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sábado, 18 de junho de 2016

Acerca de Ana Maria (Parte 1 de 2)


- Ana Maria?

- É.

- É um bonito nome. Como ela é?

- Tem olhos esverdeados e cabelos castanho-claros, que lhe caem como uma cascata pelas costas. É tão cheia de vida, que me faz sentir que eu posso tudo, quando estou com ela.

- E podes… se quiseres…

- Só de pensar nela, eu me sinto tão bem… Ela é música e dança ao mesmo tempo.

- Estás mesmo apaixonado!

- Acho que sim. Eu penso nela o dia inteiro… o tempo todo…

- Estás irremediavelmente infectado. Não há vacina contra isso e a cura é difícil…

Ele riu. Eu também.

Era bom ver que havia crescido, tornando-se um homem responsável e bom e, agora, apaixonado pela menina Ana Maria. Só agora dei-me conta que o tempo passou tão rápido, que eu mal percebi. Há tão pouco tempo era apenas um menino a brincar com blocos de legos e bonecos de super-heróis com poderes sobre-humanos e a fazer-me perguntas sobre tudo. Agora, devo admitir, já é um ‘homem feito’, como dizia meu pai.

A imagem que me vinha à cabeça, quando o ouvia falar daquela forma, sobre o objeto de sua afeição, era de um passarinho que aprendera a voar e agora já podia abandonar o ninho e fazer seus voos solo.

Era engraçado, mas assustador, ao mesmo tempo.

Quando nasceu, confesso que senti uma emoção que não conseguia descrever. Parecia tão frágil e tão desprotegido, que comoveu-me completamente. Eu só queria ser o melhor provedor e o melhor exemplo para ele. Queria que ele sentisse orgulho de mim, num futuro, para o qual eu nem sabia como prepará-lo para enfrentar. Ao mesmo tempo, senti um amor tão grande, que minha vida deixou de ter importância, a não ser por ele. Quanta coisa eu poderia ensiná-lo e quanta coisa eu iria aprender com ele, no decorrer da sua história… da nossa história.

Tive um lampejo e uma dúvida que nunca ia conseguir responder: será que eu estava preparado?

Não estava. Sabia que não estava. O simples facto de olhar para ele, enquanto brincava, dormia, sorria ou chorava, já me enchia de emoções, que eu nunca iria saber como explicar. Com o tempo, deixei de tentar entender aquelas emoções… contentei-me com senti-las e deixá-las encher meu coração até transbordar…

Eu sabia que a vida não ia ser justa, às vezes, nem as pessoas, mas eu queria que ele tivesse, sempre, a oportunidade e o discernimento para tomar suas próprias decisões e que ele nunca tivesse motivos para arrependimento.

É claro que, por mais que desejasse, jamais iria conseguir protegê-lo de tudo. Ele ia ter que enfrentar muita coisa sozinho e eu devia prepará-lo, da melhor forma possível, mas não era um super-herói, nem um deus todo-poderoso... Era somente seu pai. Quando pensava naquilo, sentia-me tão pequeno e impotente, que doía-me a alma e meus olhos enchiam-se de lágrimas.

Ele cresceu saudável e deu-me muito poucos motivos para preocupações. Não foi o tipo de filho que eu fui. Não era rebelde, nem revoltado. Era uma criança tranquila e centrada, um menino sempre curioso e estudioso, perguntador e interessado em quase tudo que lhe passava à frente de seus olhos. Era, ao mesmo tempo, tímido e aventureiro, mas nunca demonstrava medos.  Assim como eu, ele adorava os animais e respeitava-os, como parte de nossas vidas. Passava tempos a observar o comportamento dos nossos gatos, de modo a compreender suas formas de comunicar suas necessidades e suas demonstrações de afeto. Era um rapaz muito perspicaz e atencioso e tinha um coração enorme, compassivo e muito generoso.

A tal menina Ana Maria tinha muita sorte e, se soubesse estimulá-lo a mostrar, sempre, o melhor lado dele, tinha tudo para ser muito feliz.

***
- Pai, essa é a Ana Maria.

Eu olhei para aquela criaturinha de pé, à minha frente, ao lado do meu filho tão cheio de si e visivelmente apaixonado e apreensivo. Via-se ambas as emoções contraditórias estampadas em sua face e olhos. Ele era tão transparente quanto eu.

