segunda-feira, 25 de julho de 2016

Código de Barras (Parte 1)


- Como é que ele apareceu ali, do nada, dentro da nossa foto?

- Sei lá. Devia estar sentado ali há algum tempo…só que não o vimos…

- O que é aquilo ali, atrás da cabeça dele?

- Parece uma tatuagem… Olha no zoom… acho que é um código de barras!

- Uff!!! Cada tipo que aparece por cá! Não quer dizer que não seja original, até… mas parece mais um soldado ou um experimento científico, que um homem normal. Um código de barras não é uma figura tão bonita assim, para ser tatuada na cabeça...

- Ele é bastante assustador, na verdade. Não é do tipo para encontrar-se quando estiver sozinho.

- Também não precisas exagerar. Nem é tao assustador assim… ou é?

Os dois riram. Olhavam uma ‘selfie’ que haviam tirado na esplanada do Café e, ao fundo, aparecia um homenzarrão de cabeça rapada, sentado meio de costas para eles, com uma tatuagem estranha, gravada na parte de trás da cabeça, quase onde o pescoço começava. Uma t-shirt preta, bastante justa ao corpo e braços, evidenciava músculos extenuadamente trabalhados por longas horas de ginásio e musculação ou, talvez até, treinamento militar. A pele era muito bronzeada, mas de uma maneira natural e permanente, como de uma pessoa que vive nos trópicos, acostumado com a vida ao ar livre e com os efeitos de muitas horas diárias de exposição da pele ao sol. 

Uma sensação incómoda passou pelas mentes dos dois, que sem dizerem nada, viraram-se lentamente, na direção de onde o homem se encontrava. O lugar onde ele esteve, porém, já estava vazio e não havia ninguém, com aspeto semelhante, por perto, para frustração dos dois.

- Tive um mau pressentimento.

- Estranho. Eu também…

***

- Vamos ao Mercado Público. Eu adoro aquele lugar.

- Tem cheiro a peixe. E tem muita gente…

- Deixa-te de histórias e vamos. Aqui no calçadão também tem muita gente e não reclamas. Também não gosto de ficar tanto tempo ao sol e estou a fazer-te companhia. Preferia ficar sentado em um banco, em baixo da figueira e ver o pessoal passar, ou em algum lugar mais fresco, como naqueles corredores do Mercado…


O Mercado Público era uma construção antiga, que havia sido restaurada, para dispor de algumas modernidades, mas mantendo o padrão arquitetónico original de mais de dois séculos atrás. A última reconstrução havia resgatado tanto o estilo, quanto o padrão de cores inicial. 

As portas e janelas, em arco romano e pintadas de verde musgo contrastavam harmoniosamente com o amarelo das paredes do edifício. Por ter um pé direito bastante alto, mantinha-se fresco e agradável durante toda a estação quente, sem necessidade de ar condicionado. 

Era construído em formato de um retângulo vazado, contendo dois edifícios separados, a ala norte e a sul e, na parte central, abria-se uma praceta que abrigava as esplanadas de uma praça de alimentação, bastante frequentada, tanto pela população local, quanto pelos turistas. 

Duas torres de atalaia apontavam para o leste e duas para o oeste, por cima de dois pares de arcos romanos, que davam entrada para o mercado e uniam as duas alas. Corredores corriam por cima da cabeça dos transeuntes, pelo lado de dentro da praceta, fechando o retângulo. Escadarias de acesso, uma de cada lado, na entrada e na saída, completavam o quadro harmonioso e simples, mas com uma presença forte no centro da velha cidade.  

Na época em que fora construído, a ala sul ficava junto ao porto, para facilitar a descarga e evitar gastos desnecessários com o transporte de mercadorias diversas e do pescado que chegava fresco do alto-mar, nos inúmeros barcos pesqueiros das companhias da ilha. Era o local onde o melhor, mais abundante e mais fresco pescado era comercializado. 

O aterro fez a terra crescer e o porto ser extinto, mudando para o outro lado da baía. O mercado, porém, permaneceu no local, com seu comércio tradicional, adaptado às necessidades do povo local, turistas e comerciantes.

Os dois entraram na ala sul, que ainda mantinha o comércio de peixes e frutos do mar, mas também havia evoluído com uma série de 'boxes', mais próximos à entrada, onde serviam pratos típicos e tradicionais da ilha. Comeram uns bolinhos de siri e camarão, enquanto bebericavam um chope gelado e observavam os transeuntes a passarem e a conversarem alto, para tentar fazerem-se entender no meio daquela Babel de sotaques estranhos e familiares. 

Na outra extremidade estavam os 'boxes' de peixe e o aroma, por causa do vento, vinha na direção deles.

- Eu disse que esse lugar cheirava mal…

- Claro. É o mercado de peixe…

Uma moça, vestida com roupas pretas, passou por eles, a passos ligeiros. Tinha os cabelos muito negros  e brilhantes arrumados em uma trança que descia-lhe pelas costas, deixando a pele muito branca do pescoço à mostra. 

Por um segundo, o rapaz de óculos teve a impressão que viu uma pequena tatuagem por baixo da trança, enquanto observava a mulher apressar o passo e desaparecer na saída central, que dava para o lado norte. O rapaz olhou o outro com uma expressão estranha e uma palidez inesperada, para o calor que fazia.

- O que foi? Parece que vais desmaiar… Estás bem?

- As tatuagens de códigos de barra estão em moda por cá?

- O quê? Que bobagem…

- Acho que vi outra pessoa com o mesmo tipo de marca... Vem comigo… Quero certificar-me de uma coisa…

Os dois levantaram-se e foram na direção da saída. Alguém passou por eles a passos largos e empurrou-os para o lado, passando ligeiro, sem pedir desculpas. 

Era um homem grande e musculoso, de cabeça rapada, vestido com uma t-shirt preta. Atrás da cabeça, no alto do pescoço, havia uma pequena tatuagem, representando um código de barras.

- Vamos!

Os dois seguiram o homem, com passos apressados. Aquilo não podia ser uma mera coincidência. Na outra extremidade, entre os transeuntes, que passeavam despretenciosamente, uma mulher de cabelos negros, com uma longa trança, vestida também de negro, andava muito rápido, sem olhar para trás. O homem estava muito próximo dela e um tanto longe dos dois, à aquela altura.

Os dois rapazes adiantaram-se, quando a moça virou à esquerda, depois de passar o arco da entrada leste, com o homem de cabeça rapada seguindo-a muito de perto.

