A mulher deitou uma carta abaixo
daquelas que estavam ao centro. A base da cruz estava formada. Esta
representava o fundamento da questão – o motivo real por trás da situação. A
mulher franziu o cenho e olhou o homem sentado à sua frente, que percebeu logo
a mudança em seu semblante. Ele não sabia o que a leitura revelava… mas a
mulher compreendeu de imediato. Uma carta bastante cruel, o Nove de Espadas predizia desolação,
fracasso, engano, malogro, desespero, medo, dúvida e vergonha. Ela pensou, por
uns momentos, antes de dizer:
- Muitas espadas… Uma vida com muitas decepções. Esta aflição
tem um sentimento de culpa muito pesado, não tem?
O homem, cujos olhos pareciam não
conseguir esconder alguma tristeza profunda, observou as veias e o desenho das
linhas de suas próprias mãos e deu um longo suspiro. A mulher perguntou-se
quanta dor poderia ter originado aquele comportamento defensivo…
- Eu não preciso de um irmão. Não foi para isso que eu casei… Nós somos
bons amigos, mas isto não me é suficiente.
O homem resmungou um ‘humm’ e ficou quieto, a olhar as bolhas na espuma
branca a reflectir padrões coloridos de difracção da luz que infiltrava-se pela
pequena janela acima de sua cabeça. Naquele momento tinha muitas dúvidas e
desconfianças, que pareciam aprofundar-se cada vez mais, com o passar do tempo.
Não queria fazer acusações injustas, nem deixar-se cair num jogo do qual
poderia arrepender-se, se falasse o que não devia, antes do tempo.
Aquela conversa não tinha nada de descomprometida. Apesar de estarem,
os dois, dentro de uma banheira num hotel em meio a uma estância de férias, a
intimidade que partilhavam no começo do casamento, havia desaparecido há muito,
quando ele, instintivamente – antes de confirmar, com seus próprios olhos -
percebera que havia algo errado na relação.
Como dizer, sem correr o risco de errar, que haviam muitos sinais
aparecendo, de que a situação entre eles já estava desgastada demais para ser
remendada e permitir-lhes dar a volta por cima? Quando há uma suspeita daquelas,
já não há volta atrás…
A mulher levantou-se quieta e, tomando a toalha, enrolou-a no corpo,
saiu do banheiro rusticamente decorado e foi para o aposento contíguo, no
confortável quarto do hotel, onde passavam um fim-de-semana prolongado, longe
da agitação do dia-a-dia na cidade. Quando o homem cruzou a porta que separava
os dois aposentos, ela já estava vestindo-se para o jantar. O assunto ficou em
suspenso para discussão, mais tarde, talvez, mas não caiu no esquecimento.
Poucas semanas após, um outro incidente dava-lhe a certeza que
precisava, para responder ao comentário feito na banheira do hotel.
À direita outra carta é colocada.
A Dama de Paus. Uma mulher astuta e subtil
– provavelmente a que o fizera passar por maus momentos. Naquela posição, representando
o passado recente, caracterizava uma situação que, apesar de muito importante, já perdera
sua validade, e, justamente por isso ele precisava abrir mão daquilo que a
carta representava, antes da integração efectiva dos novos aspectos de sua vida
futura.
Os
dois homens estavam sós, já ao final do jantar. O terceiro deles havia pedido
licença e saído para atender o telefone.
-
Recebeu ou não recebeu, afinal?
Os
olhos claros do rapaz inquiriam o outro, quase desesperadamente, mostrando até uma
certa agressividade, como se a implorar ao outro que acreditasse em suas palavras
e confirmasse a suspeita, que ele agora apresentava em evidências.
-
Sim. Recebeu. Mas flores podem ser qualquer coisa; de qualquer um… uma cortesia
de um cliente, por exemplo.
-
E tu acreditas nisso que estás a dizer-me, por acaso?
-
Não sei em que acreditar, para falar a verdade. Preciso investigar melhor.