A menina tinha olhos grandes, de uma tonalidade interessante de verde e longos cabelos a cair-lhe em cachos pelas costas. Bem como ele havia descrito e, talvez, muito mais agradável aos olhos que eu houvera imaginado, não sei por que motivo. Talvez por puro instinto de proteção à minha cria, havia avaliado mal a descrição que ele fizera da moça.

Era fácil ver a razão pela qual ele estava apaixonado. Além da beleza natural, ela emanava uma tranquilidade enorme. Senti uma ponta de ciúmes, mas também um alívio, ao perceber que os dois davam-se bem e, pelo jeito, estavam felizes.

Ao olhar para eles, assim, tão jovens e tão bem, eu não pude impedir de pensar em mim também e no meu futuro. Ainda tinha muita vida pela frente e tinha muitos planos e projetos, mas não contava com sua partida, ainda. Embora não fosse o que eles tivessem sequer mencionado, meu instinto de pai já fazia os filmes todos na minha cabeça. Já via-me a viver sozinho, com dois gatos a correr de um lado para o outro e um estúdio cheio de pinturas espalhadas por todo canto.

Será que me dariam netos, logo? Será que eu seria um bom avô? Eu tinha tanto receio de não corresponder às suas expectativas…

Alguns anos depois, eu, provavelmente, lembraria sorrindo dos dias em que temia o futuro deles e avaliaria que havia sido tão tolo quanto ingénuo. Assim como nós sobrevivemos, nossos filhos e netos também sobreviverão aos reveses que colocam-se em nossos caminhos. A vida é uma grande e eficiente mestra. Só nos dá aquilo que sabe que teremos força para suportar. Apesar de todos os receios, também não podia negar que as alegrias que eu recebera compensaram todas as noites em claro e os dias de vigília. Eu podia considerar-me um verdadeiro afortunado.

***

Respirar o ar da noite e o cheiro do mar era uma coisa que fazia-me bem, desde que eu era uma criança. Ficar um tempo sozinho a olhar o mar, mesmo sem ver direito o que se passava na escuridão à minha frente, ajudava-me a pensar e manter a sanidade. Era minha rotina, pouco antes de deitar... um tempo todo meu, para recarregar as baterias e centrar meus pensamentos e rever os acontecimentos do dia.

- Eu amo o mar. Dá-me uma tranquilidade tão grande!

- Eu também…

Eu virei-me e observei a moça que estava de pé na areia, com o olhar perdido em algum ponto muito longe, naquela imensidão escura e não tão silenciosa à nossa frente. A monotonia das ondas a baterem na praia era como um mantra hipnotizante e tranquilizador. Ela tinha razão e eu tinha que reconhecer. Aquela vasta massa de água a mover-se no seu incessante vai-e-vem, realmente, dava uma serenidade muito grande na gente…

Ao olhá-la, não sei por qual razão, imaginei-a como o próprio mar… mas desconfiava que havia mais mistério nela que podia-se ver a olho nu. O reflexo na superfície nunca mostra a profundidade do oceano, nem o que se esconde por baixo daquele manto de água em perpétuo movimento… 

- O que vocês estão fazendo aí, parados? Não me diga que tu também tens a mania de ficar na praia a olhar o mar, antes de ir deitar. Essa eu não sabia…

Ela riu. Eu também. Meu filho passou o braço pela cintura da moça e beijou-lhe a face. Ela recostou a cabeça no ombro dele e eu vi que era hora de deixar os dois a sós. Pedi licença, usando a desculpa de ser bastante tarde e estar cansado e deixei-os ali fora.

A casa ficava muito próxima à uma área da praia limitada por um agrupamento de rochas de cada lado e um pequeno caminho abria-se dos fundos do quintal até a areia fofa e branca, dando uma sensação de que aquele pedaço da praia era todo nosso.

Não demorou muito para os dois entrarem também, mas eu já havia-me retirado para o quarto e deitado, embora não tivesse conseguido adormecer imediatamente. Fiquei a olhar o teto, por uns tempos, ainda, com uma sensação estranha a inquietar-me a mente. Por alguma razão que eu não conseguia explicar, ficara com a impressão que havia alguma coisa nela que eu deveria conhecer melhor, mas não conseguia descobrir o que poderia ser…

O cansaço venceu-me, finalmente, depois de muito tempo, sem consolar-me o espírito…

***

- Tu estás vestido como ele, mas não és ele…

O grande animal não retrucou, mas tentou sorrir. Apesar de perceber que eu não era enganado facilmente, virou-se e continuou a caminhar nas duas pernas traseiras, como um humano, sem dar importância ao que eu havia falado. Era mais ou menos da minha altura e bem mais gordo que eu. Segui-o de perto, da praia até a porta da casa, observando como teve cuidado em parecer-se com Ginger, o gato, incluindo a cauda, que arrastava pelo chão coberto de velhos tijolos, dispostos em um mosaico simples, mas harmonioso. O pelo parecia haver sido costurado, muito justo, à volta do corpo, de modo a não parecer falso, mas eu sabia que não era natural, porque não havia brilho, nem vida, como numa cobertura original.

