A porta, a bater com mais força
que o habitual, deixou meus sentidos em estado de alerta, mas não consegui ouvir
mais que os sons tranquilizantes e impessoais do vento e do mar. Estava do lado
de fora, a trabalhar na pequena horta que cultivava na parte de trás da casa e
não era possível filtrar muito do que se passava lá dentro.
O som do motor do carro foi
desaparecendo na distância e sendo sobreposto pelo monocórdio e lânguido
marulhar das ondas naquele ir e vir contra as areias da praia. Esperei um pouco
e, depois de um tempo, mais ou menos calculado, para não parecer óbvio, entrei.
Ele estava de pé, junto à janela,
a olhar para fora e não virou quando eu me aproximei, como seria de esperar.
- Aconteceu alguma coisa?
- Nada importante.
Eu tinha certeza que aquela
afirmação não estava nada perto da verdade, mas respeitei a reticência da
resposta e deixei-a passar como se não tivesse importância.
- OK. Preciso ir ao mercado. Vens comigo?
Na verdade, eu não precisava de
nada que não pudesse esperar, mas queria ter certeza de que estava tudo bem.
Como não queria voltar a perguntar diretamente, fingi não dar mais relevância
ao caso que merecia, para não parecer invasivo.
- Não. Preciso fazer umas coisas. Mas se lembrares, compra laranjas,
que já não temos nenhuma.
- Vou lembrar, claro.
A voz parecia muito baixa e
grave. Eu percebi que não me olhou, quando o telefone tocou e ele atendeu.
Apressou-se a ir para a varanda, falar com privacidade, o que não
surpreendeu-me de todo, mas sentia que alguma coisa havia mudado.
Será que ele não confiava mais em
mim, ou estava, tão-somente, a tentar resolver o problema sozinho?
Ainda avistei-o a andar de um
lado para o outro, com o telefone ao ouvido e a gesticular nervosamente. Decidi
sair e deixá-lo na casa, enquanto ia ao supermercado da aldeia, que ficava a
menos de dez minutos dali, de carro. Ambos precisávamos de tempo.
Quando voltei, ele estava a
caminhar na praia, com os pés na água, como se a brincar com as ondas, como
fazia quando era criança e sempre que precisava pensar. Já era além do fim da
tarde e eu decidi que deveria tratar de arranjar algo para jantarmos.
O que nós dois tínhamos em comum,
além de muitas outras coisas, era a tendência a ficar sós quando queríamos
pensar em algo sério e tomar decisões. Se precisasse conversar, ele sabia que
eu estava à mão…
Quando finalmente entrou, eu
estava a arranjar a mesa, para jantarmos. Ele parecia drenado de tanto pensar.
Não perguntei nada, apenas esperei que falasse, enquanto eu me ocupava com os
talheres, os pratos e, também, com as panelas.
- Ela ganhou uma bolsa para estudar… na América… A bolsa é patrocinada
por uma grande empresa e há grandes possibilidades de que lhe deem um emprego
quando os estudos acabarem.
- É uma oportunidade enorme e incomum…
- É, sim. Mas não é isso que me incomoda.
- Então?…
- Ela disse que precisava de um tempo para concentrar-se nos estudos e
carreira. Eu apoio totalmente esta decisão, mas não queria que isto pusesse um
fim ao que nós temos. Nenhum argumento foi forte suficiente para convencê-la a
mantermos o relacionamento, apesar da distância, entretanto. Isso não é certo,
pai.
- Ela tem o direito de optar. É a vida e a carreira dela. Mas hoje em
dia, com a tecnologia que temos à mão, é tão mais fácil conversarem e manterem
os contactos, mesmo à longa distância…
- Eu sei, pai. E as passagens não são tão inacessíveis assim…
- Pois não. Sempre arranja-se uma promoção ou outra… Vocês brigaram?
- Discutimos por divergir as opiniões em relação a ficarmos em contacto
ou não. Ela disse que íamos manter contacto, sempre que lhe fosse possível, mas
pediu tempo e espaço e que eu respeitasse a decisão dela…
- É justo.
- Não é. Não é nada justo.
- Dê tempo ao tempo… e à ela… ou nunca terás perdão… As mulheres não
gostam que as decisões delas sejam questionadas…
- E se levar tempo demais?
- Vais ter que aceitar e aprender a viver com isso…
Ele soltou um suspiro de
impotência… ou desespero. No fundo, sabia o fim que aquela história ia ter, mas
negava-se a aceitar o óbvio.
***
Eu fiquei apreensivo com a decisão
que ele tomara. Eu jamais faria o mesmo, mesmo porque eu sou teimoso demais
para ir contra um “dá-me espaço” daqueles,
como ela pediu…
Como os contactos entre eles haviam
ficado cada vez mais espaçados, ele resolveu que deveria ir vê-la, na América e
fazer-lhe uma surpresa. Achava que quando se vissem, tudo voltaria ao normal.