Viraram à esquerda, quando chegaram ao portal, mas no meio do povo não conseguiam ver os dois personagens que perseguiam, sem nem ao menos saber porquê. Olharam à volta, mas não avistaram o homem, ou a moça. Correram até a rua atrás do prédio da Alfândega, mas ninguém que se parecesse com eles caminhava a passos rápidos ou lentos… 

Haviam desaparecido no meio do burburinho da tarde de verão.

Os dois rapazes, finalmente, desistiram e continuaram, em frente, pensativos e sem conversar, no meio dos pedestres que caminhavam, em direções diversas, pelas pedras dispostas em mosaico, no chão do calçadão. 

Um músico de rua tocava guitarra e cantava uma velha e conhecida canção, para um público diminuto.


Por trás da porta em veneziana, na entrada da torre de atalaia do mercado público, um homem grande e de pele bastante bronzeada, mantinha uma mão a tapar, firmemente, a boca de uma moça de cabelos negros e pele muito alva, que tinha os olhos arregalados e o corpo preso pelo outro braço do seu algoz, impedida de gritar ou mover-se…

No lado de fora, a vida continuava normal, com os turistas e locais a caminharem, alheios ao que acontecia por trás das tabuinhas da porta pintada de verde…


***

quinta-feira, 14 de julho de 2016

The Two, At Two


She is late.

I like it better when they come together. The two. As every day... At two.

The other one has arrived already. She wears that almost too tight white uniform fastened up the front except for that top button, which opens over her breast and draws my eye involuntarily to it every time I glance at her, attracting me like a strange magnet that defies me to look away.

As soon as she got in the room, she opened the curtains and let the sun in, like she always does, at this time of the day. The place immediately seems to be filled up with life and light…. Just like her… just like a bright sunshine day…

Since I was very young I’ve never really appreciated to stay out in the sun, but now, under different circumstances, things have changed… I have changed… I have really changed...

Now I wait for this moment of the day, just to have this unfamiliar and simple pleasure...

It's my tea time. Taking into account that lunch comes too early, half an hour before noon, bringing me some tea, at two, is a gift for several reasons. One of them is to have them both giving me attention and care…

She comes at last, so stylish and serene, though a bit late. She is always so well dressed. I love the way she arranges her hair and how she wears that ‘tailleur', which suits her so well… The well-marked waist… The very upright shoulders…

Everything in her is so awesomely remarkable...

Her lips are always so red. Her skin, always so pale. I wonder if that's the effect of the makeup she wears… Those legs are always so firm on the high ‘stiletto’ heels, marking the beat with that intermittent toc-toc on the wooden floor. I wonder if her feet suffer in those so fine and so fashionable shoes. A sacrifice, certainly, on behalf of the elegance.

She reminds me of an aunt of mine, always standing so straight, keeping her looks in an almost limitless vanity…

- Good morning, sweet uncle.

I love it when they greet me like the Spanish do, calling me ‘uncle’.

I consider it a caring and loving way, as it is always followed by a spontaneous and sweet grin. I reciprocate the smile. It's the best I can do, under the current situation.

She respects my will and leaves the cat, which sleeps quietly at my feet, alone. She knows I like having him around and close to me... as well as her... and the other one. Having a bit of their attention and their gaudy presence in the room makes me feel so alive and joyful, besides the condition I’m in…

She reads my eyes. She knows what's going on in my mind. She is aware that I entertain myself observing them, since there is not much else I can do…

I like to watch them both in continuous movement in the room, telling me jokes, smiling and giggling, just like two swallows flying around and making my last summer still so warm and so bright...

Would they pay me the same attention, if circumstances were different?

I suppose they feel sorry for me... and my current state...

Oh, God! I hate this damn cancer! I hate this cursed sickness that now keeps me manacled, subdued and doomed to this bed... my last one... before the inevitable finally comes...

I truly loathe the ones who are overwhelmed by the sight of this sick man in his bed, but taking into consideration the way things are now, I just could never judge these two amazing creatures… nor would I criticize anyone else. Not today. Not now. Not anymore…

Today I just want to look at these two beautiful summer forecasting swallows flying in my room and making my last joy before all the lights are turned off for once and forever...

Tomorrow, at two, the two - the blonde nurse, in her impeccable and well-dressed white uniform and the brunette psychologist, in her especially designed navy-blue 'tailor-suit' - will no longer have to come back here... ever again…


quinta-feira, 7 de julho de 2016

As Duas, Às Duas


Está atrasada.

Prefiro quando elas veem juntas. As duas. Como todos os dias... Às duas.

A outra já chegou. Costuma usar um uniforme branco, de uma peça só, abotoado na frente, mas o primeiro botão, na altura do peito, parece provocar-me.

Como sempre, àquela hora, ela abre as cortinas e deixa o sol entrar… como ela… cheia de luz e de vida, pelo quarto adentro. E eu que nunca gostei muito de ficar ao sol, agora espero por este momento, só para ter um prazer tão simples…

É a hora do meu chá. Levando em conta que o almoço vem muito cedo, para o meu gosto, trazer-me o chazinho, às duas é, mesmo, uma dádiva, por vários motivos.

Ela entra, finalmente. Elegante e tranquila, apesar de um bocadinho atrasada. Sempre bem vestida. Adoro a forma como arranja os cabelos e como veste-se com aquele ’tailleur’, que lhe cai tão bem. A cintura bem marcada. Os ombros muito aprumados. 

Tudo nela é muito… 

Os lábios sempre tão vermelhos. A pele sempre tão pálida. Será que aquilo é maquiagem? As pernas sempre tão firmes sobre aqueles saltos altos e finos, a marcar o compasso com seu toc-toc intermitente. Imagino como seus pés devam sofrer dentro daqueles sapatos, tão finos, tão na moda. Um sacrifício, certamente, em nome da ‘finesse’.

Lembra a figura da minha tia, sempre empertigada, mantendo a aparência e uma vaidade quase sem limites…

- Bom dia, tio.

Adoro quando elas me cumprimentam assim, como os espanhóis o fazem, chamando-me de tio.

Considero que seja uma forma carinhosa, pelo sorriso tão espontâneo. Eu retribuo o sorriso. É o melhor que posso fazer. Ela respeita minha vontade. Não afasta o gato que dorme tranquilo aos meus pés. Sabe que eu gosto de tê-lo por perto… assim como à ela... e à outra. Enquanto eu tiver a atenção delas e a presença dele, sinto-me vivo.