Quando chegou ao topo do lance de três estreitos degraus, ele virou-se, olhou-me e sorriu. Era um sorriso estranho, meio malicioso, que me intrigou, por parecer esconder uma má intenção ou algo que eu não sabia o que era, mas que não me deixava confortável.

Ele empurrou a porta e entrou.

Eu arregalei os olhos… e acordei…


- Sabia que havia alguma coisa errada!

***

sábado, 25 de outubro de 2014

Os Olhos da Tigresa (Parte 2 de 2)





O ar frio da manhã nevoenta não me foi impedimento para sair à rua. Eu precisava espairecer, sentir o vento no rosto, estar fora de casa, por umas horitas, pelo menos. Talvez a temperatura baixa do Inverno fizesse minha mente trabalhar em outro ritmo e pensar mais racionalmente. Eu estava cheio de dúvidas e as desconfianças torturavam-me a cada passo que dava, nas calçadas ainda enregeladas pelo orvalho da madrugada. Caminhei por minutos incontáveis, sem rumo certo. Meus pés doíam menos que minha cabeça. Eu queria desaparecer por uns instantes, deixar de pensar, parar de martirizar meu coração, mas o desejo tinha força menor que as minhas dúvidas, que insistiam em complicar-me a vida.

- E se eu estivesse certo? E se eu estivesse errado? Oh, meu Deus! Eu queria ter, pelo menos, alguma certeza e menos desconfiança…

Até aquele dia, nunca havia sido injusto, nem sentido ciúmes infundados ou desejos de vingança. Naquela caminhada, porém, todos estes sentimentos vieram povoar-me a cabeça, com a força de fortes invasores em terras férteis, mas incultivadas. Sentia desejos contraditórios de matar e morrer, a crescerem dentro de mim, com uma facilidade incomum. Eram monstros alimentados pelo ódio e pelo medo… e eles multiplicavam-se e cresciam, como uma colônia de parasitas dentro do meu cérebro. Senti calor, apesar do frio da rua. Desabotoei o casaco e arranquei o cachecol do pescoço. Devia estar febril. Precisava, urgentemente, de um café forte. Tinha que parar. Entrei num Café, na esquina e sentei-me encostado a uma grande janela, mas sem olhar para fora. Eu queria, pelo menos por um simples segundo, parar de pensar. Queria sumir do mundo…

- Que m…!

- Bom dia. Algo errado, senhor?

O empregado de mesa olhava-me com uma expressão de, ao mesmo tempo, curiosidade e preocupação. Provavelmente eu devo ter falado em voz alta, mas não tinha certeza.

- Ahn… Bom dia… Não… Nada errado. Apenas traga-me um café forte e quente, por favor.

Ele assentiu e saiu, com um sorrisinho estranho no canto da boca. Dei-me conta que eu estava sendo ridículo demais, não só pelo martírio mental a que me submetia, quanto por falar sozinho, em voz alta. Tinha que assentar os pés no chão e pensar com clareza. Briguei comigo mesmo e disse, baixinho, entre dentes, para não ser ouvido, daquela vez:

- Chega disso! Já tenho idade e experiência suficiente para agir como um adulto! Já passei por isso outras vezes e não há motivo para mais dramas que o estritamente desnecessário…

Tomei o café, levantei-me e saí. Estava resolvido a enfrentar o ar gelado da rua e a fria realidade.

Ao chegar de volta ao apartamento, vi que havia um bilhete depositado sobre a cômoda no pequeno hall de entrada. Li a mensagem mecanicamente e fui tomar banho, sem pensar muito. Era sexta-feira e ainda tinha um dia inteiro e mais o fim-de-semana, antes de voltar ao trabalho. Pretendia fazer minhas coisas, escrever, nem que fosse um desabafo qualquer e tentar desenhar e pintar. Sim. Havia decidido que pintar, pelo menos, não exigiria muito da minha capacidade de raciocínio e poderia relaxar-me um pouco. Resolvera deixar o acontecido em banho-maria, pelo menos até passar aquela angústia.

