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domingo, 28 de agosto de 2016

Código de Barras (Final)


Um vento agradavelmente refrescante soprou forte contra os dois rapazes, assim que a porta de saída do aeroporto abriu-se e eles viram-se do lado de fora, onde os táxis enfileiravam-se e partiam com os passageiros e suas bagagens, num ritmo frenético e praticamente constante.

Um homem de cabelos escuros e fartos e estatura normal, aparentando cerca de pouco mais de trinta anos, aproximou-se e perguntou para onde eles iam, mas os rapazes estavam apenas preocupados em procurar por uma cabeça conhecida, entre as tantas que por ali estavam. O homem insistiu, mas os dois disseram que esperavam por alguém, dando-lhe menos importância que ele queria.

A porta de saída do prédio do aeroporto abria-se e fechava-se a cada poucos segundos, mas eles não viam quem esperavam a sair por ela.

- Vou voltar lá dentro. Pode ter acontecido algo...

- Vais nada! Achas que, no meio desta confusão, vais encontrar alguém? Vamos é embora daqui, antes que seja tarde. Chega desta história e desta gente estranha.

O homem, que não havia saído de perto, voltou a insistir com eles, oferecendo-lhes um serviço de transporte, mais barato que o dos táxis. Eles tentaram descartá-lo, mas ele era mesmo insistente. Os rapazes perceberam que se fossem tomar um táxi normal, teriam que esperar numa longa fila, que parecia aumentar conforme os minutos passavam e os carros já começavam a escassear, por isso decidiram ir com o tal motorista.

- OK. Ok. Onde está o carro?

- Logo ali, senhor, no estacionamento. Não posso parar aqui, se não estiver cadastrado nesta ‘máfia’ de táxis do aeroporto.

Ele fez uma cara de descontentamento com o sistema existente e seguiu em frente, com os dois a seguirem-no, até onde o carro deveria estar.

O rapaz de óculos ainda deu uma última olhada para trás, para certificar-se que não via a moça, mas, em meio ao tumultuoso vai-e-vem de pessoas na calçada, seria impossível distinguir a cabeça dela, entre tantas outras. O outro puxou-o pelo braço.

- Vamos! Esquece isso. É hora de voltar à base e à nossa vida normal. Parece que nem nas férias conseguimos ficar longe destas enrascadas!

Balançando a cabeça desconsoladamente, o rapaz cruzou a rua e entrou no parque de estacionamento, onde o motorista já esperava junto ao carro, uma ‘van’ preta, de aspeto comum, mas a brilhar muito, de tão bem encerada que estava. Alguém havia caprichado na aparência, ao contrário do que eles esperavam. Os vidros tinham película escura, que era o padrão de uso nos carros de transporte da segunda maior cidade do país.

O homem vestia-se como um motorista particular, com um fato preto e camisa branca. A gravata era em padrões de riscas de giz, inclinadas em ângulo à direita e muito fininhas, com diferentes tons de azul, variando entre o celeste e o cobalto, sobre um fundo azul-marinho.

Ele abriu o bagageiro e tomou as mochilas dos dois, acomodando-as com cuidado. Os dois entraram pelas portas traseiras, afivelaram os cintos de segurança e disseram para onde iam. O homem girou a chave na ignição e as travas das portas foram automaticamente acionadas. Ele contornou, passou pela cancela, que levantou automaticamente e seguiu para fora do parque.

Ao virar à direita, na rua paralela à avenida principal, diminuiu a marcha e encostou junto à calçada. A porta de passageiros, ao lado dele, na frente, foi aberta e uma moça, com os cabelos arranjados em uma longa trança negra, entrou e sentou-se. Ela afivelou o cinto e disse, sem olhar para trás:

- Vamos… depressa!

Os dois passageiros praticamente perderam a fala. O motorista acelerou e foi só então que eles perceberam que, por baixo dos fartos cabelos escuros, na parte de trás da cabeça, surgia a ponta de uma tatuagem que eles conheciam bem e que causou-lhes, não somente espanto, mas também um certo receio.

***

O carro, parado numa região quase deserta de um grande parque de ‘containers’, passava incógnito naquele local apropriado para um encontro quase insuspeito. O homem, que passara-se por motorista, estava parado em frente ao carro, a falar com a moça. Os dois rapazes estavam trancados dentro do carro, sem poder sair ou ouvir a conversa, mas conseguiam perceber que havia um conflito qualquer entre eles.

