O ar frio da manhã nevoenta não me foi impedimento para sair à rua. Eu precisava espairecer, sentir o vento no rosto, estar fora de casa, por umas horitas, pelo menos. Talvez a temperatura baixa do Inverno fizesse minha mente trabalhar em outro ritmo e pensar mais racionalmente. Eu estava cheio de dúvidas e as desconfianças torturavam-me a cada passo que dava, nas calçadas ainda enregeladas pelo orvalho da madrugada. Caminhei por minutos incontáveis, sem rumo certo. Meus pés doíam menos que minha cabeça. Eu queria desaparecer por uns instantes, deixar de pensar, parar de martirizar meu coração, mas o desejo tinha força menor que as minhas dúvidas, que insistiam em complicar-me a vida.
- E se eu estivesse certo? E se eu estivesse errado? Oh, meu Deus! Eu
queria ter, pelo menos, alguma certeza e menos desconfiança…
Até aquele dia, nunca havia sido
injusto, nem sentido ciúmes infundados ou desejos de vingança. Naquela
caminhada, porém, todos estes sentimentos vieram povoar-me a cabeça, com a
força de fortes invasores em terras férteis, mas incultivadas. Sentia desejos
contraditórios de matar e morrer, a crescerem dentro de mim, com uma facilidade
incomum. Eram monstros alimentados pelo ódio e pelo medo… e eles
multiplicavam-se e cresciam, como uma colônia de parasitas dentro do meu cérebro.
Senti calor, apesar do frio da rua. Desabotoei o casaco e arranquei o cachecol
do pescoço. Devia estar febril. Precisava, urgentemente, de um café forte.
Tinha que parar. Entrei num Café, na esquina e sentei-me encostado a uma grande
janela, mas sem olhar para fora. Eu queria, pelo menos por um simples segundo, parar
de pensar. Queria sumir do mundo…
- Que m…!
- Bom dia. Algo errado, senhor?
O empregado de mesa olhava-me com
uma expressão de, ao mesmo tempo, curiosidade e preocupação. Provavelmente eu devo
ter falado em voz alta, mas não tinha certeza.
- Ahn… Bom dia… Não… Nada errado. Apenas traga-me um café forte e
quente, por favor.
Ele assentiu e saiu, com um
sorrisinho estranho no canto da boca. Dei-me conta que eu estava sendo ridículo
demais, não só pelo martírio mental a que me submetia, quanto por falar sozinho,
em voz alta. Tinha que assentar os pés no chão e pensar com clareza. Briguei
comigo mesmo e disse, baixinho, entre dentes, para não ser ouvido, daquela vez:
- Chega disso! Já tenho idade e experiência suficiente para agir como
um adulto! Já passei por isso outras vezes e não há motivo para mais dramas que
o estritamente desnecessário…
Tomei o café, levantei-me e saí.
Estava resolvido a enfrentar o ar gelado da rua e a fria realidade.
Ao chegar de volta ao
apartamento, vi que havia um bilhete depositado sobre a cômoda no pequeno hall de entrada. Li a mensagem
mecanicamente e fui tomar banho, sem pensar muito. Era sexta-feira e ainda
tinha um dia inteiro e mais o fim-de-semana, antes de voltar ao trabalho.
Pretendia fazer minhas coisas, escrever, nem que fosse um desabafo qualquer e
tentar desenhar e pintar. Sim. Havia decidido que pintar, pelo menos, não
exigiria muito da minha capacidade de raciocínio e poderia relaxar-me um pouco.
Resolvera deixar o acontecido em banho-maria, pelo menos até passar aquela
angústia.
Tomei um longo duche, de modo a
aquecer o corpo, depois ingeri um comprimido para dormir. Em pouco tempo estava
na cama, a tentar recuperar o sono que perdera. Dormi até perto do meio-dia.
Quando acordei, meu primeiro pensamento, como não podia deixar de ser, foi para
o acontecido nas últimas horas. Levantei-me de um salto e dirigi-me à cozinha,
preparar algo quente para comer. No caminho, apanhei o bilhete e levei-o
comigo, lendo e relendo, incontáveis vezes, enquanto tomava uma sopa
instantânea, que preparei em menos de oito minutos…
***
Dois dias depois do incidente
recebi o primeiro contacto, via internet. Eu ainda estava magoado e inseguro,
por isso não respondi com mais que uma fria educação, sem demonstrar muita afeição.
