sábado, 11 de janeiro de 2014

A Cruz Celta (Parte 2)


A mulher deitou uma carta abaixo daquelas que estavam ao centro. A base da cruz estava formada. Esta representava o fundamento da questão – o motivo real por trás da situação. A mulher franziu o cenho e olhou o homem sentado à sua frente, que percebeu logo a mudança em seu semblante. Ele não sabia o que a leitura revelava… mas a mulher compreendeu de imediato. Uma carta bastante cruel, o Nove de Espadas predizia desolação, fracasso, engano, malogro, desespero, medo, dúvida e vergonha. Ela pensou, por uns momentos, antes de dizer:

- Muitas espadas… Uma vida com muitas decepções. Esta aflição tem um sentimento de culpa muito pesado, não tem?

O homem, cujos olhos pareciam não conseguir esconder alguma tristeza profunda, observou as veias e o desenho das linhas de suas próprias mãos e deu um longo suspiro. A mulher perguntou-se quanta dor poderia ter originado aquele comportamento defensivo…


- Eu não preciso de um irmão. Não foi para isso que eu casei… Nós somos bons amigos, mas isto não me é suficiente.

O homem resmungou um ‘humm’ e ficou quieto, a olhar as bolhas na espuma branca a reflectir padrões coloridos de difracção da luz que infiltrava-se pela pequena janela acima de sua cabeça. Naquele momento tinha muitas dúvidas e desconfianças, que pareciam aprofundar-se cada vez mais, com o passar do tempo. Não queria fazer acusações injustas, nem deixar-se cair num jogo do qual poderia arrepender-se, se falasse o que não devia, antes do tempo.

Aquela conversa não tinha nada de descomprometida. Apesar de estarem, os dois, dentro de uma banheira num hotel em meio a uma estância de férias, a intimidade que partilhavam no começo do casamento, havia desaparecido há muito, quando ele, instintivamente – antes de confirmar, com seus próprios olhos - percebera que havia algo errado na relação.

Como dizer, sem correr o risco de errar, que haviam muitos sinais aparecendo, de que a situação entre eles já estava desgastada demais para ser remendada e permitir-lhes dar a volta por cima? Quando há uma suspeita daquelas, já não há volta atrás…

A mulher levantou-se quieta e, tomando a toalha, enrolou-a no corpo, saiu do banheiro rusticamente decorado e foi para o aposento contíguo, no confortável quarto do hotel, onde passavam um fim-de-semana prolongado, longe da agitação do dia-a-dia na cidade. Quando o homem cruzou a porta que separava os dois aposentos, ela já estava vestindo-se para o jantar. O assunto ficou em suspenso para discussão, mais tarde, talvez, mas não caiu no esquecimento.

Poucas semanas após, um outro incidente dava-lhe a certeza que precisava, para responder ao comentário feito na banheira do hotel.


À direita outra carta é colocada. A Dama de Paus. Uma mulher astuta e subtil – provavelmente a que o fizera passar por maus momentos. Naquela posição, representando o passado recente, caracterizava uma situação que, apesar de muito importante, já perdera sua validade, e, justamente por isso ele precisava abrir mão daquilo que a carta representava, antes da integração efectiva dos novos aspectos de sua vida futura.


Os dois homens estavam sós, já ao final do jantar. O terceiro deles havia pedido licença e saído para atender o telefone.

- Recebeu ou não recebeu, afinal?

Os olhos claros do rapaz inquiriam o outro, quase desesperadamente, mostrando até uma certa agressividade, como se a implorar ao outro que acreditasse em suas palavras e confirmasse a suspeita, que ele agora apresentava em evidências.

- Sim. Recebeu. Mas flores podem ser qualquer coisa; de qualquer um… uma cortesia de um cliente, por exemplo.

- E tu acreditas nisso que estás a dizer-me, por acaso?

- Não sei em que acreditar, para falar a verdade. Preciso investigar melhor.