Tomei um longo duche, de modo a aquecer o corpo, depois ingeri um comprimido para dormir. Em pouco tempo estava na cama, a tentar recuperar o sono que perdera. Dormi até perto do meio-dia. Quando acordei, meu primeiro pensamento, como não podia deixar de ser, foi para o acontecido nas últimas horas. Levantei-me de um salto e dirigi-me à cozinha, preparar algo quente para comer. No caminho, apanhei o bilhete e levei-o comigo, lendo e relendo, incontáveis vezes, enquanto tomava uma sopa instantânea, que preparei em menos de oito minutos…

***

Dois dias depois do incidente recebi o primeiro contacto, via internet. Eu ainda estava magoado e inseguro, por isso não respondi com mais que uma fria educação, sem demonstrar muita afeição. Ela deve ter percebido, mas não questionou-me nada. Não discutimos o assunto e somente trocamos umas poucas palavras, polidas e politicamente corretas. Esperava que os próximos dias fizessem melhor efeito sobre minha teimosia, mas estava cada vez mais irritadiço e sem paciência para conversas, por isso, sempre respondia com polidez, mas com pouquíssimas palavras. Nossos contactos esfriaram e rarearam, com o passar dos dias. Ela havia-me dito que estava tão ocupada que só viria dentro de quatro semanas, aproximadamente. Não protestei, nem ofereci-me para visitá-la, entrementes. Apenas respondi-lhe com um seco ‘OK’.

No mesmo dia em que recebera aquela notícia, também recebi, por e-mail, uma mensagem de uma sala de chat num site de relacionamentos. Era, aparentemente, um convite de um conhecido meu. Não percebi que era uma mensagem automática e acedi ao site, fiz minha inscrição e resolvi fazer uma visita a alguns perfis, que pareceram-me mais interessantes. Vi que os perfis mais visitados eram os que tinham fotografias, por isso fiz o upload de uma foto minha e deixei-a lá, para ver o efeito que causaria. Quando voltei a aceder o site, por curiosidade, poucas horas depois, havia uma mensagem na caixa de entrada. Abri-a e não consegui deixar de dar uma sonora gargalhada. Era minha primeira risada, em semanas…

***

- Eu não posso acreditar que tu pensaste isso de mim.

- E o que é que tu querias que eu pensasse, afinal?

- Eu achei que estavas sendo compreensivo e me dando espaço e  tu me fazes isso? Tu sabias que eu estava ocupada com o meu trabalho e que precisava de envolvimento total… É minha arte, ‘for heaven’s sake’… É minha vida!

Ela misturava as linguagens, quando ficava nervosa e eu achava aquela característica simplesmente adorável. Olhei-a mudo, sem saber o que dizer. Ela odiava quando eu silenciava no meio de uma briga. Já tinha feito a minha quota de asneiras e não queria piorar o que já estava ruim demais. Mas para ela, como mulher, o meu silêncio era uma afronta.

Mirei aqueles olhos antes tão cheios de vida e serenidade, com um misto de culpa e de apreensão. O olhar cristalino e de um verde que sempre havia sido tão tocante, pelo menos para mim, agora só trazia uma tristeza imensa.

Senti uma consistente confusão instalar-se confortavelmente dentro da minha cabeça e visualizei-a, vestida de robe e calçando pantufas com formato de bichinho, sentada num sofá macio e confortável, na minha sala de visitas, a assistir minha desgraça, de camarote.

Não havia muito a dizer, já que era totalmente culpado de haver feito o filme completo na minha cabeça, de achar que estava certo ao procurar outra forma de relacionar-me, de pensar que estava sendo traído, de haver sido biltre e otário, ao mesmo tempo. Fui tolo ao julgar, sem ter certeza; ao trair, por achar que estava sendo traído; a deixar-me levar pela minha dúvida, sem questionar nada, sem ter certeza de nada. Eu havia-me deixado levar pela grande e promíscua fatia de hedonismo e leviandade que nasceu dentro de mim, no dia em que fui contactado pela personagem responsável por despertar, em mim, uma tola vaidade. Pensava que estava sendo esperto em fazer o que pensava que Liana fazia a mim, sem sentir culpa, nem pesar. Não era, porém, por qualquer sentimento de vingança… era apenas por uma carência afetiva, uma sensação de abandono, uma tristeza impotente, que só crescia com a dúvida e a impressão de ter sido trocado por outro.