Ela lê meu olhar. Sabe o que há dentro da minha mente. Sabe que eu entretenho-me a olhá-las, já que não há mais muito que eu possa fazer.

Gosto de observar as duas, em movimento contínuo no quarto, a dizer gracejos, a sorrir, como duas andorinhas a fazer meu último verão…

Será que dariam a mesma atenção, se as circunstâncias fossem diferentes?

Imagino que sintam certa pena de mim… da minha condição…

Eu odeio este maldito câncer! Odeio esta doença que, agora, prende-me à esta cama… meu último leito… antes do inevitável…

Embora odeie, também, que sintam pena de mim, do jeito que as coisas estão, não posso condená-las. Não hoje. Não agora. Não mais…

Hoje eu só quero olhar estas duas belas andorinhas a voarem dentro do meu quarto e fazerem a minha última alegria, antes que todas as luzes apaguem de vez…

Amanhã, às duas, as duas - a loira enfermeira, em seu impecável uniforme branco e a bem vestida psicóloga morena, em seu justo ’tailleur’ azul-marinho - já não mais terão que vir cá…


domingo, 26 de junho de 2016

Acerca de Ana Maria (Parte 2 de 2)


A porta, a bater com mais força que o habitual, deixou meus sentidos em estado de alerta, mas não consegui ouvir mais que os sons tranquilizantes e impessoais do vento e do mar. Estava do lado de fora, a trabalhar na pequena horta que cultivava na parte de trás da casa e não era possível filtrar muito do que se passava lá dentro.

O som do motor do carro foi desaparecendo na distância e sendo sobreposto pelo monocórdio e lânguido marulhar das ondas naquele ir e vir contra as areias da praia. Esperei um pouco e, depois de um tempo, mais ou menos calculado, para não parecer óbvio, entrei.

Ele estava de pé, junto à janela, a olhar para fora e não virou quando eu me aproximei, como seria de esperar.

- Aconteceu alguma coisa?

- Nada importante.

Eu tinha certeza que aquela afirmação não estava nada perto da verdade, mas respeitei a reticência da resposta e deixei-a passar como se não tivesse importância.

- OK. Preciso ir ao mercado. Vens comigo?

Na verdade, eu não precisava de nada que não pudesse esperar, mas queria ter certeza de que estava tudo bem. Como não queria voltar a perguntar diretamente, fingi não dar mais relevância ao caso que merecia, para não parecer invasivo.

- Não. Preciso fazer umas coisas. Mas se lembrares, compra laranjas, que já não temos nenhuma.

- Vou lembrar, claro.

A voz parecia muito baixa e grave. Eu percebi que não me olhou, quando o telefone tocou e ele atendeu. Apressou-se a ir para a varanda, falar com privacidade, o que não surpreendeu-me de todo, mas sentia que alguma coisa havia mudado.

Será que ele não confiava mais em mim, ou estava, tão-somente, a tentar resolver o problema sozinho?

Ainda avistei-o a andar de um lado para o outro, com o telefone ao ouvido e a gesticular nervosamente. Decidi sair e deixá-lo na casa, enquanto ia ao supermercado da aldeia, que ficava a menos de dez minutos dali, de carro. Ambos precisávamos de tempo.

Quando voltei, ele estava a caminhar na praia, com os pés na água, como se a brincar com as ondas, como fazia quando era criança e sempre que precisava pensar. Já era além do fim da tarde e eu decidi que deveria tratar de arranjar algo para jantarmos.

O que nós dois tínhamos em comum, além de muitas outras coisas, era a tendência a ficar sós quando queríamos pensar em algo sério e tomar decisões. Se precisasse conversar, ele sabia que eu estava à mão…

Quando finalmente entrou, eu estava a arranjar a mesa, para jantarmos. Ele parecia drenado de tanto pensar. Não perguntei nada, apenas esperei que falasse, enquanto eu me ocupava com os talheres, os pratos e, também, com as panelas.

- Ela ganhou uma bolsa para estudar… na América… A bolsa é patrocinada por uma grande empresa e há grandes possibilidades de que lhe deem um emprego quando os estudos acabarem.

- É uma oportunidade enorme e incomum…

- É, sim. Mas não é isso que me incomoda.

- Então?…

- Ela disse que precisava de um tempo para concentrar-se nos estudos e carreira. Eu apoio totalmente esta decisão, mas não queria que isto pusesse um fim ao que nós temos. Nenhum argumento foi forte suficiente para convencê-la a mantermos o relacionamento, apesar da distância, entretanto. Isso não é certo, pai.

- Ela tem o direito de optar. É a vida e a carreira dela. Mas hoje em dia, com a tecnologia que temos à mão, é tão mais fácil conversarem e manterem os contactos, mesmo à longa distância…

- Eu sei, pai. E as passagens não são tão inacessíveis assim…

- Pois não. Sempre arranja-se uma promoção ou outra… Vocês brigaram?

- Discutimos por divergir as opiniões em relação a ficarmos em contacto ou não. Ela disse que íamos manter contacto, sempre que lhe fosse possível, mas pediu tempo e espaço e que eu respeitasse a decisão dela…

- É justo.

- Não é. Não é nada justo.

- Dê tempo ao tempo… e à ela… ou nunca terás perdão… As mulheres não gostam que as decisões delas sejam questionadas…

- E se levar tempo demais?

- Vais ter que aceitar e aprender a viver com isso…

Ele soltou um suspiro de impotência… ou desespero. No fundo, sabia o fim que aquela história ia ter, mas negava-se a aceitar o óbvio.

***

Eu fiquei apreensivo com a decisão que ele tomara. Eu jamais faria o mesmo, mesmo porque eu sou teimoso demais para ir contra um “dá-me espaço” daqueles, como ela pediu…

Como os contactos entre eles haviam ficado cada vez mais espaçados, ele resolveu que deveria ir vê-la, na América e fazer-lhe uma surpresa. Achava que quando se vissem, tudo voltaria ao normal.

A falta de notícias desde que viajara, deixava-me com um mau pressentimento…

***

- Oh! Meu Deus!

- Eu tentei avisar-te, mas sabia que não ias ouvir-me… Nem sempre o coração ouve a voz da razão… Nós somos muito parecidos mesmo!

- Pai, eu perdi a cabeça! Isso nunca me aconteceu!