- Agora não posso dizer mais nada, mas eu já sei disso há tempos. Melhor conversamos sobre esse assunto numa outra hora. Se eu fosse tu, entretanto, não confiaria, nem nela, nem em certas amizades...

Seu olhar desviou-se para o homem de cabelos escuros que vinha se aproximando, a sorrir, com o telefone na mão.

- Estão de cochicho, vocês dois?

Os dois homens riram, sem se olhar e cederam lugar ao café que o rapaz que atendia a mesa servia-lhes naquele momento.

Na mente do homem de cabelos castanhos, porém, ele sabia que o outro estava certo e que apenas confirmava uma das suas muitas desconfianças. E qual a intenção por trás daquela certeza? Amizade, pura e simples, ou algo mais? Ele começava a desconfiar de tudo e de todos…

À esquerda, completando o braço horizontal da cruz, a mulher deitou a carta que representava o futuro próximo: um Dois de Ouros.

A parte principal da cruz celta estava pronta e concluía-se de uma maneira não tão evidente à mulher, mas completamente inteligível e transparente ao homem que a consultava, especialmente após haver-lhe sido explicado o que a sexta carta significava.

Aquela anunciava uma mudança harmónica, porém com ganhos e perdas alternados, assim como força e fraqueza, alegria e tristeza. Podia significar ainda uma mudança de actividade, uma viagem de visita a amigos. Também podia representar alguém que fosse diligente, mas não confiável de todo.

Os olhos do homem moveram-se para a esquerda, como se ele estivesse vendo o filme de seus últimos anos a passar diante de suas pupilas, com uma precisão que ele nem sabia que podia ter.

As peças do quebra-cabeças começavam a encaixar-se, uma a uma, de maneira muito mais evidente, agora que ele via a situação de fora. Sabia que os tempos que estavam por vir não iriam ser fáceis, mas aquela carta dava-lhe um certo alento.

Ele ficou em silêncio, a recordar… e a pensar no que havia ouvido. Sentiu-se – e não pela primeira vez - culpado por haver deixado a situação estender-se tanto e por tanto tempo…

- Altos e baixos, disse ela. Eu já estou habituado a muitos altos e baixos… para falar a verdade, demasiadamente acostumado.

Ele não estava devidamente familiarizado, porém, com a cartomante ou suas cartas dispostas em forma de cruz celta. A leitura ainda não estava terminada. Enquanto a primeira parte, a cruz em si, mostrava a situação que o trouxera ali e tudo que a circundava, a segunda parte, dava indicações para uma saída… ou assim era esperado que o fizesse.

A mulher começou, então, a abrir a nova sequência de cartas, que eram dispostas ao lado direito da cruz já montada e de baixo para cima.

Bem abaixo, no início da nova fileira, veio a primeira, representando a personalidade do querente. Ele conhecia aquela carta, de outros tempos: o Eremita. Ele não tinha muitas dúvidas sobre a interpretação, mas a mulher pareceu surpreender-se. Com aquela representação ele concordava mais. Havia-se fechado em si mesmo, a procura de um caminho; de uma saída. Passou a confiar somente em si mesmo.

O desenho na lâmina mostrava um homem velho, vestido com uma túnica clara e um capuz a cobrir-lhe a cabeça, tendo na mão direita uma lanterna, a iluminar o caminho que havia diante de si e, na mão esquerda, um cajado. Ele olhava para baixo do alto de monte, onde estava de pé.

- Pelo menos há uma luz…

- Há. E há necessidade desta parada, para avaliar bem o que deve ser feito, no futuro... e sem pressas.

O homem assentiu e voltou a ficar em silêncio. Tempo… sempre o tempo…


Ela então tirou a próxima carta e colocou-a acima da anterior. Desta vez, representava o caminho que envolve a situação: os Amantes. Ele riu. Ela não. Ele viu, então, que estava enganado em tentar interpretar a lâmina superficialmente e tão somente pelo desenho mostrado.



1 comentário:

  1. Está aqui a segunda parte... faço alguns esclarecimentos, mas deixo o melhor e principal para o final... há mais por vir...

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