- Como é que eles desapareceram daquele jeito?
- Não sei. Mas a mim pareceu-me que não é muito bom sinal. Quem são
eles, afinal?
- Também não sei, mas gostaria muito de descobrir…
- Não acho que vamos voltar a encontrá-los. A não ser que…
Um pensamento perturbador passou
pela mente do rapaz de óculos, interrompendo o fluxo das palavras. O outro logo
percebeu o que ele queria dizer e balançou a cabeça, negativamente.
- Não… não… não… Não acredito. Não pode ser…
Coçou a cabeça, como quem procura
uma razão para desfazer-se do mau pensamento.
- Ou pode?
- Nós dois estamos cansados de saber que tudo é possível… tudo mesmo!
- Só que não teremos tempo para descobrir. Temos que voltar à base
amanhã... felizmente…
- Ou não…
- Ou não o quê?
***
- Fica quieta que eu vou soltar-te, devagar. Promete que não vais
gritar. Não quero machucar-te... A não ser que seja necessário… e se for…
Ela acedeu. Ele afrouxou,
devagar, a mão e o braço, deixando-a livre, mas sob sua cuidadosa atenção e vigilância.
- Estás maluca? Tu não podes expor-nos desta forma. Queres colocar-nos
em risco, correndo no meio da multidão, daquele jeito? Sabes o perigo em que
nos colocaste?
- Aparentemente quem expôs-se demais não fui eu. Olha bem para ti. Por
que aqueles dois rapazes estavam a seguir-nos? Não pareceu-me que fosse ao
acaso…
- Não passam de uns intrometidos. Nós podemos lidar com isso, mas não
agora. Temos coisas mais importantes para tratar. A nossa tarefa é mais
premente, neste momento. O tempo que nos resta é muito curto.
- Isto é mesmo essencial ou é, de facto, um grande engano? Ou, talvez, seja
apenas um capricho, por não querermos aceitar o inevitável?
- Capricho? Sobreviver é um capricho, agora? E de onde vem esta dúvida,
assim, do nada?
A moça olhou o homenzarrão, séria
e firmemente. Seu semblante estava sombrio e um tanto desafiador. No fundo de
seus olhos, porém, pairava uma triste dúvida. O certo já não lhe parecia tão
certo e o óbvio já não era tão óbvio…
Seus olhos pareceram perder o
foco e sua expressão mudou, de repente, de desafiadora para melancolicamente angustiada.
- Ainda não sei dizer, ao certo. Algo me diz que o sacrifício não dará
o resultado esperado.
Aquela evidência de dúvida… na
mente, no discurso e no comportamento da jovem mulher não eram normais e nem indicavam
bons sinais…
Eles, na verdade, não estavam treinados
ou programados para questionarem o propósito de uma tarefa que lhes fosse atribuída.
Ou iam em frente e até a conclusão, ou colocariam em risco muito mais que o
simples desígnio de uma missão considerada importante demais.
Garantir a sobrevivência, a
qualquer custo, era, definitivamente, uma grande incumbência… e não somente para
eles dois… só que, talvez, nunca chegasse a ser vista como tal… infelizmente…
Aquele era o heróico e triste
destino dos soldados anónimos.
***
- Nosso voo é ao final da tarde. Vamos arranjar as coisas e passar no
Mercado Público, uma última vez. De lá vamos direto ao aeroporto.
Embora não fosse o lugar
predileto do rapaz de óculos, ele concordou. Tinha esperança de reencontrar a
moça da trança negra, mas não manifestou seu desejo em alta voz. O outro
estranhou a falta de protesto do amigo, mas ficou quieto. Queria aproveitar as
últimas horas na ilha, antes de partirem de volta. Talvez não voltassem tão
cedo… talvez nem sequer voltassem…
- Vamos fazer o ‘check out’ e
sair em seguida, para aproveitar bem o tempo que nos resta aqui.
Pouco tempo depois, os amigos
saíam com as mochilas às costas, em direção ao Mercado Público. Nas mentes dos
dois haviam propósitos distintos, misturando-se a uma série de preocupações.
***
- É quase hora de voltarmos. Temos que partir daqui e concluir nossa
tarefa o quanto antes. As duas cidades mais populosas do país já estão
preparadas. Resta-nos ‘apertar o gatilho’, por assim dizer. Também já não precisaremos voltar para cá. Vamos ser
levados de volta, de lá mesmo… cada um de uma delas… separados…
- Eu não quero ir. Não acredito que vamos ser bem-sucedidos numa
loucura dessas...