Eu olhei para a expressão de desespero, tão claramente estampada na sua face e esperei. Não havia nada que eu pudesse dizer ou fazer.

- O que faço agora?

- Não fazes nada… já fizeste…

Ele baixou a cabeça e pareceu-me que estava enterrando-se num buraco sem fundo…

Aquela angústia cortava-me a alma, mas ele tinha que bater no fundo, sozinho, para poder levantar-se. Não há nada pior que a decepção, para acabar com nossos sonhos e fazer-nos enxergar a vida com olhos menos míopes e lentes mais grotescamente verdadeiras. A crua realidade é, muitas vezes, mais dura que achamos ter forças para suportar. Viver, enfrentar e conviver com nossos erros é, também, um ato de coragem, sem precedentes. Às vezes, as forças esvaem-se, a vontade de viver vai-se junto, mas é preciso ser muito bravo, para levantar-se.

Ele estava a aprender, da pior maneira e muito cedo, para o meu gosto, a ser um adulto…

Eu não aprovei a decisão dele antes e não apoiava o que ele fez, então.

Fiquei ali, parado, a acompanhá-lo com os olhos, enquanto ele saía pela porta de trás e ia na direção da praia. Sabia que ele precisava daquele momento de solidão… ou muitos momentos daqueles… Seu caminhar parecia o de um velho, de tão pesado e arrastado…

Duas lágrimas desceram, quentes, dos meus olhos, pela face abaixo. Sentia que ele precisava de mim e queria estar lá para ele, mas não podia invadir seu martírio interior, sem que ele me desse permissão para fazê-lo. Por mais que eu quisesse protegê-lo, naquela hora, não seria capaz, sequer, de aliviar uma minúscula gota de sua angústia. Resisti e não fui atrás dele…

De longe, enquanto seguia a silhueta conhecida, a caminhar solitária, na beira do mar, imaginava o tumulto que devia ter criado, quando perdeu a cabeça e a razão e partiu para cima do rapaz que estava com Ana Maria, em atitudes muito mais íntimas que poder-se-ia esperar de um simples amigo.

Ele podia ter agido de maneira mais nobre, mas um coração partido não quer saber de nobreza ou raciocínio lógico. Se não fosse a moça a chamar-lhe à razão e expulsá-lo da esplanada onde estava com o tal “amigo”, ele teria sido preso por assédio e violência… ainda mais na América! 

Foi mesmo irresponsável! 

Mesmo para um rapaz tão centrado como ele sempre havia sido, sentir-se traído, fê-lo perder, completamente, a estribeira... não que ele não tivesse certa dose de razão...

***

- Pai?

- Ahn?

- É sempre assim?

- Assim como, meu filho?

- Dolorido. Dói sempre assim?

- Só quando a gente ama… ou amou… muito… Só quando há muito amor… ou então muita mágoa… é que dói tanto assim…

- Não é muito justo.

- Nunca é!

Ele sentou-se no degrau da varanda, cobriu o rosto com as duas mãos e chorou como uma criança.

Para mim, na verdade, ele ainda era uma criança… a minha criança, aprendendo a viver com as injustas agruras da vida. Por mais que eu tentasse consolá-lo, não iria conseguir minimizar o que ele experimentava naquele momento.

Infelizmente, quando é assim, a dor tem que ser sentida.

Ele nunca mais ia ser o mesmo. Aquela agonia ia, invariavelmente, passar, com o tempo, com outro amor, com outras visões do mundo, mas ia deixar suas cicatrizes, profunda e indelevelmente tatuadas na memória dele. Era como um batismo de fogo e aflição a marcar-lhe, para sempre, mas, também, a amadurecer-lhe os sentimentos e a ensinar-lhe a encarar a vida sob vários ângulos diferentes.

Eu daria minha alma para que ele nunca tivesse que sofrer, mas não tinha qualquer poder sobre aquilo, por isso apenas sentei-me ao seu lado, passei o braço por sobre seu ombro e puxei-o para perto de mim.

Ele não ofereceu resistência, nem mostrou-se envergonhado ao abrir sua fragilidade diante do pai, chorando daquele jeito.

Abraçado a ele, não me contive e chorei também…


***

sábado, 18 de junho de 2016

Acerca de Ana Maria (Parte 1 de 2)


- Ana Maria?

- É.

- É um bonito nome. Como ela é?

- Tem olhos esverdeados e cabelos castanho-claros, que lhe caem como uma cascata pelas costas. É tão cheia de vida, que me faz sentir que eu posso tudo, quando estou com ela.

- E podes… se quiseres…

- Só de pensar nela, eu me sinto tão bem… Ela é música e dança ao mesmo tempo.

- Estás mesmo apaixonado!

- Acho que sim. Eu penso nela o dia inteiro… o tempo todo…

- Estás irremediavelmente infectado. Não há vacina contra isso e a cura é difícil…

Ele riu. Eu também.

Era bom ver que havia crescido, tornando-se um homem responsável e bom e, agora, apaixonado pela menina Ana Maria. Só agora dei-me conta que o tempo passou tão rápido, que eu mal percebi. Há tão pouco tempo era apenas um menino a brincar com blocos de legos e bonecos de super-heróis com poderes sobre-humanos e a fazer-me perguntas sobre tudo. Agora, devo admitir, já é um ‘homem feito’, como dizia meu pai.

A imagem que me vinha à cabeça, quando o ouvia falar daquela forma, sobre o objeto de sua afeição, era de um passarinho que aprendera a voar e agora já podia abandonar o ninho e fazer seus voos solo.

Era engraçado, mas assustador, ao mesmo tempo.

Quando nasceu, confesso que senti uma emoção que não conseguia descrever. Parecia tão frágil e tão desprotegido, que comoveu-me completamente. Eu só queria ser o melhor provedor e o melhor exemplo para ele. Queria que ele sentisse orgulho de mim, num futuro, para o qual eu nem sabia como prepará-lo para enfrentar. Ao mesmo tempo, senti um amor tão grande, que minha vida deixou de ter importância, a não ser por ele. Quanta coisa eu poderia ensiná-lo e quanta coisa eu iria aprender com ele, no decorrer da sua história… da nossa história.

Tive um lampejo e uma dúvida que nunca ia conseguir responder: será que eu estava preparado?