A falta de notícias desde que
viajara, deixava-me com um mau pressentimento…
***
- Oh! Meu Deus!
- Eu tentei avisar-te, mas sabia que não ias ouvir-me… Nem sempre o
coração ouve a voz da razão… Nós somos muito parecidos mesmo!
- Pai, eu perdi a cabeça! Isso nunca me aconteceu!
Eu olhei para a expressão de
desespero, tão claramente estampada na sua face e esperei. Não havia nada que
eu pudesse dizer ou fazer.
- O que faço agora?
- Não fazes nada… já fizeste…
Ele baixou a cabeça e pareceu-me
que estava enterrando-se num buraco sem fundo…
Aquela angústia cortava-me a
alma, mas ele tinha que bater no fundo, sozinho, para poder levantar-se. Não há
nada pior que a decepção, para acabar com nossos sonhos e fazer-nos enxergar a vida
com olhos menos míopes e lentes mais grotescamente verdadeiras. A crua realidade
é, muitas vezes, mais dura que achamos ter forças para suportar. Viver, enfrentar
e conviver com nossos erros é, também, um ato de coragem, sem precedentes. Às vezes,
as forças esvaem-se, a vontade de viver vai-se junto, mas é preciso ser muito bravo,
para levantar-se.
Ele estava a aprender, da pior
maneira e muito cedo, para o meu gosto, a ser um adulto…
Eu não aprovei a decisão dele
antes e não apoiava o que ele fez, então.
Fiquei ali, parado, a acompanhá-lo
com os olhos, enquanto ele saía pela porta de trás e ia na direção da praia.
Sabia que ele precisava daquele momento de solidão… ou muitos momentos daqueles…
Seu caminhar parecia o de um velho, de tão pesado e arrastado…
Duas lágrimas desceram, quentes,
dos meus olhos, pela face abaixo. Sentia que ele precisava de mim e queria
estar lá para ele, mas não podia invadir seu martírio interior, sem que ele me
desse permissão para fazê-lo. Por mais que eu quisesse protegê-lo, naquela
hora, não seria capaz, sequer, de aliviar uma minúscula gota de sua angústia. Resisti
e não fui atrás dele…
De longe, enquanto seguia a silhueta
conhecida, a caminhar solitária, na beira do mar, imaginava o tumulto que devia
ter criado, quando perdeu a cabeça e a razão e partiu para cima do rapaz que
estava com Ana Maria, em atitudes muito mais íntimas que poder-se-ia esperar de um simples
amigo.
Ele podia ter agido de maneira mais
nobre, mas um coração partido não quer saber de nobreza ou raciocínio lógico.
Se não fosse a moça a chamar-lhe à razão e expulsá-lo da esplanada onde estava
com o tal “amigo”, ele teria sido
preso por assédio e violência… ainda mais na América!
Foi mesmo irresponsável!
Mesmo para um rapaz tão centrado como ele sempre havia sido, sentir-se traído, fê-lo perder, completamente, a estribeira... não que ele não tivesse certa dose de razão...
***
- Pai?
- Ahn?
- É sempre assim?
- Assim como, meu filho?
- Dolorido. Dói sempre assim?
- Só quando a gente ama… ou amou… muito… Só quando há muito amor… ou então
muita mágoa… é que dói tanto assim…
- Não é muito justo.
- Nunca é!
Ele sentou-se no degrau da
varanda, cobriu o rosto com as duas mãos e chorou como uma criança.
Para mim, na verdade, ele ainda
era uma criança… a minha criança, aprendendo a viver com as injustas agruras da
vida. Por mais que eu tentasse consolá-lo, não iria conseguir minimizar o que
ele experimentava naquele momento.
Infelizmente, quando é assim, a
dor tem que ser sentida.
Ele nunca mais ia ser o mesmo.
Aquela agonia ia, invariavelmente, passar, com o tempo, com outro amor, com outras
visões do mundo, mas ia deixar suas cicatrizes, profunda e indelevelmente
tatuadas na memória dele. Era como um batismo de fogo e aflição a marcar-lhe,
para sempre, mas, também, a amadurecer-lhe os sentimentos e a ensinar-lhe a
encarar a vida sob vários ângulos diferentes.
Eu daria minha alma para que ele
nunca tivesse que sofrer, mas não tinha qualquer poder sobre aquilo, por isso
apenas sentei-me ao seu lado, passei o braço por sobre seu ombro e puxei-o para
perto de mim.
Ele não ofereceu resistência, nem
mostrou-se envergonhado ao abrir sua fragilidade diante do pai, chorando
daquele jeito.
Abraçado a ele, não me contive e chorei também…
Abraçado a ele, não me contive e chorei também…
***