Está atrasada.
Prefiro quando elas veem juntas.
As duas. Como todos os dias... Às duas.
A outra já chegou. Costuma usar
um uniforme branco, de uma peça só, abotoado na frente, mas o primeiro botão,
na altura do peito, parece provocar-me.
Como sempre, àquela hora, ela abre
as cortinas e deixa o sol entrar… como ela… cheia de luz e de vida, pelo quarto
adentro. E eu que nunca gostei muito de ficar ao sol, agora espero por este
momento, só para ter um prazer tão simples…
É a hora do meu chá. Levando em
conta que o almoço vem muito cedo, para o meu gosto, trazer-me o chazinho, às
duas é, mesmo, uma dádiva, por vários motivos.
Ela entra, finalmente. Elegante e
tranquila, apesar de um bocadinho atrasada. Sempre bem vestida. Adoro a forma
como arranja os cabelos e como veste-se com aquele ’tailleur’, que lhe cai tão bem. A cintura bem marcada. Os ombros
muito aprumados.
Tudo nela é muito…
Os lábios sempre tão vermelhos. A pele
sempre tão pálida. Será que aquilo é maquiagem? As pernas sempre tão firmes
sobre aqueles saltos altos e finos, a marcar o compasso com seu toc-toc intermitente. Imagino como seus
pés devam sofrer dentro daqueles sapatos, tão finos, tão na moda. Um
sacrifício, certamente, em nome da ‘finesse’.
Lembra a figura da minha tia,
sempre empertigada, mantendo a aparência e uma vaidade quase sem limites…
- Bom dia, tio.
Adoro quando elas me cumprimentam
assim, como os espanhóis o fazem, chamando-me de tio.
Considero que seja uma forma
carinhosa, pelo sorriso tão espontâneo. Eu retribuo o sorriso. É o melhor que
posso fazer. Ela respeita minha vontade. Não afasta o gato que dorme tranquilo
aos meus pés. Sabe que eu gosto de tê-lo por perto… assim como à ela... e à
outra. Enquanto eu tiver a atenção delas e a presença dele, sinto-me vivo.
Ela lê meu olhar. Sabe o que há
dentro da minha mente. Sabe que eu entretenho-me a olhá-las, já que não há mais
muito que eu possa fazer.
Gosto de observar as duas, em
movimento contínuo no quarto, a dizer gracejos, a sorrir, como duas andorinhas
a fazer meu último verão…
Será que dariam a mesma atenção,
se as circunstâncias fossem diferentes?
Imagino que sintam certa pena de
mim… da minha condição…
Eu odeio este maldito câncer! Odeio
esta doença que, agora, prende-me à esta cama… meu último leito… antes do
inevitável…
Embora odeie, também, que sintam
pena de mim, do jeito que as coisas estão, não posso condená-las. Não hoje. Não
agora. Não mais…
Hoje eu só quero olhar estas duas
belas andorinhas a voarem dentro do meu quarto e fazerem a minha última
alegria, antes que todas as luzes apaguem de vez…
Um texto curto... um ensaio na mente... uma elegia à beleza das duas andorinhas, que fazem da vida de um homem, um inesperado verão...
ResponderEliminardá para imaginar a ultima alegria!
ResponderEliminarÉ, Mesquita, cada um a imaginar uma coisa... lol
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