Um outro carro, também preto, aproximou-se e parou à frente ao primeiro. Dele saltou um homem grandalhão, com a cabeça rapada, vestido com uma ‘t-shirt’ preta bem justa, a evidenciar-lhe os músculos dos braços e torso. Era o personagem que faltava e que eles já haviam visto antes, em várias outras ocasiões.

O homem trocou umas poucas palavras com os colegas e veio na direção do outro carro, onde os dois rapazes estavam presos.

- Quem são vocês, afinal? Alguma seita maluca ou um grupo terrorista? O que vocês querem de nós?

O rapaz de óculos estava impaciente e irritado. Aquela história parecia estar indo longe demais e, até aquele momento, completamente incompreensível. Seu amigo, ainda quieto, começava a temer pelas vidas dos dois, mas não comentou nada. Esperou que o homem de cabeça rapada, que parecia ser o líder deles, falasse.

- Não. Não somos de nenhuma seita maluca. Assim como vocês, nós somos soldados treinados.

- Soldados? Como assim? Soldados treinados para a batalha? Alguma guerra?

A moça respondeu.

- Não exatamente. Antes, mais pelo contrário… para impedir uma...

- Que guerra?

- Uma guerra estúpida e silenciosa: a autodestruição da humanidade…

- Só faltava essa. Isso é de loucos! E por que estamos envolvidos nisso, afinal?

- Não era suposto que a nossa presença fosse percebida. Julgávamos que estávamos sendo o mais insuspeitos possível, até que vocês começaram a seguir-nos. A interferência de vocês poderia colocar em risco o sucesso do que viemos fazer… e isso poderia ter consequências bastante graves no futuro.

- No futuro? Essa conversa está cada vez mais sem sentido. Vocês não podem ser levados a sério. Isto é uma insanidade.

O rapaz de óculos julgava que estava diante de um grupo de fanáticos, nos quais foi executada uma estranha lavagem cerebral, tornando-os terroristas perigosos e destemidos, com propósitos homicidas e, provavelmente, também, suicidas.

- E foram enviados por quem, pelo amor de Deus?

- A pergunta correta não é: ‘por quem?’ Mais adequadamente, deveria ser: ‘de onde?’… ou, talvez, melhor ainda: ‘de quando?’.

Os dois rapazes se entreolharam. 

- Nós viemos do futuro. Nossa missão é impedir o crescimento descontrolado da população, antes que seja tarde demais.

O soldado tentou manter a calma, já sabendo que aquelas pessoas estavam completamente dementes e, para piorar as coisas, acreditavam naquilo que diziam. Ele, todavia, tinha que fazer uma pergunta, que no momento pareceu-lhe crucial.

- E como vão fazer isso?

- Usando um método contraceptivo mais eficaz e mais definitivo. Na verdade, o objetivo é esterilizar mais de sessenta por cento da humanidade.

- Mas isso é uma loucura! Como poder ser humanamente possível?

- Esta é, apenas, uma medida preventiva, como tantas outras que já aconteceram na vossa e na nossa história. As pessoas não perceberão que o objetivo é muito mais profundo. A esterilização é só uma parte do plano e é para um bem maior.

- Castrar mais da metade da população é um bem maior? Vocês não sentem um peso na consciência?

- Na verdade, não! Nós, no futuro, somos desprovidos de uma série de fraquezas que esta época possui. São consideradas comportamentos de risco. Esta medida é necessária, para o avanço da ciência. Ninguém perceberá nada, porque o efeito não será evidente. Até que os cientistas deem-se conta de que a humanidade foi, de certa forma, envenenada, demorará um certo tempo. Quando os responsáveis perceberem, será quase tarde demais. A terra estará com uma população envelhecida, estéril e com o crescimento demográfico em acelerada decadência. A ciência terá que apressar as ações de controlo e de refrear o inevitável declínio da raça. A clonagem será a única saída… e o mal necessário… Já nos encarregamos de plantar uma ténue semente na cabeça dos pesquisadores de um certo laboratório, aplicando dinheiro e investindo na biotecnologia. Precisamos que seja levado mais a sério e em menor prazo, para ajudar-nos a ajudar o futuro…

- Nós mesmos fomos produzidos em uma série controlada, do melhor material genético possível, cientificamente manipulado, para sermos livres de falhas, de vulnerabilidades físicas e de dúvidas, por este mesmo laboratório. Somos marcados com códigos de barras, não temos nomes e, no nosso caso, temos uma missão a cumprir e tempo de vida pré-determinado. Nenhum de nós existe há mais de um ano, a não ser…

A moça olhou para o ‘motorista’ que, até então, mantinha-se calado, mas não pode concluir a frase, diante do olhar fulminante que recebeu do homem de cabeça rapada.