Ela deve ter percebido, mas não questionou-me nada. Não discutimos o assunto e somente
trocamos umas poucas palavras, polidas e politicamente corretas. Esperava que
os próximos dias fizessem melhor efeito sobre minha teimosia, mas estava cada
vez mais irritadiço e sem paciência para conversas, por isso, sempre respondia
com polidez, mas com pouquíssimas palavras. Nossos contactos esfriaram e
rarearam, com o passar dos dias. Ela havia-me dito que estava tão ocupada que
só viria dentro de quatro semanas, aproximadamente. Não protestei, nem
ofereci-me para visitá-la, entrementes. Apenas respondi-lhe com um seco ‘OK’.
No mesmo dia em que recebera
aquela notícia, também recebi, por e-mail, uma mensagem de uma sala de chat num site de relacionamentos. Era, aparentemente, um convite de um
conhecido meu. Não percebi que era uma mensagem automática e acedi ao site, fiz minha inscrição e resolvi
fazer uma visita a alguns perfis, que pareceram-me mais interessantes. Vi que os
perfis mais visitados eram os que tinham fotografias, por isso fiz o upload de uma foto minha e deixei-a lá,
para ver o efeito que causaria. Quando voltei a aceder o site, por curiosidade, poucas horas depois, havia uma mensagem na
caixa de entrada. Abri-a e não consegui deixar de dar uma sonora gargalhada. Era
minha primeira risada, em semanas…
***
- Eu não posso acreditar que tu pensaste isso de mim.
- E o que é que tu querias que eu pensasse, afinal?
- Eu achei que estavas sendo compreensivo e me dando espaço e tu me fazes isso? Tu sabias que eu estava
ocupada com o meu trabalho e que precisava de envolvimento total… É minha arte,
‘for heaven’s sake’… É minha vida!
Ela misturava as linguagens,
quando ficava nervosa e eu achava aquela característica simplesmente adorável. Olhei-a
mudo, sem saber o que dizer. Ela odiava quando eu silenciava no meio de uma
briga. Já tinha feito a minha quota de asneiras e não queria piorar o que já
estava ruim demais. Mas para ela, como mulher, o meu silêncio era uma afronta.
Mirei aqueles olhos antes tão
cheios de vida e serenidade, com um misto de culpa e de apreensão. O olhar
cristalino e de um verde que sempre havia sido tão tocante, pelo menos para
mim, agora só trazia uma tristeza imensa.
Senti uma consistente confusão
instalar-se confortavelmente dentro da minha cabeça e visualizei-a, vestida de
robe e calçando pantufas com formato de bichinho, sentada num sofá macio e
confortável, na minha sala de visitas, a assistir minha desgraça, de camarote.
Não havia muito a dizer, já que
era totalmente culpado de haver feito o filme completo na minha cabeça, de
achar que estava certo ao procurar outra forma de relacionar-me, de pensar que
estava sendo traído, de haver sido biltre e otário, ao mesmo tempo. Fui tolo ao
julgar, sem ter certeza; ao trair, por achar que estava sendo traído; a deixar-me
levar pela minha dúvida, sem questionar nada, sem ter certeza de nada. Eu havia-me
deixado levar pela grande e promíscua fatia de hedonismo e leviandade que
nasceu dentro de mim, no dia em que fui contactado pela personagem responsável
por despertar, em mim, uma tola vaidade. Pensava que estava sendo esperto em
fazer o que pensava que Liana fazia a mim, sem sentir culpa, nem pesar. Não era,
porém, por qualquer sentimento de vingança… era apenas por uma carência
afetiva, uma sensação de abandono, uma tristeza impotente, que só crescia com a
dúvida e a impressão de ter sido trocado por outro.
Oh, Deus… e como eu estava errado…
Ela desistiu de brigar, de
importar-se, de tentar fazer-me sentir mais culpado que eu já sentia. Foi-se
embora no mesmo dia que chegou, dizendo que voltava para buscar suas coisas num
outro dia, quando estivesse mais calma, mais centrada, menos decepcionada e com
menos raiva de mim.
***
Aquele olhar, cristalino e
distante, com uma distinta pincelada da verde e pálida tristeza, fitou-me pela
última vez, da janela embaçada do trem. Plantado, sozinho, a olhar o vagão
afastar-se, senti minha alma inundar-se com aquele sentimento de angústia e
impotência que nos assola, quando o dantes improvável transforma-se no absolutamente
possível; quando nos vemos por uma derradeira vez, numa despedida seca e quase
impessoal. É triste perceber como os sentimentos mudam tanto, diante de uma
grande mágoa.
