado, mas assustador, ao mesmo tempo.

Quando nasceu, confesso que senti uma emoção que não conseguia descrever. Parecia tão frágil e tão desprotegido, que comoveu-me completamente. Eu só queria ser o melhor provedor e o melhor exemplo para ele. Queria que ele sentisse orgulho de mim, num futuro, para o qual eu nem sabia como prepará-lo para enfrentar. Ao mesmo tempo, senti um amor tão grande, que minha vida deixou de ter importância, a não ser por ele. Quanta coisa eu poderia ensiná-lo e quanta coisa eu iria aprender com ele, no decorrer da sua história… da nossa história.

Tive um lampejo e uma dúvida que nunca ia conseguir responder: será que eu estava preparado?

Não estava. Sabia que não estava. O simples facto de olhar para ele, enquanto brincava, dormia, sorria ou chorava, já me enchia de emoções, que eu nunca iria saber como explicar. Com o tempo, deixei de tentar entender aquelas emoções… contentei-me com senti-las e deixá-las encher meu coração até transbordar…

Eu sabia que a vida não ia ser justa, às vezes, nem as pessoas, mas eu queria que ele tivesse, sempre, a oportunidade e o discernimento para tomar suas próprias decisões e que ele nunca tivesse motivos para arrependimento.

É claro que, por mais que desejasse, jamais iria conseguir protegê-lo de tudo. Ele ia ter que enfrentar muita coisa sozinho e eu devia prepará-lo, da melhor forma possível, mas não era um super-herói, nem um deus todo-poderoso... Era somente seu pai. Quando pensava naquilo, sentia-me tão pequeno e impotente, que doía-me a alma e meus olhos enchiam-se de lágrimas.

Ele cresceu saudável e deu-me muito poucos motivos para preocupações. Não foi o tipo de filho que eu fui. Não era rebelde, nem revoltado. Era uma criança tranquila e centrada, um menino sempre curioso e estudioso, perguntador e interessado em quase tudo que lhe passava à frente de seus olhos. Era, ao mesmo tempo, tímido e aventureiro, mas nunca demonstrava medos.  Assim como eu, ele adorava os animais e respeitava-os, como parte de nossas vidas. Passava tempos a observar o comportamento dos nossos gatos, de modo a compreender suas formas de comunicar suas necessidades e suas demonstrações de afeto. Era um rapaz muito perspicaz e atencioso e tinha um coração enorme, compassivo e muito generoso.

A tal menina Ana Maria tinha muita sorte e, se soubesse estimulá-lo a mostrar, sempre, o melhor lado dele, tinha tudo para ser muito feliz.

***
- Pai, essa é a Ana Maria.

Eu olhei para aquela criaturinha de pé, à minha frente, ao lado do meu filho tão cheio de si e visivelmente apaixonado e apreensivo. Via-se ambas as emoções contraditórias estampadas em sua face e olhos. Ele era tão transparente quanto eu.

A menina tinha olhos grandes, de uma tonalidade interessante de verde e longos cabelos a cair-lhe em cachos pelas costas. Bem como ele havia descrito e, talvez, muito mais agradável aos olhos que eu houvera imaginado, não sei por que motivo. Talvez por puro instinto de proteção à minha cria, havia avaliado mal a descrição que ele fizera da moça.

Era fácil ver a razão pela qual ele estava apaixonado. Além da beleza natural, ela emanava uma tranquilidade enorme. Senti uma ponta de ciúmes, mas também um alívio, ao perceber que os dois davam-se bem e, pelo jeito, estavam felizes.

Ao olhar para eles, assim, tão jovens e tão bem, eu não pude impedir de pensar em mim também e no meu futuro. Ainda tinha muita vida pela frente e tinha muitos planos e projetos, mas não contava com sua partida, ainda. Embora não fosse o que eles tivessem sequer mencionado, meu instinto de pai já fazia os filmes todos na minha cabeça. Já via-me a viver sozinho, com dois gatos a correr de um lado para o outro e um estúdio cheio de pinturas espalhadas por todo canto.