Um dos jovens soldados não percebeu a sutileza do que se passou naquele momento. Apesar de ainda em dúvida, ele tinha que explorar todas as possibilidades de compreender aquela história. Será que aqueles seres eram, mesmo, soldados enviados do futuro? O discurso era, de certa forma, bastante credível, embora extremamente fantástico.

- E o resto do planeta vai continuar intocado? O que vai acontecer, no futuro, com os animais, as plantas, o mar, essa beleza toda?

- Já não existirá nada disso, se deixarmos as coisas como estão. O descontrolo no crescimento demográfico resultará em um gravíssimo problema, com efeitos exponenciais e uma grande falta de sustentabilidade, o que levará à uma consequente crise mundial. A fome vai criar o caos e o desespero. Consequentemente, a destruição também será exponencial. Mesmo o dinheiro e as riquezas não terão valor, já que não haverá o que comprar e a produção será deficiente para suprir todas as necessidades. É por isso que fomos enviados, para tomar uma ação urgente, antes que fosse tarde demais. Aliás, já é bastante tarde e o próprio laboratório está em grande perigo…

- O processo, agora, porém, já foi iniciado. Já não há tempo para desfazer. É impossível voltar atrás…

- Como assim? Já começou? De que forma?

- Em vários pontos do mundo, os nossos soldados já seguiram as ordens recebidas, à risca, despoletando um processo calculadamente eficiente e efetivo. Os efeitos disto serão percebidos tarde demais. Não haverá como reverter o que foi desencadeado nestes últimos dias. Nossa missão aqui está concluída. Agora só temos que voltar para o tempo de onde viemos.

- Então por que nos trouxeram para cá?

- Para impedir que interferissem ou espalhassem o pânico. Quando vocês começaram a seguir-nos, ficamos com receio que pusessem a operação a perder. Ao nos separamos, criamos uma necessária distração e garantimos que o plano seguisse, sem que houvesse qualquer intromissão. 

- Mas nós podemos boicotar esse vosso plano. Isso ainda pode dar muito errado…

- Vocês acham que têm alguma hipótese? Vocês nem saberão por onde começar. Não conhecem o procedimento, nem o que foi iniciado. Se quiserem nos denunciar, como se isso fosse possível, que provas teriam para apresentar? Serão tomados por loucos ou drogados. Tudo parecerá um sonho distante ou um delírio esquizofrénico qualquer… Além do mais, já não estaremos por cá...

O homem de cabeça rapada olhou para o outro, que se havia passado por motorista e calou-se.

O rapaz de óculos logo percebeu que havia uma mensagem subliminar naquela parada, mas não perguntou nada. O que poderia, aquele homem, aparentemente inofensivo, ter, que importunava os outros?

***

- Temos que voltar. Resta-nos muito pouco tempo, agora.

Um telefone tocou. O homem atendeu, com o cenho franzido.

- Mas isso não estava nos planos!

Ouviu-se uma voz bastante alterada, do outro lado da linha. O homem calou-se, ouviu e, finalmente, cedeu.

- OK. Assim será!

Ao desligar, ele caminhou, em silêncio, até o carro parado. De lá, voltou, dentro de poucos segundos, com uma arma automática na mão. Os soldados perceberam que o cano tinha um silenciador…

Antes que alguém sequer expressasse qualquer reação, ele apontou a arma e disparou, sem pestanejar, para surpresa de todos.

A moça caiu, com um buraco de bala na cabeça e um largo fio de sangue a escorrer, como um riacho espesso e rubro, sobre a relva.

O homem, então, virou-se e apontou para o motorista, pressionando o gatilho, mais uma vez.