Não estava. Sabia que não estava. O simples facto de olhar para ele, enquanto brincava, dormia, sorria ou chorava, já me enchia de emoções, que eu nunca iria saber como explicar. Com o tempo, deixei de tentar entender aquelas emoções… contentei-me com senti-las e deixá-las encher meu coração até transbordar…

Eu sabia que a vida não ia ser justa, às vezes, nem as pessoas, mas eu queria que ele tivesse, sempre, a oportunidade e o discernimento para tomar suas próprias decisões e que ele nunca tivesse motivos para arrependimento.

É claro que, por mais que desejasse, jamais iria conseguir protegê-lo de tudo. Ele ia ter que enfrentar muita coisa sozinho e eu devia prepará-lo, da melhor forma possível, mas não era um super-herói, nem um deus todo-poderoso... Era somente seu pai. Quando pensava naquilo, sentia-me tão pequeno e impotente, que doía-me a alma e meus olhos enchiam-se de lágrimas.

Ele cresceu saudável e deu-me muito poucos motivos para preocupações. Não foi o tipo de filho que eu fui. Não era rebelde, nem revoltado. Era uma criança tranquila e centrada, um menino sempre curioso e estudioso, perguntador e interessado em quase tudo que lhe passava à frente de seus olhos. Era, ao mesmo tempo, tímido e aventureiro, mas nunca demonstrava medos.  Assim como eu, ele adorava os animais e respeitava-os, como parte de nossas vidas. Passava tempos a observar o comportamento dos nossos gatos, de modo a compreender suas formas de comunicar suas necessidades e suas demonstrações de afeto. Era um rapaz muito perspicaz e atencioso e tinha um coração enorme, compassivo e muito generoso.

A tal menina Ana Maria tinha muita sorte e, se soubesse estimulá-lo a mostrar, sempre, o melhor lado dele, tinha tudo para ser muito feliz.

***
- Pai, essa é a Ana Maria.

Eu olhei para aquela criaturinha de pé, à minha frente, ao lado do meu filho tão cheio de si e visivelmente apaixonado e apreensivo. Via-se ambas as emoções contraditórias estampadas em sua face e olhos. Ele era tão transparente quanto eu.

A menina tinha olhos grandes, de uma tonalidade interessante de verde e longos cabelos a cair-lhe em cachos pelas costas. Bem como ele havia descrito e, talvez, muito mais agradável aos olhos que eu houvera imaginado, não sei por que motivo. Talvez por puro instinto de proteção à minha cria, havia avaliado mal a descrição que ele fizera da moça.

Era fácil ver a razão pela qual ele estava apaixonado. Além da beleza natural, ela emanava uma tranquilidade enorme. Senti uma ponta de ciúmes, mas também um alívio, ao perceber que os dois davam-se bem e, pelo jeito, estavam felizes.

Ao olhar para eles, assim, tão jovens e tão bem, eu não pude impedir de pensar em mim também e no meu futuro. Ainda tinha muita vida pela frente e tinha muitos planos e projetos, mas não contava com sua partida, ainda. Embora não fosse o que eles tivessem sequer mencionado, meu instinto de pai já fazia os filmes todos na minha cabeça. Já via-me a viver sozinho, com dois gatos a correr de um lado para o outro e um estúdio cheio de pinturas espalhadas por todo canto.

Será que me dariam netos, logo? Será que eu seria um bom avô? Eu tinha tanto receio de não corresponder às suas expectativas…

Alguns anos depois, eu, provavelmente, lembraria sorrindo dos dias em que temia o futuro deles e avaliaria que havia sido tão tolo quanto ingénuo. Assim como nós sobrevivemos, nossos filhos e netos também sobreviverão aos reveses que colocam-se em nossos caminhos. A vida é uma grande e eficiente mestra. Só nos dá aquilo que sabe que teremos força para suportar. Apesar de todos os receios, também não podia negar que as alegrias que eu recebera compensaram todas as noites em claro e os dias de vigília. Eu podia considerar-me um verdadeiro afortunado.

***

Respirar o ar da noite e o cheiro do mar era uma coisa que fazia-me bem, desde que eu era uma criança. Ficar um tempo sozinho a olhar o mar, mesmo sem ver direito o que se passava na escuridão à minha frente, ajudava-me a pensar e manter a sanidade. Era minha rotina, pouco antes de deitar... um tempo todo meu, para recarregar as baterias e centrar meus pensamentos e rever os acontecimentos do dia.

- Eu amo o mar. Dá-me uma tranquilidade tão grande!

- Eu também…

Eu virei-me e observei a moça que estava de pé na areia, com o olhar perdido em algum ponto muito longe, naquela imensidão escura e não tão silenciosa à nossa frente. A monotonia das ondas a baterem na praia era como um mantra hipnotizante e tranquilizador. Ela tinha razão e eu tinha que reconhecer. Aquela vasta massa de água a mover-se no seu incessante vai-e-vem, realmente, dava uma serenidade muito grande na gente…

Ao olhá-la, não sei por qual razão, imaginei-a como o próprio mar… mas desconfiava que havia mais mistério nela que podia-se ver a olho nu. O reflexo na superfície nunca mostra a profundidade do oceano, nem o que se esconde por baixo daquele manto de água em perpétuo movimento… 

- O que vocês estão fazendo aí, parados? Não me diga que tu também tens a mania de ficar na praia a olhar o mar, antes de ir deitar. Essa eu não sabia…

Ela riu. Eu também. Meu filho passou o braço pela cintura da moça e beijou-lhe a face. Ela recostou a cabeça no ombro dele e eu vi que era hora de deixar os dois a sós. Pedi licença, usando a desculpa de ser bastante tarde e estar cansado e deixei-os ali fora.

A casa ficava muito próxima à uma área da praia limitada por um agrupamento de rochas de cada lado e um pequeno caminho abria-se dos fundos do quintal até a areia fofa e branca, dando uma sensação de que aquele pedaço da praia era todo nosso.

Não demorou muito para os dois entrarem também, mas eu já havia-me retirado para o quarto e deitado, embora não tivesse conseguido adormecer imediatamente. Fiquei a olhar o teto, por uns tempos, ainda, com uma sensação estranha a inquietar-me a mente. Por alguma razão que eu não conseguia explicar, ficara com a impressão que havia alguma coisa nela que eu deveria conhecer melhor, mas não conseguia descobrir o que poderia ser…

O cansaço venceu-me, finalmente, depois de muito tempo, sem consolar-me o espírito…

***

- Tu estás vestido como ele, mas não és ele…

O grande animal não retrucou, mas tentou sorrir. Apesar de perceber que eu não era enganado facilmente, virou-se e continuou a caminhar nas duas pernas traseiras, como um humano, sem dar importância ao que eu havia falado. Era mais ou menos da minha altura e bem mais gordo que eu. Segui-o de perto, da praia até a porta da casa, observando como teve cuidado em parecer-se com Ginger, o gato, incluindo a cauda, que arrastava pelo chão coberto de velhos tijolos, dispostos em um mosaico simples, mas harmonioso. O pelo parecia haver sido costurado, muito justo, à volta do corpo, de modo a não parecer falso, mas eu sabia que não era natural, porque não havia brilho, nem vida, como numa cobertura original.