Será que me dariam netos, logo? Será que eu seria um bom avô? Eu tinha tanto receio de não corresponder às suas expectativas…

Alguns anos depois, eu, provavelmente, lembraria sorrindo dos dias em que temia o futuro deles e avaliaria que havia sido tão tolo quanto ingénuo. Assim como nós sobrevivemos, nossos filhos e netos também sobreviverão aos reveses que colocam-se em nossos caminhos. A vida é uma grande e eficiente mestra. Só nos dá aquilo que sabe que teremos força para suportar. Apesar de todos os receios, também não podia negar que as alegrias que eu recebera compensaram todas as noites em claro e os dias de vigília. Eu podia considerar-me um verdadeiro afortunado.

***

Respirar o ar da noite e o cheiro do mar era uma coisa que fazia-me bem, desde que eu era uma criança. Ficar um tempo sozinho a olhar o mar, mesmo sem ver direito o que se passava na escuridão à minha frente, ajudava-me a pensar e manter a sanidade. Era minha rotina, pouco antes de deitar... um tempo todo meu, para recarregar as baterias e centrar meus pensamentos e rever os acontecimentos do dia.

- Eu amo o mar. Dá-me uma tranquilidade tão grande!

- Eu também…

Eu virei-me e observei a moça que estava de pé na areia, com o olhar perdido em algum ponto muito longe, naquela imensidão escura e não tão silenciosa à nossa frente. A monotonia das ondas a baterem na praia era como um mantra hipnotizante e tranquilizador. Ela tinha razão e eu tinha que reconhecer. Aquela vasta massa de água a mover-se no seu incessante vai-e-vem, realmente, dava uma serenidade muito grande na gente…

Ao olhá-la, não sei por qual razão, imaginei-a como o próprio mar… mas desconfiava que havia mais mistério nela que podia-se ver a olho nu. O reflexo na superfície nunca mostra a profundidade do oceano, nem o que se esconde por baixo daquele manto de água em perpétuo movimento… 

- O que vocês estão fazendo aí, parados? Não me diga que tu também tens a mania de ficar na praia a olhar o mar, antes de ir deitar. Essa eu não sabia…

Ela riu. Eu também. Meu filho passou o braço pela cintura da moça e beijou-lhe a face. Ela recostou a cabeça no ombro dele e eu vi que era hora de deixar os dois a sós. Pedi licença, usando a desculpa de ser bastante tarde e estar cansado e deixei-os ali fora.

A casa ficava muito próxima à uma área da praia limitada por um agrupamento de rochas de cada lado e um pequeno caminho abria-se dos fundos do quintal até a areia fofa e branca, dando uma sensação de que aquele pedaço da praia era todo nosso.

Não demorou muito para os dois entrarem também, mas eu já havia-me retirado para o quarto e deitado, embora não tivesse conseguido adormecer imediatamente. Fiquei a olhar o teto, por uns tempos, ainda, com uma sensação estranha a inquietar-me a mente. Por alguma razão que eu não conseguia explicar, ficara com a impressão que havia alguma coisa nela que eu deveria conhecer melhor, mas não conseguia descobrir o que poderia ser…

O cansaço venceu-me, finalmente, depois de muito tempo, sem consolar-me o espírito…

***

- Tu estás vestido como ele, mas não és ele…

O grande animal não retrucou, mas tentou sorrir. Apesar de perceber que eu não era enganado facilmente, virou-se e continuou a caminhar nas duas pernas traseiras, como um humano, sem dar importância ao que eu havia falado. Era mais ou menos da minha altura e bem mais gordo que eu. Segui-o de perto, da praia até a porta da casa, observando como teve cuidado em parecer-se com Ginger, o gato, incluindo a cauda, que arrastava pelo chão coberto de velhos tijolos, dispostos em um mosaico simples, mas harmonioso. O pelo parecia haver sido costurado, muito justo, à volta do corpo, de modo a não parecer falso, mas eu sabia que não era natural, porque não havia brilho, nem vida, como numa cobertura original.

Quando chegou ao topo do lance de três estreitos degraus, ele virou-se, olhou-me e sorriu. Era um sorriso estranho, meio malicioso, que me intrigou, por parecer esconder uma má intenção ou algo que eu não sabia o que era, mas que não me deixava confortável.

Ele empurrou a porta e entrou.

Eu arregalei os olhos… e acordei…


- Sabia que havia alguma coisa errada!

***