Quatro jovens tigres caminhavam, tranquilamente, ao meu redor e roçavam-se contra minhas pernas, como se fossem tão amistosos quanto dóceis gatos domésticos. Era como se estivessem a pedir-me algum carinho ou a marcar-me para reconhecimento, com suas glândulas de feromonas, espalhadas em pontos estratégicos de seus pujantes corpos. Eu sentia-me confortável e nem um pouco intimidado por qualquer um deles.
Um dos animais, uma belíssima fêmea com expressivos e cristalinos olhos,
de um tom muito luminoso de verde, levantou-se nas patas traseiras e abraçou-me
com afeição, numa atitude que eu realmente não esperava. Ela esfregou sua magnífica
cabeça contra meu rosto, depois chegou-a mais para frente e mordeu-me a orelha,
com cuidado. Alguém falou:
- Acho que ela gosta de ti. Este não é um comportamento comum.
Passei meus braços à volta do seu belo corpo, dando-lhe um abraço. Seu
pelo era macio e luzidio. Provavelmente não sabia a força que tinha e o poder
que dela emanava, quando deixou-se envolver por meu abraço. Não fiquei
exatamente surpreso quando ela sussurrou ao meu ouvido:
- Deixa-me ir para o outro lado da cerca, onde posso ter mais liberdade.
Por favor...
Ajudei-a a pular por sobre o cercado, dando-lhe impulso para ir-se,
apesar de desejar que ela ficasse comigo, por muito mais tempo. Sabia, porém,
que não tinha qualquer influência sobre seus desejos de independência. Mais
cedo ou mais tarde, ela teria que ir-se para além das fronteiras do meu domínio…
ou seria eternamente infeliz.
Senti um distinto aperto no peito, ao vê-la afastar-se. Ela olhou para
trás e balançou a cabeça, de maneira carinhosa, como se agradecesse o impulso
que eu dera, para que atingisse sua emancipação. Aqueles olhos, extremamente
magnéticos, porém, tocaram-me a alma, de uma maneira que eu não esperava. Um
sentimento estranho tomou conta de mim, numa mistura de melancolia com
nostalgia, ao ver minha tigresa partir. Os outros grandes felinos juntaram-se à
ela, do outro lado da cerca metálica, levando-a para longe de onde estávamos.
Uma lágrima escorreu-me pelo canto do olho e senti a inquietação em minha alma
aumentar e envolver-me, com muito mais força que minha tigresa abraçou-me o
corpo. Um soluço cresceu dentro de mim e eu fechei os olhos, tentando controlar
o pranto, mas já era tarde demais…
Acordei, chorando alto, no meio
da madrugada, sentindo uma angústia enorme a pesar sobre meu peito, que arfava,
descontrolado. A escuridão do quarto disfarçou a tristeza, mas não diminuiu a sensação
de imensa solidão e abandono que aquele sonho me trouxe. Chorei como criança,
sem conseguir conter os soluços e a dor que sentia, naquele momento, abraçado
ao meu próprio corpo, deitado na cama de casal, que pareceu-me imensa, deserta
e fria…
***
Liana tinha, em torno de si, uma suave
aura de felina feminilidade. Seus olhos verdes, extraordinariamente expressivos
e cristalinos, pareciam-me sempre inquietos, como se procurassem, em algum
lugar ou, talvez, em algum tempo, vestígios de uma inocência perdida. Ela sabia
ler-me como ninguém. E examinava-me com aqueles seus grandes olhos, despia-me a
alma, como se conseguisse penetrar nos meus pensamentos, fazendo-me enrubescer,
desajeitado, ante a sua singela majestade e a maneira como conseguia
compreender, sem perguntar, meus estados de humor e da alma.
Eu costumava perder-me,
completamente, a contemplar aquela sublime e meiga grandeza, por horas e horas
a fio, sem precisar dizer nada e, ainda assim, a sentir-me totalmente
compreendido e amado pela mulher que havia-me transformado no homem que eu passei
a ser. Perto dela, eu sentia-me completo e sereno. Pela primeira vez na minha
vida, a presença de uma pessoa, não violava minhas necessidades de ter meus
momentos de silêncio. Ela respeitava meu espaço e compreendia que eu
necessitava estar só, às vezes, para poder centrar-me, escrever, ou
simplesmente ouvir música e pintar, numa tentativa de ilustrar minhas histórias
amadoras: meus hobbies favoritos e que davam-me grande satisfação.