O motorista, num gesto inesperado e desesperado, jogou-se contra ele e os dois começaram uma luta estranha, diante dos dois jovens soldados, que acorreram imediatamente, para ajudar a imobilizar o assassino, derrubando-o ao chão.

Na confusão, como sempre acontece quando se disputa a posse de uma arma carregada, ouviu-se o som de um tiro abafado. E, então, o grupo parou de lutar…

***

O homem que havia-se feito passar por motorista e que foi ferido segundos antes de começar a lutar, estava caído de costas, desacordado, com a cabeça ensanguentada, um pouco atrás dos dois rapazes. O homenzarrão de cabeça rapada, que teve a arma disparada contra seu próprio corpo, durante a luta, tinha uma mancha escura e húmida crescendo do meio de seu peito e tingindo o chão de vermelho, quase ao lado do corpo da moça assassinada. A arma ainda estava em sua mão e seu dedo, ainda no gatilho...

Os dois jovens soldados, levantaram-se e começaram a caminhar, ligeiros, na direção dos dois automóveis pretos. O motorista, porém, moveu-se, assim que eles passaram. Ele passou a mão na cabeça e gemeu, ao tocar a ferida que ainda sangrava. Os dois rapazes abaixaram-se e, sem pensar muito, carregaram-no junto deles, até o carro em que estiveram antes, ajeitando-o no banco de trás e saindo em alta velocidade. 

***

O mar estava calmo, como se todas as tempestades, de todos os tempos, houvessem passado de vez e como se as ondas e o movimento das águas fossem somente os acordes de uma suave cantiga de ninar, ou de um mantra repetitivo e tranquilizante.

Os três homens estavam de pé, lado a lado, cada qual com seus próprios pensamentos, a olhar o mar a movimentar-se e a ver umas poucas pessoas passarem, sem dar-se conta do que acontecia nos bastidores da vida, sem que tivessem qualquer noção e que poderia colocá-las em perigo. O rapaz de óculos quebrou o silêncio.

- Nós ainda não decidimos o que vamos fazer com a informação que nos foi dada…

- Não vamos fazer nada. Aquilo não pode ser levado a sério. Foi uma loucura… Nunca saberemos a verdade…

Os dois jovens soldados olharam para o outro homem, que manteve-se impávido, sem esboçar nenhuma reação ao comentário deles. Sua vida havia sido salva pelos dois e ele devia-lhes mais do que um simples obrigado. O homem deu um longo suspiro, como se quisesse absorver o iodado e salino ar do oceano, como se fosse por uma última vez. Ele fechou os olhos por uns instantes, depois falou, calmamente.

- Nós evitamos falar sobre este assunto por muito tempo…

- Talvez seja hora de falarmos, mesmo.

- Já não há muito o que falar. Não lembro de muita coisa antes do incidente… acidente… fosse lá o que fosse…

- Grande! Que bela história! E nunca vamos poder confirmar nada…

- Eu lembro de ter participado de um treinamento militar bastante árduo… de ter sido enviado antes deste grupo… da introdução do fármaco nos abastecimentos de água… depois é tudo um pouco confuso…

- O fármaco na água? Então foi assim que a esterilização foi executada? Que loucura…

- Era necessário. Foi para isso que fomos enviados. O laboratório estava sob pressão e a invasão era iminente… Engraçado que eu não lembro de nada, antes do treinamento… como se nunca houvesse acontecido…

- Ou como se tivesse sido apagado…por alguma razão…

O homem parou de falar e fechou, novamente, os olhos, apoiando-se no metal de proteção do passadiço, em frente à praia, com a cabeça baixa.

Os dois soldados não sabiam o que pensar, dizer, ou fazer… Aqueles fragmentos de memória contavam uma história absurdamente convincente e descabida, ao mesmo tempo, mas que não fazia conexão com qualquer tipo de realidade.

Treinamentos militares, laboratório secreto, viajantes do tempo… que sentido poderiam fazer?

Se a história era real e aconteceu mesmo, ficou perdida na lembrança de um soldado ferido e com problemas de memória. E como saber o que fazer?

***

- Eu não entendo. Se  os soldados nunca voltaram e se tudo o que aconteceu não foi mesmo um delírio em massa, como os cientistas irão saber se o plano funcionou?