Oh, Deus… e como eu estava errado… 

Ela desistiu de brigar, de importar-se, de tentar fazer-me sentir mais culpado que eu já sentia. Foi-se embora no mesmo dia que chegou, dizendo que voltava para buscar suas coisas num outro dia, quando estivesse mais calma, mais centrada, menos decepcionada e com menos raiva de mim. 

***

Aquele olhar, cristalino e distante, com uma distinta pincelada da verde e pálida tristeza, fitou-me pela última vez, da janela embaçada do trem. Plantado, sozinho, a olhar o vagão afastar-se, senti minha alma inundar-se com aquele sentimento de angústia e impotência que nos assola, quando o dantes improvável transforma-se no absolutamente possível; quando nos vemos por uma derradeira vez, numa despedida seca e quase impessoal. É triste perceber como os sentimentos mudam tanto, diante de uma grande mágoa.

Não sei porque, naquela ocasião, faltou-me coragem, vontade de quebrar barreiras, de jogar tudo para o alto, ou se simplesmente já não importava-me mais com o futuro daquela relação. Sei, apenas, que aquela última conversa ficara gravada a ferro em brasa na minha memória, por muito tempo, a latejar e a molestar-me.

- Eu tenho que ir sozinha. Será um partir para sempre, como morrer de vez. O tempo vai curar as feridas. A distância vai facilitar a recuperação. Mas eu, simplesmente, não consigo perdoar-te. Não tenho armas para lutar contra um inimigo cujo poder ultrapassa os meus e cujas armas eu desconheço totalmente. Essa impotência ressecou-me o coração e quebrou as correntes que nos mantinham ligados um ao outro, de uma vez por todas. E eu não consigo viver com esta aridez a incomodar-me o peito deste jeito.

Os olhos da minha tigresa, antes tão cheios de vida e luz, mostravam, agora, uma baça melancolia, que era-me altamente perturbante e enchia-me de uma culpa irremediável. Eu queria conseguir fazer alguma coisa, mas um nó apertava-me a garganta, impedindo-me de falar. Se, antes, dizer-lhe um simples ‘eu te amo’ era-me difícil, é de imaginar-se quão muito mais difícil era-me dizer-lhe, então, ‘perdoa-me’. Eu, simplesmente, não conseguia. Minha mente até concluía o discurso, mas minha voz não saía de jeito nenhum. Eu sabia que a havia magoado e também sabia que, mesmo que ela me perdoasse, ia sempre sentir-se incomodada, desconfiada e em dúvida se eu não ia fazê-la passar pela mesma situação vezes e vezes sem conta, dali por diante…

- Levas-me à estação… pela derradeira vez?

- Claro.

Engoli em seco. Meu coração pesava. Minha vontade era dizer-lhe que não, que se virasse sozinha. Excomungar até sua última geração, dizer-lhe uma série de palavrões, mas não podia. Como podia amaldiçoar uma pessoa que havia sido ferida pela minha crueldade? Minha alma estava dilacerada. Eu remoía indignação, frustração e culpa, mas já não havia nada que eu pudesse fazer. Eu, no lugar dela, teria sido menos nobre, tanto nas ações quanto nas palavras. Nunca havia percebido como éramos tão diferentes. Ela era distinta, controlada e generosa. Eu era rasca, vulgar, impulsivo e mesquinho.

Mas eu sentia raiva. Muita raiva. Dela e, mais ainda, de mim. Eu havia sido descuidado e vítima da minha própria ingenuidade, hedonismo e arrojo. Que grande burro havia sido! Diante de uma cena de flagrante sexual com outra pessoa, onde as evidências são inquestionáveis, o que é que eu poderia dizer?

Eu sabia que ela tinha que recomeçar, sozinha, sua própria vida, longe de mim e eu não tinha o direito de impedi-la. Ela estava ferida. Suas asas haviam crescido e seu voo já a havia afastado de mim. Ela sentia-se no direito de voar alto e para longe e eu não queria sentir-me mais culpado que já estava, se tentasse demovê-la da ideia. Ela precisava de espaço e eu tinha a obrigação de dar-lhe, já que eu havia quebrado muitos elos das correntes que nos uniam.

A tigresa pulava para o outro lado da cerca, para ser livre, outra vez...

Olhei aqueles olhos por uma última vez, com imensa melancolia. Minhas entranhas eram roídas por sentimentos contraditórios, tanto de irritação, quanto de culpa. Ela partiu. Sozinha. Triste. Eu fiquei ali, a olhar o vazio sobre os trilhos, depois que o trem sumiu na curva, no meio da neblina de Outono. No mesmo vagão, partiu, para sempre, não somente minha grande amiga – a bela e terna tigresa - mas também minha confiança nos relacionamentos e no ser humano.

