- Ana Maria?
- É.
- É um bonito nome.
Como ela é?
- Tem olhos
esverdeados e cabelos castanho-claros, que lhe caem como uma cascata pelas
costas. É tão cheia de vida, que me faz sentir que eu posso tudo, quando estou
com ela.
- E podes… se
quiseres…
- Só de pensar nela,
eu me sinto tão bem… Ela é música e dança ao mesmo tempo.
- Estás mesmo
apaixonado!
- Acho que sim. Eu
penso nela o dia inteiro… o tempo todo…
- Estás irremediavelmente
infectado. Não há vacina contra isso e a cura é difícil…
Ele riu. Eu também.
Era bom ver que havia crescido,
tornando-se um homem responsável e bom e, agora, apaixonado pela menina Ana Maria.
Só agora dei-me conta que o tempo passou tão rápido, que eu mal percebi. Há tão
pouco tempo era apenas um menino a brincar com blocos de legos e bonecos de super-heróis
com poderes sobre-humanos e a fazer-me perguntas sobre tudo. Agora, devo
admitir, já é um ‘homem feito’, como
dizia meu pai.
A imagem que me vinha à cabeça,
quando o ouvia falar daquela forma, sobre o objeto de sua afeição, era de um
passarinho que aprendera a voar e agora já podia abandonar o ninho e fazer seus
voos solo.
Era engraçado, mas assustador, ao
mesmo tempo.
Quando nasceu, confesso que senti
uma emoção que não conseguia descrever. Parecia tão frágil e tão desprotegido,
que comoveu-me completamente. Eu só queria ser o melhor provedor e o melhor
exemplo para ele. Queria que ele sentisse orgulho de mim, num futuro, para o
qual eu nem sabia como prepará-lo para enfrentar. Ao mesmo tempo, senti um amor
tão grande, que minha vida deixou de ter importância, a não ser por ele. Quanta
coisa eu poderia ensiná-lo e quanta coisa eu iria aprender com ele, no decorrer
da sua história… da nossa história.
Tive um lampejo e uma dúvida que
nunca ia conseguir responder: será que eu estava preparado?
Não estava. Sabia que não estava.
O simples facto de olhar para ele, enquanto brincava, dormia, sorria ou
chorava, já me enchia de emoções, que eu nunca iria saber como explicar. Com o
tempo, deixei de tentar entender aquelas emoções… contentei-me com senti-las e deixá-las
encher meu coração até transbordar…
Eu sabia que a vida não ia ser
justa, às vezes, nem as pessoas, mas eu queria que ele tivesse, sempre, a
oportunidade e o discernimento para tomar suas próprias decisões e que ele
nunca tivesse motivos para arrependimento.
É claro que, por mais que desejasse,
jamais iria conseguir protegê-lo de tudo. Ele ia ter que enfrentar muita coisa
sozinho e eu devia prepará-lo, da melhor forma possível, mas não era um
super-herói, nem um deus todo-poderoso... Era somente seu pai. Quando pensava naquilo,
sentia-me tão pequeno e impotente, que doía-me a alma e meus olhos enchiam-se
de lágrimas.
Ele cresceu saudável e deu-me
muito poucos motivos para preocupações. Não foi o tipo de filho que eu fui. Não
era rebelde, nem revoltado. Era uma criança tranquila e centrada, um menino
sempre curioso e estudioso, perguntador e interessado em quase tudo que lhe
passava à frente de seus olhos. Era, ao mesmo tempo, tímido e aventureiro, mas
nunca demonstrava medos. Assim como eu, ele
adorava os animais e respeitava-os, como parte de nossas vidas. Passava tempos
a observar o comportamento dos nossos gatos, de modo a compreender suas formas
de comunicar suas necessidades e suas demonstrações de afeto. Era um rapaz
muito perspicaz e atencioso e tinha um coração enorme, compassivo e muito generoso.
A tal menina Ana Maria tinha
muita sorte e, se soubesse estimulá-lo a mostrar, sempre, o melhor lado dele,
tinha tudo para ser muito feliz.
***
- Pai, essa é a Ana Maria.
Eu olhei para aquela criaturinha
de pé, à minha frente, ao lado do meu filho tão cheio de si e visivelmente
apaixonado e apreensivo. Via-se ambas as emoções contraditórias estampadas em
sua face e olhos. Ele era tão transparente quanto eu.
A menina tinha olhos grandes, de
uma tonalidade interessante de verde e longos cabelos a cair-lhe em cachos
pelas costas. Bem como ele havia descrito e, talvez, muito mais agradável aos
olhos que eu houvera imaginado, não sei por que motivo. Talvez por puro
instinto de proteção à minha cria, havia avaliado mal a descrição que ele
fizera da moça.
Era fácil ver a razão pela qual
ele estava apaixonado. Além da beleza natural, ela emanava uma tranquilidade
enorme. Senti uma ponta de ciúmes, mas também um alívio, ao perceber que os
dois davam-se bem e, pelo jeito, estavam felizes.