Quando chegou ao topo do lance de três estreitos degraus, ele virou-se, olhou-me e sorriu. Era um sorriso estranho, meio malicioso, que me intrigou, por parecer esconder uma má intenção ou algo que eu não sabia o que era, mas que não me deixava confortável.

Ele empurrou a porta e entrou.

Eu arregalei os olhos… e acordei…


- Sabia que havia alguma coisa errada!

***

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Dragões


"O dragão vermelho veio do sul, onde o sol amorna as tardes e as folhas todas, ainda tão rubras e escarlates, lutam por manter-se presas aos ramos das árvores; onde a natureza ainda acorrenta o Outono, como se tentasse manter o cinzento Inverno à distância, como se fosse, de alguma forma, possível. "*

"O dragão castanho veio do oeste, onde o mar apaga os rastos dos homens serenos e das ruidosas gaivotas e carrega mensagens quase anônimas em garrafas de vidro, para quebrá-las, sem atingir seus destinos, contra as rochas e os recifes, como se quisesse manter os náufragos da vida, amigos e amantes, separados para sempre ". *

O saguão do aeroporto estava cheio de transeuntes, empurrando os mais diferentes tipos de malas rodadas e carrinhos de bagagens. Eu cruzei, lentamente, a grande porta de correr, mas com os meus olhos procurando cuidadosamente por um rosto conhecido. Ele estava de pé, ereto e elegante, mais alto que maioria das pessoas que ali se enfileiravam, a esperar por seus amigos, clientes, parentes ou colegas... Eu sorri e caminhei a passos firmes, em sua direção. Ele devolveu-me um sorriso cortês e espontâneo.

Eu pensei, cá, com meus botões: 'que homem bonito'...

Quando me aproximei, ele simplesmente apertou minha mão, olhando seriamente para o meu rosto e corando ligeiramente. Dei um passo adiante e abracei-o, como fazem os amigos que não se vêem há muito e sussurrei-lhe ao seu ouvido.

- ‘Have I told you lately that I love you?' **

- Não, não disse... não que eu lembre...
- Acabei de dizer.

Ele sorriu timidamente. Naquele momento, todos os meus problemas, as inseguranças e todos aqueles medos que eu vinha sentindo em minha cabeça, durante a viagem para encontrar-me com um homem praticamente desconhecido, desapareceram completamente. Eles simplesmente esvaneceram no ar, com a doçura espontânea daquele primeiro contato.

- Vamos sair daqui... rápido!

***
- Tu sabes que eu nunca...

- Shhh... Não digas nada. Basta fechar os olhos, por agora.

Ele obedeceu. Seus músculos estavam tensos sob sua pálida pele. Eu sabia que ele estava pronto, mas não muito confortável, então eu beijei, muito levemente, sua cabeça, sua testa e suas pálpebras.

Ele simulou um sorriso, ainda meio sem graça, mas não refutou, não lutou contra e nem disse nada, que pudesse comprometer a magia estranha daquele momento especial.

Eu, então, beijei seu rosto e rocei, muito suavemente, meus lábios nos dele. Ele esperou. Olhei para suas belas feições e beijei-lhe novamente os lábios, muito de leve, quase sem tocar, mas deixando-o sentir que eu estava lá, muito mais presente que jamais estivera. Ele respirou fundo e fingiu beijar-me de volta. Tomei a dianteira e avancei, desta vez com mais entusiasmo e senti que ele abriu a boca um pouco, para que eu pudesse sentir seu sabor. Seu beijo, um tanto inseguro no começo, logo encheu-se de desejo e luxúria. Seus braços envolviam-me com firmeza, mas também com doce e afetuosa paixão.

Ele olhou-me nos olhos, como se estivesse-me vendo pela primeira vez. Talvez tenha sido, mesmo, a primeira vez que ele me via assim, tão perto de si e com tamanha abertura.

Estávamos em pé, no centro da sala. Nossos braços entrelaçavam-se à volta de nossos corpos inquietos, em exploração mútua. Ele tocou meu rosto e eu movi minha cabeça para o lado e beijei seus longos e pálidos dedos. Ele segurou minha mão nas suas e fez o mesmo. Aquele gesto despretensioso e tão simples era, ao mesmo tempo, tão íntimo e tão intenso, que acabou acendendo um súbito fogo dentro de nós. Ele resmungou o que pareceu-me algo como 'eu te amo', segurando-me em seus braços, firmemente. Então, beijou-me com tal impetuosidade, que eu senti todo o seu corpo estremecer. Ele estava ávido e eu também. Nossas bocas colaram-se. Eu simplesmente segurei seu corpo contra o meu, sentindo-o reagir de uma maneira que eu já não podia controlar... não que eu quisesse ou fosse tentar...

- Deixa-me olhar para ti.

Sua face estava corada. Seus olhos mais azuis. Eu desabotoei-lhe o colarinho da camisa, com dedos inquietos e nervosos e segui fazendo o mesmo com os outros botões, um após o outro, parando, cada vez que abria o próximo. Tentava, mas era quase impossível desviar meus olhos da densa camada de pelos ruivos, harmoniosamente distribuída em seu largo peito, sobre a pele sardenta e quase pálida demais.

Incrível como a primeira vez que se está com uma pessoa pode ser uma maravilhosa viagem de exploração e descoberta, mesmo para alguém que já tenha experimentado aquilo antes. Aquele homem tinha o corpo forte e incrivelmente atraente.