Na saída da estação, ainda a cruzar a calçada, esbarrei num transeunte que trazia umas sacolas e que caíram ao chão, com o impacto. Apressei-me, instintivamente, a desculpar-me e a ajuntar os pacotes caídos na calçada, quase sem olhar para quem eu ajudava, por pura vergonha. Foi somente quando entreguei-lhe os embrulhos, que notei aqueles olhos muito claros e verdes a fitar-me com curiosidade e um certo ar de gracejo.

Alguém lá em cima deve gostar muito de brincar comigo…


domingo, 19 de outubro de 2014

Os Olhos da Tigresa (Parte 1 de 2)




Quatro jovens tigres caminhavam, tranquilamente, ao meu redor e roçavam-se contra minhas pernas, como se fossem tão amistosos quanto dóceis gatos domésticos. Era como se estivessem a pedir-me algum carinho ou a marcar-me para reconhecimento, com suas glândulas de feromonas, espalhadas em pontos estratégicos de seus pujantes corpos. Eu sentia-me confortável e nem um pouco intimidado por qualquer um deles.

Um dos animais, uma belíssima fêmea com expressivos e cristalinos olhos, de um tom muito luminoso de verde, levantou-se nas patas traseiras e abraçou-me com afeição, numa atitude que eu realmente não esperava. Ela esfregou sua magnífica cabeça contra meu rosto, depois chegou-a mais para frente e mordeu-me a orelha, com cuidado. Alguém falou:

- Acho que ela gosta de ti. Este não é um comportamento comum.

Passei meus braços à volta do seu belo corpo, dando-lhe um abraço. Seu pelo era macio e luzidio. Provavelmente não sabia a força que tinha e o poder que dela emanava, quando deixou-se envolver por meu abraço. Não fiquei exatamente surpreso quando ela sussurrou ao meu ouvido:

- Deixa-me ir para o outro lado da cerca, onde posso ter mais liberdade. Por favor...

Ajudei-a a pular por sobre o cercado, dando-lhe impulso para ir-se, apesar de desejar que ela ficasse comigo, por muito mais tempo. Sabia, porém, que não tinha qualquer influência sobre seus desejos de independência. Mais cedo ou mais tarde, ela teria que ir-se para além das fronteiras do meu domínio… ou seria eternamente infeliz.

Senti um distinto aperto no peito, ao vê-la afastar-se. Ela olhou para trás e balançou a cabeça, de maneira carinhosa, como se agradecesse o impulso que eu dera, para que atingisse sua emancipação. Aqueles olhos, extremamente magnéticos, porém, tocaram-me a alma, de uma maneira que eu não esperava. Um sentimento estranho tomou conta de mim, numa mistura de melancolia com nostalgia, ao ver minha tigresa partir. Os outros grandes felinos juntaram-se à ela, do outro lado da cerca metálica, levando-a para longe de onde estávamos. Uma lágrima escorreu-me pelo canto do olho e senti a inquietação em minha alma aumentar e envolver-me, com muito mais força que minha tigresa abraçou-me o corpo. Um soluço cresceu dentro de mim e eu fechei os olhos, tentando controlar o pranto, mas já era tarde demais…

Acordei, chorando alto, no meio da madrugada, sentindo uma angústia enorme a pesar sobre meu peito, que arfava, descontrolado. A escuridão do quarto disfarçou a tristeza, mas não diminuiu a sensação de imensa solidão e abandono que aquele sonho me trouxe. Chorei como criança, sem conseguir conter os soluços e a dor que sentia, naquele momento, abraçado ao meu próprio corpo, deitado na cama de casal, que pareceu-me imensa, deserta e fria…

***

Liana tinha, em torno de si, uma suave aura de felina feminilidade. Seus olhos verdes, extraordinariamente expressivos e cristalinos, pareciam-me sempre inquietos, como se procurassem, em algum lugar ou, talvez, em algum tempo, vestígios de uma inocência perdida. Ela sabia ler-me como ninguém. E examinava-me com aqueles seus grandes olhos, despia-me a alma, como se conseguisse penetrar nos meus pensamentos, fazendo-me enrubescer, desajeitado, ante a sua singela majestade e a maneira como conseguia compreender, sem perguntar, meus estados de humor e da alma.