Ao olhar para eles, assim, tão
jovens e tão bem, eu não pude impedir de pensar em mim também e no meu futuro.
Ainda tinha muita vida pela frente e tinha muitos planos e projetos, mas não
contava com sua partida, ainda. Embora não fosse o que eles tivessem sequer
mencionado, meu instinto de pai já fazia os filmes todos na minha cabeça. Já
via-me a viver sozinho, com dois gatos a correr de um lado para o outro e um
estúdio cheio de pinturas espalhadas por todo canto.
Será que me dariam netos, logo?
Será que eu seria um bom avô? Eu tinha tanto receio de não corresponder às suas
expectativas…
Alguns anos depois, eu,
provavelmente, lembraria sorrindo dos dias em que temia o futuro deles e
avaliaria que havia sido tão tolo quanto ingénuo. Assim como nós sobrevivemos,
nossos filhos e netos também sobreviverão aos reveses que colocam-se em nossos
caminhos. A vida é uma grande e eficiente mestra. Só nos dá aquilo que sabe que
teremos força para suportar. Apesar de todos os receios, também não podia negar
que as alegrias que eu recebera compensaram todas as noites em claro e os dias
de vigília. Eu podia considerar-me um verdadeiro afortunado.
***
Respirar o ar da noite e o cheiro
do mar era uma coisa que fazia-me bem, desde que eu era uma criança. Ficar um
tempo sozinho a olhar o mar, mesmo sem ver direito o que se passava na
escuridão à minha frente, ajudava-me a pensar e manter a sanidade. Era minha
rotina, pouco antes de deitar... um tempo todo meu, para recarregar as baterias
e centrar meus pensamentos e rever os acontecimentos do dia.
- Eu amo o mar. Dá-me uma tranquilidade tão grande!
- Eu também…
Eu virei-me e observei a moça que
estava de pé na areia, com o olhar perdido em algum ponto muito longe, naquela
imensidão escura e não tão silenciosa à nossa frente. A monotonia das ondas a
baterem na praia era como um mantra hipnotizante e tranquilizador. Ela tinha
razão e eu tinha que reconhecer. Aquela vasta massa de água a mover-se no seu incessante
vai-e-vem, realmente, dava uma serenidade muito grande na gente…
Ao olhá-la, não sei por qual
razão, imaginei-a como o próprio mar… mas desconfiava que havia mais mistério
nela que podia-se ver a olho nu. O reflexo na superfície nunca mostra a
profundidade do oceano, nem o que se esconde por baixo daquele manto de água em
perpétuo movimento…
- O que vocês estão fazendo aí, parados? Não me diga que tu também tens
a mania de ficar na praia a olhar o mar, antes de ir deitar. Essa eu não sabia…
Ela riu. Eu também. Meu filho
passou o braço pela cintura da moça e beijou-lhe a face. Ela recostou a cabeça
no ombro dele e eu vi que era hora de deixar os dois a sós. Pedi licença,
usando a desculpa de ser bastante tarde e estar cansado e deixei-os ali fora.
A casa ficava muito próxima à uma
área da praia limitada por um agrupamento de rochas de cada lado e um pequeno
caminho abria-se dos fundos do quintal até a areia fofa e branca, dando uma
sensação de que aquele pedaço da praia era todo nosso.
Não demorou muito para os dois
entrarem também, mas eu já havia-me retirado para o quarto e deitado, embora
não tivesse conseguido adormecer imediatamente. Fiquei a olhar o teto, por uns
tempos, ainda, com uma sensação estranha a inquietar-me a mente. Por alguma
razão que eu não conseguia explicar, ficara com a impressão que havia alguma
coisa nela que eu deveria conhecer melhor, mas não conseguia descobrir o que
poderia ser…
O cansaço venceu-me, finalmente,
depois de muito tempo, sem consolar-me o espírito…
***
- Tu estás vestido como ele, mas não és ele…
O grande animal não retrucou, mas
tentou sorrir. Apesar de perceber que eu não era enganado facilmente, virou-se
e continuou a caminhar nas duas pernas traseiras, como um humano, sem dar
importância ao que eu havia falado. Era mais ou menos da minha altura e bem mais
gordo que eu. Segui-o de perto, da praia até a porta da casa, observando como
teve cuidado em parecer-se com Ginger, o gato, incluindo a cauda, que arrastava
pelo chão coberto de velhos tijolos, dispostos em um mosaico simples, mas
harmonioso. O pelo parecia haver sido costurado, muito justo, à volta do corpo,
de modo a não parecer falso, mas eu sabia que não era natural, porque não havia
brilho, nem vida, como numa cobertura original.
Quando chegou ao topo do lance de
três estreitos degraus, ele virou-se, olhou-me e sorriu. Era um sorriso
estranho, meio malicioso, que me intrigou, por parecer esconder uma má intenção
ou algo que eu não sabia o que era, mas que não me deixava confortável.
Ele empurrou a porta e entrou.
Eu arregalei os olhos… e acordei…
- Sabia que havia alguma coisa errada!
***