Ela aproveitava estes raros
momentos para isolar-se, também, e fazer o que já gostava fazer, antes de
conhecer-me. Liana era uma artista sensível e perfeccionista. Suas aquarelas
eram hiper-realistas e detalhadas. Para fazê-las com esmero, costumava passar
horas num dos quartos do apartamento onde morávamos, transformado em seu
pequeno estúdio... um oásis de beleza e tranquilidade, que eu raramente
invadia, a não ser quando convidado, por puro respeito ao espaço dela. Suas
peças estavam expostas em galerias de artistas novos e promissores e ela havia
sido convidada, mais que apenas algumas vezes, a viver num centro maior, onde teria
mais reconhecimento e oportunidades artísticas. Ela nunca dera nenhuma resposta
aos agentes, acerca dos tais convites. Dizia-se feliz onde estava, a produzir
sua arte, em seu próprio ritmo. Tinha receio que uma grande metrópole fosse
transformá-la em uma artista menos sensível, mais preocupada com a produção que
com a sensibilidade.
Eu
compreendia seus medos, mas incentivava a ideia de ela abrir suas asas imensas
por paragens mais desbravadas e por ares mais desafiadores. Ela tinha talento e
merecia voar alto, mas dizia-se despreparada.
Eu sabia que parte daquele receio
estava ligada ao nosso relacionamento. Eu tinha uma carreira, no lugar onde vivíamos
e não poderia acompanhá-la, pelo menos no início. Ela inventava muitas de suas
desculpas, dizendo-se feliz e satisfeita onde estava, mas eu a conhecia muito
bem, para convencer-me que seus receios estavam relacionados apenas à massificação de sua
arte.
Um dia, quando cheguei em casa,
depois do trabalho, percebi que ela estava bastante séria e pensativa. Havia recebido
uma proposta praticamente irrecusável, mas que não havia aceitado de imediato.
Ficara de pensar e dar a resposta em alguns dias. Claro que a proposta
implicava em uma grande mudança. Ela iria lecionar uma cadeira na faculdade de Belas
Artes, numa grande universidade, alguns dias, durante a semana e teria um
estúdio, para produzir seus próprios trabalhos artísticos e desenvolver uma
série de projetos, com outros novos artistas, para uma promissora galeria, em
Londres.
Ela estava entre vários estados,
bastante diversos. Se de um lado sentia uma euforia enorme, em relação ao
reconhecimento do seu talento e aos projetos que iria participar, por outro
lado, sentia-se totalmente insegura se ia corresponder às expectativas e, por um
outro lado ainda, estava triste, por
termos que nos afastar durante semanas.
Tentei fazê-la ver que uma
oportunidade destas não aparece mais que uma vez e que ela deveria aceitar. Era
a possibilidade de vencer e mostrar seu trabalho e eu não poderia, jamais,
deixar de incentivá-la a ir em frente. Prometi que nos veríamos semana sim,
semana não... um ou outro viajaria e conseguiríamos vencer os obstáculos que, já
sabíamos, iriam aparecer.
- O mundo é muito pequeno e as comunicações estão cada vez mais fáceis.
Estaremos sempre em contacto.
Eu disse-lhe a frase esperada,
tentando tranquilizá-la, mas meu peito acusava um desconforto, que traduzia o
medo que eu sentia, de que algo não corresse tão linearmente como eu assegurava.
Os primeiros meses foram difíceis
de suportar, mas fáceis de mantermos o contacto. Quando o estúdio começou a
exigir mais do seu tempo e dedicação, até mesmo nossas comunicações começaram a
rarear. Sabia que era natural que tal acontecesse, pois ela desabrochava,
naturalmente, dentro de seu genuíno meio de expressão. Ela estava cada vez
melhor, mais feliz, mais produtiva e mais ocupada que jamais estivera.
Eu, porém, sentia-me cada vez
mais desamparado. Apesar da necessidade de estar só ainda tomar parte do meu
tempo, não tê-la por perto corroía-me a alma. Pelo menos - tentava convencer-me
- tínhamos as férias de fim de ano para estarmos juntos. Eu ansiava por aquele
tempo junto dela e contava os dias que antecediam o período, já que nossos fins
de semana juntos praticamente haviam desaparecido. Escrevíamos quase
diariamente, deixávamos mensagens um ao outro, tentávamos sempre saber como iam
as coisas, o trabalho, a vida... mas o tempo é cruel...e a distância também...