- A explicação é, até, bem simples. Se nós mudarmos o passado, não existirá o mesmo futuro que nos enviou a ele… Para todos os efeitos, na verdade, eles nunca existiram… Eles não poderiam voltar para um futuro que já não existirá… pelo menos não da maneira que eles viram!

- E por mais assustador que possa parecer, nós nunca saberemos se o plano funcionou, porque nunca chegaremos a aquele futuro… É um beco sem saída!

- Oh, meu Deus! Que loucura!

O rapaz de óculos tirou-os e passou as mãos no rosto, parecendo completamente confuso.

Um homem aproximou-se e perguntou se eles tinham lume para acender o cigarro. Eles disseram que não e o estranho agradeceu e continuou a caminhar, sem olhar para trás. Ele passou os dedos pelos cabelos e ajeitou a gola do casaco. 

Só não foi a tempo suficiente de esconder uma pequena tatuagem na parte de trás do pescoço... um código de barras...

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Código de Barras (Parte 1)


- Como é que ele apareceu ali, do nada, dentro da nossa foto?

- Sei lá. Devia estar sentado ali há algum tempo…só que não o vimos…

- O que é aquilo ali, atrás da cabeça dele?

- Parece uma tatuagem… Olha no zoom… acho que é um código de barras!

- Uff!!! Cada tipo que aparece por cá! Não quer dizer que não seja original, até… mas parece mais um soldado ou um experimento científico, que um homem normal. Um código de barras não é uma figura tão bonita assim, para ser tatuada na cabeça...

- Ele é bastante assustador, na verdade. Não é do tipo para encontrar-se quando estiver sozinho.

- Também não precisas exagerar. Nem é tao assustador assim… ou é?

Os dois riram. Olhavam uma ‘selfie’ que haviam tirado na esplanada do Café e, ao fundo, aparecia um homenzarrão de cabeça rapada, sentado meio de costas para eles, com uma tatuagem estranha, gravada na parte de trás da cabeça, quase onde o pescoço começava. Uma t-shirt preta, bastante justa ao corpo e braços, evidenciava músculos extenuadamente trabalhados por longas horas de ginásio e musculação ou, talvez até, treinamento militar. A pele era muito bronzeada, mas de uma maneira natural e permanente, como de uma pessoa que vive nos trópicos, acostumado com a vida ao ar livre e com os efeitos de muitas horas diárias de exposição da pele ao sol. 

Uma sensação incómoda passou pelas mentes dos dois, que sem dizerem nada, viraram-se lentamente, na direção de onde o homem se encontrava. O lugar onde ele esteve, porém, já estava vazio e não havia ninguém, com aspeto semelhante, por perto, para frustração dos dois.

- Tive um mau pressentimento.

- Estranho. Eu também…

***

- Vamos ao Mercado Público. Eu adoro aquele lugar.

- Tem cheiro a peixe. E tem muita gente…

- Deixa-te de histórias e vamos. Aqui no calçadão também tem muita gente e não reclamas. Também não gosto de ficar tanto tempo ao sol e estou a fazer-te companhia. Preferia ficar sentado em um banco, em baixo da figueira e ver o pessoal passar, ou em algum lugar mais fresco, como naqueles corredores do Mercado…


O Mercado Público era uma construção antiga, que havia sido restaurada, para dispor de algumas modernidades, mas mantendo o padrão arquitetónico original de mais de dois séculos atrás. A última reconstrução havia resgatado tanto o estilo, quanto o padrão de cores inicial. 

As portas e janelas, em arco romano e pintadas de verde musgo contrastavam harmoniosamente com o amarelo das paredes do edifício. Por ter um pé direito bastante alto, mantinha-se fresco e agradável durante toda a estação quente, sem necessidade de ar condicionado. 

Era construído em formato de um retângulo vazado, contendo dois edifícios separados, a ala norte e a sul e, na parte central, abria-se uma praceta que abrigava as esplanadas de uma praça de alimentação, bastante frequentada, tanto pela população local, quanto pelos turistas. 

Duas torres de atalaia apontavam para o leste e duas para o oeste, por cima de dois pares de arcos romanos, que davam entrada para o mercado e uniam as duas alas. Corredores corriam por cima da cabeça dos transeuntes, pelo lado de dentro da praceta, fechando o retângulo. Escadarias de acesso, uma de cada lado, na entrada e na saída, completavam o quadro harmonioso e simples, mas com uma presença forte no centro da velha cidade.  