-
Agora não posso dizer mais nada, mas eu já sei disso há tempos. Melhor
conversamos sobre esse assunto numa outra hora. Se eu fosse tu, entretanto, não
confiaria, nem nela, nem em certas amizades...
Seu
olhar desviou-se para o homem de cabelos escuros que vinha se aproximando, a
sorrir, com o telefone na mão.
-
Estão de cochicho, vocês dois?
Os
dois homens riram, sem se olhar e cederam lugar ao café que o rapaz que atendia
a mesa servia-lhes naquele momento.
Na
mente do homem de cabelos castanhos, porém, ele sabia que o outro estava certo
e que apenas confirmava uma das suas muitas desconfianças. E qual a intenção
por trás daquela certeza? Amizade, pura e simples, ou algo mais? Ele começava a
desconfiar de tudo e de todos…
À esquerda, completando o braço
horizontal da cruz, a mulher deitou a carta que representava o futuro próximo: um
Dois
de Ouros.
A parte principal da cruz celta
estava pronta e concluía-se de uma maneira não tão evidente à mulher, mas
completamente inteligível e transparente ao homem que a consultava, especialmente
após haver-lhe sido explicado o que a sexta carta significava.
Aquela anunciava
uma mudança harmónica, porém com ganhos e perdas alternados, assim como força e
fraqueza, alegria e tristeza. Podia significar ainda uma mudança de actividade,
uma viagem de visita a amigos. Também podia representar alguém que fosse diligente,
mas não confiável de todo.
Os
olhos do homem moveram-se para a esquerda, como se ele estivesse vendo o filme de
seus últimos anos a passar diante de suas pupilas, com uma precisão que ele nem
sabia que podia ter.
As
peças do quebra-cabeças começavam a encaixar-se, uma a uma, de maneira muito
mais evidente, agora que ele via a situação de fora. Sabia que os tempos que
estavam por vir não iriam ser fáceis, mas aquela carta dava-lhe um certo
alento.
Ele
ficou em silêncio, a recordar… e a pensar no que havia ouvido. Sentiu-se – e não
pela primeira vez - culpado por haver deixado a situação estender-se tanto e
por tanto tempo…
- Altos e baixos, disse ela. Eu já
estou habituado a muitos altos e baixos… para falar a verdade, demasiadamente acostumado.
Ele não estava devidamente
familiarizado, porém, com a cartomante ou suas cartas dispostas em forma de cruz
celta. A leitura ainda não estava terminada. Enquanto a primeira parte,
a cruz em si, mostrava a situação que o trouxera ali e tudo que a circundava, a
segunda parte, dava indicações para uma saída… ou assim era esperado que o fizesse.
A mulher começou, então, a abrir a
nova sequência de cartas, que eram dispostas ao lado direito da cruz já montada
e de baixo para cima.
Bem abaixo, no início da nova
fileira, veio a primeira, representando a personalidade do querente. Ele
conhecia aquela carta, de outros tempos: o Eremita.
Ele não tinha muitas dúvidas sobre a interpretação, mas a mulher pareceu
surpreender-se. Com aquela representação ele concordava mais. Havia-se fechado
em si mesmo, a procura de um caminho; de uma saída. Passou a confiar somente em
si mesmo.
O desenho na lâmina mostrava um homem
velho, vestido com uma túnica clara e um capuz a cobrir-lhe a cabeça, tendo na
mão direita uma lanterna, a iluminar o caminho que havia diante de si e, na mão
esquerda, um cajado. Ele olhava para baixo do alto de monte, onde estava de pé.
- Pelo menos há uma luz…
- Há. E há necessidade desta parada, para avaliar bem o que deve ser
feito, no futuro... e sem pressas.
O homem assentiu e voltou a ficar
em silêncio. Tempo… sempre o tempo…
Ela então tirou a próxima carta e
colocou-a acima da anterior. Desta vez, representava o caminho que envolve a
situação: os Amantes. Ele riu. Ela
não. Ele viu, então, que estava enganado em tentar interpretar a lâmina superficialmente
e tão somente pelo desenho mostrado.