Ficamos meses sem nos ver, a não ser pela internet, já que ela estava ocupada
demais com seu trabalho, incluindo nos fins de semana.
Quando nos encontramos, em Dezembro,
ela parecia diferente e distante. Algo havia mudado. Onde, antes havia uma
imensa vivacidade e alegria de viver, havia, agora, um quê de tristeza, um
intrigante mistério, uma distância quase inatingível. Ela disse que era somente
cansaço. Estava com excesso de coisas a fazer. O projeto ia muito bem e ela
precisava daquela chance de mostrar o trabalho do grupo e, mais
especificamente, o seu, em particular. A mais famosa galeria de artes em
Londres havia-lhe solicitado uma mostra individual e ela trabalhava em novas obras
com avidez. Sabia que aquela seria sua grande oportunidade. O reconhecimento de
sua individualidade artística era evidente e ela não podia deixar passar, sem
fazer seu melhor.
Fiquei feliz por ela. Disse-lhe
que aproveitasse, incentivei-lhe a ir adiante, mas disse-lhe também para cuidar
de sua saúde, pois estava bastante magra e abatida. Ela afirmou que mal tinha
tempo para alimentar-se, mas eu protestei. Ela prometeu cuidar-se. Aproveitamos
aqueles poucos dias de inverno, para ficarmos mais juntos. Tratei de
preparar-lhe meus melhores pratos, numa tentativa de dar um pouco de cor ao
rosto, que eu adorava, e de compensar a perda de peso, que havia-se tornado
evidente, no corpo que eu tanto desejei, desde que nos conhecemos. Ela contestou,
no começo, mas cedeu à minha insistência e em poucos dias parecia mais vivaz e
com as faces mais rosadas.
Uma noite, naqueles poucos dias
em que estávamos juntos, eu adormeci no sofá, enquanto ela trabalhava no
estúdio. Acordei, ao ouvir vozes. Ela estava ao telefone e parecia ter uma
discussão com alguém. Tive a impressão de ouvi-la dizer, num tom mais baixo:
- Já te disse para não ligar-me aqui...
Levantei-me e fui até o quarto,
mas assim que cheguei perto, ela desligou. Perguntei quem era.
- Nada importante... apenas assuntos de trabalho... Não te preocupes.
O semblante dela não era o mesmo.
A luz vermelha da desconfiança acendeu na minha mente insegura, mas eu não
insisti em saber o que acontecia. Pelo jeito a intimidade, que antes havia
entre nós, quando compartilhávamos tudo, já não existia. Afastei um pensamento
ruim, com um abano de cabeça e saí do estúdio, com o cenho franzido. Fui para a
cama, mas não conseguia adormecer...
Uma noite mal dormida só agrava
os pensamentos nefastos... e eu amplifiquei minha insegurança e minha paranoia,
elevando-as à potências de dez...
Não tenho muita certeza se realmente ouvi vozes, durante a madrugada, ou se adormeci e sonhei, no estado de tortura mental em que me encontrava. Quando amanheceu, eu ainda estava de olhos abertos e ela não havia vindo para a cama. Levantei-me e procurei-a pela casa. Estava na cozinha, a olhar para fora, com o olhar baço e os pensamentos tão distantes, que mal conseguiu ouvir-me aproximar. Ela virou-se para mim e disse, muito séria:
- Tenho que voltar a Londres... hoje mesmo, se conseguir um voo.
- Aconteceu alguma coisa?
- Nada que eu não possa resolver sozinha...
Aquela resposta, seca e num tom
que eu desconhecia, apanhou-me de surpresa e deixou-me de queixo caído. Ela
passou por mim, apanhou a bolsa de cima da cômoda na entrada e saiu pela
porta afora, sem olhar para trás.
Eu fiquei ali, de pé, no meio da
cozinha, a matutar o que poderia ter acontecido que a deixara daquele jeito. Aquela luz vermelha da insegurança piscava como um grande farol na beira da
praia, parecendo gritar, na minha mente torturada:
Alerta! Alerta! Alerta!
Uma história diferente, em duas partes apenas. A primeira traz a confusão que o personagem sente...
ResponderEliminarPodem ser duas partes mas esta primeira é de uma beleza e simplicidade que quase ferem os olhos e, por outro lado parece que estamos a vivenciar a historia a cada segundo.Parabens
ResponderEliminarTentei ser mais direto, desta vez... mas pretendo surpreender na segunda parte, criando um conflito maior na cabeça no personagem principal.
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