Eu costumava perder-me, completamente, a contemplar aquela sublime e meiga grandeza, por horas e horas a fio, sem precisar dizer nada e, ainda assim, a sentir-me totalmente compreendido e amado pela mulher que havia-me transformado no homem que eu passei a ser. Perto dela, eu sentia-me completo e sereno. Pela primeira vez na minha vida, a presença de uma pessoa, não violava minhas necessidades de ter meus momentos de silêncio. Ela respeitava meu espaço e compreendia que eu necessitava estar só, às vezes, para poder centrar-me, escrever, ou simplesmente ouvir música e pintar, numa tentativa de ilustrar minhas histórias amadoras: meus hobbies favoritos e que davam-me grande satisfação.

Ela aproveitava estes raros momentos para isolar-se, também, e fazer o que já gostava fazer, antes de conhecer-me. Liana era uma artista sensível e perfeccionista. Suas aquarelas eram hiper-realistas e detalhadas. Para fazê-las com esmero, costumava passar horas num dos quartos do apartamento onde morávamos, transformado em seu pequeno estúdio... um oásis de beleza e tranquilidade, que eu raramente invadia, a não ser quando convidado, por puro respeito ao espaço dela. Suas peças estavam expostas em galerias de artistas novos e promissores e ela havia sido convidada, mais que apenas algumas vezes, a viver num centro maior, onde teria mais reconhecimento e oportunidades artísticas. Ela nunca dera nenhuma resposta aos agentes, acerca dos tais convites. Dizia-se feliz onde estava, a produzir sua arte, em seu próprio ritmo. Tinha receio que uma grande metrópole fosse transformá-la em uma artista menos sensível, mais preocupada com a produção que com a sensibilidade.   

Eu compreendia seus medos, mas incentivava a ideia de ela abrir suas asas imensas por paragens mais desbravadas e por ares mais desafiadores. Ela tinha talento e merecia voar alto, mas dizia-se despreparada.

Eu sabia que parte daquele receio estava ligada ao nosso relacionamento. Eu tinha uma carreira, no lugar onde vivíamos e não poderia acompanhá-la, pelo menos no início. Ela inventava muitas de suas desculpas, dizendo-se feliz e satisfeita onde estava, mas eu a conhecia muito bem, para convencer-me que seus receios estavam  relacionados apenas à massificação de sua arte.

Um dia, quando cheguei em casa, depois do trabalho, percebi que ela estava bastante séria e pensativa. Havia recebido uma proposta praticamente irrecusável, mas que não havia aceitado de imediato. Ficara de pensar e dar a resposta em alguns dias. Claro que a proposta implicava em uma grande mudança. Ela iria lecionar uma cadeira na faculdade de Belas Artes, numa grande universidade, alguns dias, durante a semana e teria um estúdio, para produzir seus próprios trabalhos artísticos e desenvolver uma série de projetos, com outros novos artistas, para uma promissora galeria, em Londres.

Ela estava entre vários estados, bastante diversos. Se de um lado sentia uma euforia enorme, em relação ao reconhecimento do seu talento e aos projetos que iria participar, por outro lado, sentia-se totalmente insegura se ia corresponder às expectativas e, por um outro lado ainda,  estava triste, por termos que nos afastar durante semanas.

Tentei fazê-la ver que uma oportunidade destas não aparece mais que uma vez e que ela deveria aceitar. Era a possibilidade de vencer e mostrar seu trabalho e eu não poderia, jamais, deixar de incentivá-la a ir em frente. Prometi que nos veríamos semana sim, semana não... um ou outro viajaria e conseguiríamos vencer os obstáculos que, já sabíamos, iriam aparecer.

- O mundo é muito pequeno e as comunicações estão cada vez mais fáceis. Estaremos sempre em contacto.

Eu disse-lhe a frase esperada, tentando tranquilizá-la, mas meu peito acusava um desconforto, que traduzia o medo que eu sentia, de que algo não corresse tão linearmente como eu assegurava.

Os primeiros meses foram difíceis de suportar, mas fáceis de mantermos o contacto. Quando o estúdio começou a exigir mais do seu tempo e dedicação, até mesmo nossas comunicações começaram a rarear. Sabia que era natural que tal acontecesse, pois ela desabrochava, naturalmente, dentro de seu genuíno meio de expressão. Ela estava cada vez melhor, mais feliz, mais produtiva e mais ocupada que jamais estivera.