- E desde quando tu tens esta opção?
- E se não der certo? E se…
O homem interrompeu-a, irritado.
- Se isso... Se aquilo… chega de se’s! Nós só saberemos, SE terminarmos
aquilo a que viemos… Esse é o único SE que importa! Agora, vamos!
***
- Não te vires agora. Finge que estás interessado em alguma coisa lá na
tua frente.
- Ok, mas diz-me o que está acontecendo…
- Código de barras diz-te alguma coisa?
O rapaz de óculos parou, como se
estivesse congelado. A decepção que sentiu antes, por não encontrar a moça no Mercado Público, desapareceu instantaneamente. Por alguma razão estranha, porém, um arrepio subiu-lhe pelas costas.
- Estão indo para portas diferentes. Acho que vão separar-se. A moça
veio para o lado de cá…. Está caminhando para perto da porta. Já podes olhar, agora.
O rapaz de óculos disfarçou um pouco e olhou na direção da porta, onde
os passageiros começavam a enfileirar-se, em resposta ao chamado que acabara de
ser ouvido pelos altifalantes da sala de espera do pequeno aeroporto. Os dois
levantaram-se e seguiram a fila, mostrando desinteresse em quase tudo, exceto
na moça de cabelos muito negros, uma dezena de passos à frente dos dois.
Em pouco tempo a porta de correr abriu-se e
os passageiros passaram por ela, depois de mostrar os documentos, a dirigir-se para a
aeronave que acabara de preparar-se para descolar. O homem de cabeça rapada
dirigiu um último olhar para a moça, que atravessava a porta e avançava em
frente, sem olhar para trás. Provavelmente certificava-se que ela não desistia.
Os dois cruzaram a porta logo em
seguida, com os olhos na dona da trança negra, que mal conseguia esconder uma
tatuagem incomum e intrigante. Apressaram o passo para chegarem mais perto e
observarem onde ela ia sentar. Quem sabe pudessem entrar em contacto…
Ao chegarem à pequena porta do
grande avião, a aglomeração lenta dos passageiros a arranjarem as bagagens de
mão e à procura dos assentos, distraiu os dois.
- Boa tarde. Sejam bem-vindos. Assento, por favor… Por este lado, por
favor.
A comissária orientava os
passageiros e separava-os nas duas fileiras, de modo a agilizar o embarque. Os
dois, agora, estavam mais preocupados em alocarem as bagagens por cima dos
assentos. O rapaz de óculos apressou-se a deixar a mochila e a procurar,
rapidamente, antes de sentar-se, por uma figura conhecida mais ao fundo.
- Desculpe. Com licença…
A comissária passou pelos dois a
passos apressados, na direção dos fundos da aeronave. O cabelo amarrado num
coque atrás da cabeça mal conseguiu esconder uma pequena marca escura… uma
tatuagem…
O rapaz de óculos ficou lívido
quando viu-a aproximar-se da moça de trança e entregar-lhe um pequeno pacote. A
moça olhou-a com um ar incerto e sentou-se, muito séria. A outra posicionou-se
na fileira de trás, de onde podia observar a passageira, bem de perto…
- Senhor, sente-se, por favor e afivele o cinto de segurança. Já vamos
partir…
O rapaz sentou-se a falou, em voz
baixa, ao amigo:
- Há algo muito errado aqui.
Ele contou o que viu e ambos concordaram
que estavam presenciando uma estranha sequência de acontecimentos. A meio do
voo, quando as coisas pareciam mais controladas, embora ainda intrigado e
quando voltava do toilete, o rapaz
sentiu que alguém passou por ele, esbarrando, no momento em que curvava-se para
afastar o cinto de segurança do assento, antes de sentar-se. Ele chegou-se para
a frente e deixou uma moça passar.
- O que é isso saindo do teu bolso?
O rapaz puxou um pedaço de papel dobrado
do bolso, que não estava ali, antes. Ao desdobrar, viu uma pequena mensagem
escrita com uma letra não muito comum, quase rebuscada demais.
- Espere do lado de fora do aeroporto, na chegada, junto aos táxis. Preciso
de ajuda…
Por baixo, havia uma marca, que
ele logo reconheceu e que o deixou mais preocupado. Ele estendeu o bilhete ao
amigo e os dois se entre-olharam, sem dizer nada, ao reconhecer um pequeno
código de barras como assinatura…