Não sei porque, naquela ocasião, faltou-me
coragem, vontade de quebrar barreiras, de jogar tudo para o alto, ou se
simplesmente já não importava-me mais com o futuro daquela relação. Sei,
apenas, que aquela última conversa ficara gravada a ferro em brasa na minha
memória, por muito tempo, a latejar e a molestar-me.
- Eu tenho que ir sozinha. Será um partir para sempre, como morrer de
vez. O tempo vai curar as feridas. A distância vai facilitar a recuperação. Mas
eu, simplesmente, não consigo perdoar-te. Não tenho armas para lutar contra um
inimigo cujo poder ultrapassa os meus e cujas armas eu desconheço totalmente. Essa
impotência ressecou-me o coração e quebrou as correntes que nos mantinham
ligados um ao outro, de uma vez por todas. E eu não consigo viver com esta
aridez a incomodar-me o peito deste jeito.
Os olhos da minha tigresa, antes
tão cheios de vida e luz, mostravam, agora, uma baça melancolia, que era-me altamente
perturbante e enchia-me de uma culpa irremediável. Eu queria conseguir fazer
alguma coisa, mas um nó apertava-me a garganta, impedindo-me de falar. Se, antes,
dizer-lhe um simples ‘eu te amo’ era-me difícil, é de imaginar-se quão muito mais difícil era-me dizer-lhe, então, ‘perdoa-me’. Eu, simplesmente, não
conseguia. Minha mente até concluía o discurso, mas minha voz não saía de jeito
nenhum. Eu sabia que a havia magoado e também sabia que, mesmo que ela me
perdoasse, ia sempre sentir-se incomodada, desconfiada e em dúvida se eu não ia
fazê-la passar pela mesma situação vezes e vezes sem conta, dali por diante…
- Levas-me à estação… pela derradeira vez?
- Claro.
Engoli em seco. Meu coração
pesava. Minha vontade era dizer-lhe que não, que se virasse sozinha. Excomungar
até sua última geração, dizer-lhe uma série de palavrões, mas não podia. Como
podia amaldiçoar uma pessoa que havia sido ferida pela minha crueldade? Minha
alma estava dilacerada. Eu remoía indignação, frustração e culpa, mas já não
havia nada que eu pudesse fazer. Eu, no lugar dela, teria sido menos nobre,
tanto nas ações quanto nas palavras. Nunca havia percebido como éramos tão diferentes.
Ela era distinta, controlada e generosa. Eu era rasca, vulgar, impulsivo e
mesquinho.
Mas eu sentia raiva. Muita raiva.
Dela e, mais ainda, de mim. Eu havia sido descuidado e vítima da minha própria
ingenuidade, hedonismo e arrojo. Que grande burro havia sido! Diante de uma cena
de flagrante sexual com outra pessoa, onde as evidências são inquestionáveis, o que
é que eu poderia dizer?
Eu sabia que ela tinha que
recomeçar, sozinha, sua própria vida, longe de mim e eu não tinha o direito de
impedi-la. Ela estava ferida. Suas asas haviam crescido e seu voo já a havia afastado
de mim. Ela sentia-se no direito de voar alto e para longe e eu não queria
sentir-me mais culpado que já estava, se tentasse demovê-la da ideia. Ela
precisava de espaço e eu tinha a obrigação de dar-lhe, já que eu havia quebrado
muitos elos das correntes que nos uniam.
A tigresa pulava para o outro lado da cerca, para ser livre, outra vez...
A tigresa pulava para o outro lado da cerca, para ser livre, outra vez...
Olhei aqueles olhos por uma
última vez, com imensa melancolia. Minhas entranhas eram roídas por sentimentos
contraditórios, tanto de irritação, quanto de culpa. Ela partiu. Sozinha.
Triste. Eu fiquei ali, a olhar o vazio sobre os trilhos, depois que o trem
sumiu na curva, no meio da neblina de Outono. No mesmo vagão, partiu, para
sempre, não somente minha grande amiga – a bela e terna tigresa - mas também
minha confiança nos relacionamentos e no ser humano.
Na saída da estação, ainda a cruzar
a calçada, esbarrei num transeunte que trazia umas sacolas e que caíram ao chão,
com o impacto. Apressei-me, instintivamente, a desculpar-me e a ajuntar os
pacotes caídos na calçada, quase sem olhar para quem eu ajudava, por pura
vergonha. Foi somente quando entreguei-lhe os embrulhos, que notei aqueles
olhos muito claros e verdes a fitar-me com curiosidade e um certo ar de
gracejo.
Alguém lá em cima deve gostar muito de brincar comigo…