Comecei a abrir meus próprios botões, mas ele segurou minhas mãos e pôs-se a fazer o mesmo que eu havia acabado de fazer com ele, roçando os lábios em meu pescoço, muito levemente. Com os dedos tépidos, empurrou o tecido que ainda me cobria os ombros, fazendo-o deslizar e cair no chão. Senti calafrios pelo corpo todo e ele, aproveitando-se da situação, roçou a barba já um tanto crescida, por cada centímetro da minha pele arrepiada, numa carícia estranha e, ao mesmo tempo, bem-vinda. Segurei-lhe a cabeça entre as minhas mãos e beijei-lhe, mais uma vez, mas ele desvencilhou-se, com delicada firmeza e seguiu, a descer pelo meu peito e mamilos, barriga e umbigo, com seus lábios mornos e atrevidos, abrindo caminho pelo meu corpo, já totalmente desejoso dele. Ele parou ali mesmo abaixo do meu umbigo e beijou levemente o trilho de finos pelos que crescia para baixo e escondia-se, discretamente, para dentro do cós dos meus melhores ‘blue jeans’. Suas mãos quentes abriram caminho entre minhas roupas e minha pele, já totalmente incendiada pelas chamas daquela paixão.

Ele parava vez ou outra para beijar minha boca, enquanto cingia-me num abraço apertado. Depois, correu as pontas dos dedos pelas minhas costas e puxou-me para mais perto dele ainda.

Eu senti o fogo do dragão a queimar-me, com desejo docemente sensual e, em seguida, ouvi-o sussurrar.

- Eu sei que tu és a única pessoa que pode desvendar o segredo. Tua experiência, teu cuidado e teu amor são as coisas que eu sempre procurei e o fato de virem em forma do pacote mais sexy que eu poderia desejar, torna tudo ainda mais emocionante e gratificante.

- Teus olhos são muito gentis e vêem-me melhor do que eu realmente sou. Tu és tão especial, que eu sinto que eu sou um pouco especial também.

- E tu és. Agora, guia-me nesta doce aventura...


- Com certeza. Apenas deixa-te ser amado...

Minhas mãos mornas acariciaram seu belo e robusto corpo. Eu não cansava de beijar o pescoço, ombros e costas e todo o resto daquele homem, com total atenção e luxúria.

Ele fechou os olhos, saboreando o momento e as carícias, cheio de genuíno deleite. Eu só queria estar com ele, para satisfazer seus anseios mais profundos e para agradá-lo o melhor que pudesse. Eu sabia que aquele momento já estava sendo muito bom para nós dois, mas eu queria que ele se sentisse contente e satisfeito e só desejava que fosse, de alguma forma, memorável...
***

- Fazer amor contigo foi a experiência mais incrível que eu poderia sonhar, mas sabes o que eu acho que fantasiava mais, antes deste encontro?


- Diga…

- Eu acho que ansiava por este momento especial, depois que tudo está terminado, quando nossos corpos estão cansados e consumidos, quando podemos simplesmente deitar nus e abraçados, não precisando falar, mas sabendo que estamos juntos como amantes... Ser capaz de dormir contigo, poder olhar-te, abraçar-te e proteger-te. Ter meus braços em torno de ti, sentir o perfume suave do teu pescoço e cabelos e acariciar a tua pele nua...Desejar fazer mais amor, mas apenas, por agora, desfrutar da paz e tranquilidade de ter-te no meu abraço protetor...

Estávamos nos olhando e ele abriu o sorriso mais encantador que conseguiu e puxou-me para junto dele, aninhando o meu corpo entre seus braços e peito, beijando minha testa, meu rosto e meus lábios. Eu deitei nele minha cabeça e, então, fechei os olhos, sentindo as asas do meu dragão escarlate a envolver-me completamente.

Aquele era o lugar onde eu sentia-me mais confortavelmente em casa...


***


- Como assim?

- NYC, meu amor. Vens comigo?

- Eu não sei o que dizer…

- Diga que sim, então...

Seus profundos olhos azuis encontraram os meus, pela milionésima vez. Seu rosto estava um pouco pálido e bastante sério, provavelmente de expectativa. Minha mente trabalhava em alta velocidade, tentando encontrar as palavras certas para lhe responder. Em vez disso, eu simplesmente perguntei-lhe.

- Isso é uma proposta?

- Não é de casamento, mas é, ainda, uma proposta...

Ele riu de mim, quando eu corei inesperadamente.

- Bem, pelo menos não estás de joelhos.

- Não por esse motivo, não...

- Não te atrevas! Acho que é melhor verificar melhor o meu passaporte, então...


***

- Isso é loucura, não é?


- Se for, então não há nenhuma cura ou saída, criatura que eu amo tanto... Mas esta loucura só é boa porque eu estou contigo...

Estávamos caminhando de mãos dadas à beira-mar, desfrutando a brisa amena do fim de tarde de verão. Eu sentia meu corpo tão cheio de vida e aquilo era, ao mesmo tempo, tão bom e tão libertador, que eu poderia levantar os pés do chão e voar. O simples toque das peles de nossas mãos já era suficiente para inflamar uma série de sensações incontroladas, algumas delas muito perceptíveis.

Ele olhou-me e disse, em voz baixa, enquanto segurava-me em um de seus mais ternos abraços, daqueles que eu tanto amava:

- Tu nunca terás de sentir solidão ou tristeza, enquanto eu estiver vivo e por perto...

O dragão vermelho abriu suas largas asas, mergulhou no ar e voou para o céu.

O dragão castanho, ligeiramente menor que o outro, bateu suas asas quase douradas e seguiu o ruivo amante, de muito perto. Seus olhos estavam húmidos, com lágrimas de puro contentamento e admiração.

Embora pudesse tentar, não conseguiria, jamais, nem realmente, esconder o carinho que sentia pelo seu rubro companheiro, que voava tão livre e tão feliz, a apontar o caminho à sua frente…
***

* (Originalmente de "A Efigie do Dragão", ligeiramente modificado para esta história)

** (Originalmente de Van Morrison "Have I told you lately that I love you?"

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Dragons



“The red dragon came from the south, where the sun warms up the afternoons and the still crimson and scarlet leaves struggle to remain attached to the trees branches; where nature still shackles autumn, as if trying to keep the grey winter away, as if it could ever be possible.” *

“The brown dragon came from the west, where the sea wipes out the traces of quiet men and noise seagulls and conveys anonymous messages in glass bottles to shatter them, without reaching their destinations, against the rocks and the reefs, as if to keep the castaways of life, friends and lovers, forever apart.” *


The airport hall was filled with passers-by, pushing the most different wheeled luggage and carts. I crossed the sliding door slowly, but with my eyes searching carefully for a known face. He was standing tall right behind the line of people waiting for their friends, clients, relatives or colleagues… I smiled and walked firmly to his direction. He smiled back.