Na época em que fora construído, a ala sul ficava junto ao porto, para facilitar a descarga e evitar gastos desnecessários com o transporte de mercadorias diversas e do pescado que chegava fresco do alto-mar, nos inúmeros barcos pesqueiros das companhias da ilha. Era o local onde o melhor, mais abundante e mais fresco pescado era comercializado. 

O aterro fez a terra crescer e o porto ser extinto, mudando para o outro lado da baía. O mercado, porém, permaneceu no local, com seu comércio tradicional, adaptado às necessidades do povo local, turistas e comerciantes.

Os dois entraram na ala sul, que ainda mantinha o comércio de peixes e frutos do mar, mas também havia evoluído com uma série de 'boxes', mais próximos à entrada, onde serviam pratos típicos e tradicionais da ilha. Comeram uns bolinhos de siri e camarão, enquanto bebericavam um chope gelado e observavam os transeuntes a passarem e a conversarem alto, para tentar fazerem-se entender no meio daquela Babel de sotaques estranhos e familiares. 

Na outra extremidade estavam os 'boxes' de peixe e o aroma, por causa do vento, vinha na direção deles.

- Eu disse que esse lugar cheirava mal…

- Claro. É o mercado de peixe…

Uma moça, vestida com roupas pretas, passou por eles, a passos ligeiros. Tinha os cabelos muito negros  e brilhantes arrumados em uma trança que descia-lhe pelas costas, deixando a pele muito branca do pescoço à mostra. 

Por um segundo, o rapaz de óculos teve a impressão que viu uma pequena tatuagem por baixo da trança, enquanto observava a mulher apressar o passo e desaparecer na saída central, que dava para o lado norte. O rapaz olhou o outro com uma expressão estranha e uma palidez inesperada, para o calor que fazia.

- O que foi? Parece que vais desmaiar… Estás bem?

- As tatuagens de códigos de barra estão em moda por cá?

- O quê? Que bobagem…

- Acho que vi outra pessoa com o mesmo tipo de marca... Vem comigo… Quero certificar-me de uma coisa…

Os dois levantaram-se e foram na direção da saída. Alguém passou por eles a passos largos e empurrou-os para o lado, passando ligeiro, sem pedir desculpas. 

Era um homem grande e musculoso, de cabeça rapada, vestido com uma t-shirt preta. Atrás da cabeça, no alto do pescoço, havia uma pequena tatuagem, representando um código de barras.

- Vamos!

Os dois seguiram o homem, com passos apressados. Aquilo não podia ser uma mera coincidência. Na outra extremidade, entre os transeuntes, que passeavam despretenciosamente, uma mulher de cabelos negros, com uma longa trança, vestida também de negro, andava muito rápido, sem olhar para trás. O homem estava muito próximo dela e um tanto longe dos dois, à aquela altura.

Os dois rapazes adiantaram-se, quando a moça virou à esquerda, depois de passar o arco da entrada leste, com o homem de cabeça rapada seguindo-a muito de perto.

Viraram à esquerda, quando chegaram ao portal, mas no meio do povo não conseguiam ver os dois personagens que perseguiam, sem nem ao menos saber porquê. Olharam à volta, mas não avistaram o homem, ou a moça. Correram até a rua atrás do prédio da Alfândega, mas ninguém que se parecesse com eles caminhava a passos rápidos ou lentos… 

Haviam desaparecido no meio do burburinho da tarde de verão.

Os dois rapazes, finalmente, desistiram e continuaram, em frente, pensativos e sem conversar, no meio dos pedestres que caminhavam, em direções diversas, pelas pedras dispostas em mosaico, no chão do calçadão. 

Um músico de rua tocava guitarra e cantava uma velha e conhecida canção, para um público diminuto.


Por trás da porta em veneziana, na entrada da torre de atalaia do mercado público, um homem grande e de pele bastante bronzeada, mantinha uma mão a tapar, firmemente, a boca de uma moça de cabelos negros e pele muito alva, que tinha os olhos arregalados e o corpo preso pelo outro braço do seu algoz, impedida de gritar ou mover-se…

No lado de fora, a vida continuava normal, com os turistas e locais a caminharem, alheios ao que acontecia por trás das tabuinhas da porta pintada de verde…


***