Eu, porém, sentia-me cada vez mais desamparado. Apesar da necessidade de estar só ainda tomar parte do meu tempo, não tê-la por perto corroía-me a alma. Pelo menos - tentava convencer-me - tínhamos as férias de fim de ano para estarmos juntos. Eu ansiava por aquele tempo junto dela e contava os dias que antecediam o período, já que nossos fins de semana juntos praticamente haviam desaparecido. Escrevíamos quase diariamente, deixávamos mensagens um ao outro, tentávamos sempre saber como iam as coisas, o trabalho, a vida... mas o tempo é cruel...e a distância também... 

Ficamos meses sem nos ver, a não ser pela internet, já que ela estava ocupada demais com seu trabalho, incluindo nos fins de semana.

Quando nos encontramos, em Dezembro, ela parecia diferente e distante. Algo havia mudado. Onde, antes havia uma imensa vivacidade e alegria de viver, havia, agora, um quê de tristeza, um intrigante mistério, uma distância quase inatingível. Ela disse que era somente cansaço. Estava com excesso de coisas a fazer. O projeto ia muito bem e ela precisava daquela chance de mostrar o trabalho do grupo e, mais especificamente, o seu, em particular. A mais famosa galeria de artes em Londres havia-lhe solicitado uma mostra individual e ela trabalhava em novas obras com avidez. Sabia que aquela seria sua grande oportunidade. O reconhecimento de sua individualidade artística era evidente e ela não podia deixar passar, sem fazer seu melhor.

Fiquei feliz por ela. Disse-lhe que aproveitasse, incentivei-lhe a ir adiante, mas disse-lhe também para cuidar de sua saúde, pois estava bastante magra e abatida. Ela afirmou que mal tinha tempo para alimentar-se, mas eu protestei. Ela prometeu cuidar-se. Aproveitamos aqueles poucos dias de inverno, para ficarmos mais juntos. Tratei de preparar-lhe meus melhores pratos, numa tentativa de dar um pouco de cor ao rosto, que eu adorava, e de compensar a perda de peso, que havia-se tornado evidente, no corpo que eu tanto desejei, desde que nos conhecemos. Ela contestou, no começo, mas cedeu à minha insistência e em poucos dias parecia mais vivaz e com as faces mais rosadas.

Uma noite, naqueles poucos dias em que estávamos juntos, eu adormeci no sofá, enquanto ela trabalhava no estúdio. Acordei, ao ouvir vozes. Ela estava ao telefone e parecia ter uma discussão com alguém. Tive a impressão de ouvi-la dizer, num tom mais baixo:

- Já te disse para não ligar-me aqui...

Levantei-me e fui até o quarto, mas assim que cheguei perto, ela desligou. Perguntei quem era.

- Nada importante... apenas assuntos de trabalho... Não te preocupes.

O semblante dela não era o mesmo. A luz vermelha da desconfiança acendeu na minha mente insegura, mas eu não insisti em saber o que acontecia. Pelo jeito a intimidade, que antes havia entre nós, quando compartilhávamos tudo, já não existia. Afastei um pensamento ruim, com um abano de cabeça e saí do estúdio, com o cenho franzido. Fui para a cama, mas não conseguia adormecer...

Uma noite mal dormida só agrava os pensamentos nefastos... e eu amplifiquei minha insegurança e minha paranoia, elevando-as à potências de dez...

Não tenho muita certeza se realmente ouvi vozes, durante a madrugada, ou se adormeci e sonhei, no estado de tortura mental em que me encontrava. Quando amanheceu, eu ainda estava de olhos abertos e ela não havia vindo para a cama. Levantei-me e procurei-a pela casa. Estava na cozinha, a olhar para fora, com o olhar baço e os pensamentos tão distantes, que mal conseguiu ouvir-me aproximar. Ela virou-se para mim e disse, muito séria:

- Tenho que voltar a Londres... hoje mesmo, se conseguir um voo.

- Aconteceu alguma coisa?

- Nada que eu não possa resolver sozinha...

Aquela resposta, seca e num tom que eu desconhecia, apanhou-me de surpresa e deixou-me de queixo caído. Ela passou por mim, apanhou a bolsa de cima da cômoda na entrada e saiu pela porta afora, sem olhar para trás.

Eu fiquei ali, de pé, no meio da cozinha, a matutar o que poderia ter acontecido que a deixara daquele jeito. Aquela luz vermelha da insegurança piscava como um grande farol na beira da praia, parecendo gritar, na minha mente torturada:

Alerta! Alerta! Alerta!