I thought to myself: ‘how handsome’

When I reached him, he simply shook my hand, looking at my face and blushing slightly. I moved forward and hugged him like long-time-no-see friends do and whispered in his ear.

- ‘Have I told you lately that I love you?’ **

- No, you haven’t… not that I can remember now…

At that moment, all my troubles, the insecurities and all the fears I had in my head, during the trip to meet that man disappeared completely. They simply vanished in the air with the sweetness of the first contact.

-  Let’s leave… quick!

***

- You know I have never…

- Shhh… Don’t say anything. Just close your eyes for now.

He obeyed. His muscles were tense under his pale skin. I knew he was ready, but not really comfortable, so I kissed, very lightly, his head, his front and his eyes. 

He smiled. 

I kissed his face and rubbed my lips on his. He waited. I looked at his handsome features and kissed his lips with tender and soft care, almost not touching them, but letting him feel I was there. He took a deep breath and pretended to kiss me back. I took the lead and kissed him again, this time with more passion and I felt he opened his mouth a bit, so I could taste him. His kiss was soft and insecure in the beginning, but he soon gave in to desire and lust, holding me in his embrace and sweet loving passion. 

He opened his eyes and looked into mine, as if seeing me for the first time. Maybe it was the first time he saw me like that. 

We were standing in the centre of the room. Our bodies were touching, our arms around each other. He touched my face and I moved my head and kissed his long-fingered and pale hand. He held my hand in his and kissed it back. That unpretentious gesture was so simple and at the same time so intimate, it kind of ignite the fire inside us. He held me back in his arms, firmly and strongly. Then he kissed me with such a passion, I felt his whole body shake. He was hungry. So was I. Our mouths locked, our tongues interlocked. He mumbled what I though was something like ‘I love you’. I moaned and held his body against mine, feeling it react in a way I could not control… not that I would ever try to…

- Let me look at you.

His face was flushed. His eyes bluer. I unbuttoned his shirt collar, his other buttons one after the other, stopping once each one was released and looking at his amazing ginger furred chest, his lovely pink nipples and his pale skin. I caressed his torso with uneasy fingers. 

Amazing how the first time one is with another can be so enticing and such a marvellous journey of exploration and discovery, even for someone who had experienced that before. I took his shirt off and enjoyed the view of his bare torso. That big boy was incredibly handsome and strong. His body was a dream.

I started unbuttoning my shirt, but he held my hands and moved forward doing the same I’d just done with him, kissing my neck as soon as he pushed the fabric off over my shoulders and let the garment fall to the floor. I got goose bumps and quivered slightly. He kissed every inch of my skin, tasted and smelled the scent of my trembling body. I held his head in my two hands and kissed his scalp, while he went down my chest and nipples, stomach and navel, with his lips and tongue, opening his way onto my eager self. He stopped right there below my navel and lightly licked the path of fine hair growing downwards and hiding through the blue jeans around my waist. His warm hands reached down, unbuckling the belt and undoing my trousers. My skin was on fire. He caressed me and then kissed my mouth over and over again, holding me in his tight embrace. Our bodies were touching, our hands uneasy around each other. He moved his fingertips down my back and held me closer to him. 

I felt the dragon’s fire burning me with sweet lustful yearning and then I heard him whisper.

- I know you are the one who will unlock the secret. Your experience, your care, your love are all the things I've been seeking and the fact they all come in the form of the sexiest package I could wish for make it even more exciting and fulfilling.

- Your eyes are too kind. They see me better than I really am. You’re so special I feel I am somewhat special too.

- You are. Love me now, my sweet guide…


- Yes, my ginger furred lover. Just let yourself be loved…

My warm hands caressed his sturdy and beautiful body. I kissed his neck, shoulder and back and pushing him over to the large bed, kissed the rest of that man with utter attention and lust.

He closed his eyes, savouring the moment, while giving himself in to my touch and caresses, full of genuine desire. I just wanted to be with him, to fulfil his deeper desires and to please him the best I could. I knew it would be great for both of us, because we loved and respected one another very much, but I wanted him to be content and satisfied. I wanted it to be memorable…

***

- You know, making love with you was the most amazing experience I could ever dream of, but do you know what I think I fantasised most?

- Tell me…

- I think I longed for this special moment after we are finished, when both our bodies are spent, when we can just lie together naked and holding each other, not needing to speak, but just knowing we are together and we have our lover next to us, with us… to be able to have you sleep with me, to have you in front of me, so I can spoon you and protect you, my arms around you, to smell your neck and hair and to caress your naked skin… to look forward to more lovemaking but just, for now, to enjoy the peace and tranquillity of having you in my embrace…

We were looking at each other. He opened the most wonderful grin and pulled me towards him, nesting my body into his arms and kissing my front, then my face and my lips. I rested my arms around his body, my head on his ginger chest and then I closed my eyes, feeling I was surrounded by that red dragon’s sheltering wings. 

That was the place I felt I really belonged…

***

- What do you mean?

- NYC, my love. Will you come with me?

- I don’t know what to say…

- Say yes, then…

His deep blue eyes met mine. His face was paler and quite serious with expectation. I was appalled but my mind was working in high speed, trying to find the words to answer him. Instead, I asked.

- Is that a proposal?

- Not for marriage, sweetheart, but still a proposal…

He laughed at me, when I blushed unexpectedly.

- Well, at least you’re not kneeling.

- Not for that reason, no…

- Don’t you ever! I think I’d better check my passport then…


***

- Is this any kind of madness?

- If it is, then there is no cure or way out, my lover... But it is good being this mad as long as I am with you…

We were walking hand in hand along the seashore. I haven’t had felt so alive in quite a long time and that was so good and so liberating at the same time. The simple rubbing on the skins of our hands was enough to ignite a series of uncontrolled sensations, some of them very noticeable. 

He held me in his arms and said, softly, while holding me in an embrace:

- You will never have to be alone again, my dear lover, while I am alive and around...


The red dragon unfolded his broad wings, dove into the air and reached up the sky. 

The slightly smaller brown dragon flapped his almost golden wings and followed close. His eyes were moist. He tried but could not really hide the affection he had towards his ginger lover flying so free and so happy and leading the way. 

His tears, he knew, however, were of pure enjoyment…

***

* (Originally from "A Efígie do Dragão")
** (Originally from Van Morrison's "Have I told you lately that I love you?"