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sábado, 30 de outubro de 2010

Em Olhos de Mar


A mulher, sentada sobre a grande rocha à beira mar, parecia alheia ao tempo e ao espaço à sua volta. Seu corpo miúdo e bem formado, escondia a verdadeira idade, enquanto seu rosto de menina amadurecida trazia pequenos vestígios de uma vida melancólica, marcados na testa e em volta dos olhos. O vento da tarde brincava com as madeixas de seus cabelos loiros, enquanto os pensamentos vinham e iam, como as ondas a arrastar-se sobre as areias à sua volta. Em seus inquietos e cristalinos olhos, perdidos na distância, onde o horizonte confunde o céu com o oceano, as lembranças iam-se alternando, aleatoriamente, sem critério algum. Ela se deixava levar, sem considerar a dor que sua alma já suportara, ou as velhas cicatrizes deixadas por acontecimentos de outros tempos. Por que razão vinha o presente trazer, cruelmente, o passado de volta, como um cadáver despejado aos seus pés, trazido por um mar de memórias?

- Qual é a sua idade?

A pergunta não era somente retórica. O rapaz, de pé atrás do balcão do bar, mostrava uma certa inquietação perante a mulher dez anos mais velha que ele e que agora inquiria-o, com uma naturalidade que ele não possuía.

- Dezoito. Por que a pergunta?

Ele se colocara na defensiva. Os cabelos cacheados, de um castanho claro, emolduravam-lhe a face angulosa. Ela percebeu que ele trazia uma melancolia no olhar, que não desaparecia quando sorria.

- Você parece tão jovem, entretanto suas poesias parecem ser escritas por uma pessoa que já passou por tanta coisa na vida…

A frase, assim colocada, fê-lo sentir-se desconfortável. Aquela mulher pisava uma linha que ninguém havia sequer chegado perto, antes dela. Ele não costumava falar de si próprio. A escrita era seu ponto de fuga – invisível - na paisagem desenhada pelos dedos da vida, que mal começara a se descortinar, perante aqueles inexperientes olhos, de um verde musgo semi-escondido por detrás da quase reticulada flor de renda castanha. Não comentou a resposta, apenas baixou o olhar. Ela sorriu levemente, a pensar naquela timidez, como uma característica que o fazia encantador, a seu ver.

- Me dê a sua mão, aqui.

Ele não pensou, apenas estendeu a mão, que ela segurou firmemente, enquanto dava um longo e profundo suspiro, fechando os olhos ao mesmo tempo. A mão dela era pequena, delicada, morna e macia. A dele era fria, grande, com dedos longos e fortes, mas não chegava a ser áspera. Ele sentiu-se incomodado. Puxou a mão com delicadeza, para não magoá-la. Ela apenas riu, divertindo-se com a atitude desajeitada dele.

***

As intermináveis tardes mornas de Outono passaram a ser amenizadas pelas visitas constantes, nas horas mais quietas, acendendo uma pequena chama de conforto no peito do rapaz. Ele, que nunca havia se sentido especial, ansiava por aqueles encontros casualmente intencionais. Ela tinha o propósito de surpreendê-lo, mudar alguma coisa naquela aparência verde e despreparada, moldá-lo como Pigmalião havia feito ao mármore, para amar sua criação, quando esta estivesse pronta. A vida, propriamente dita, viria em seguida, em resposta aos caprichos do destino.

***

- Será que ele saberá o que fazer? É apenas uma criança…

Ante a pergunta e a observação da amiga, assumia que a natureza tomaria seu próprio curso, se fosse necessário.

- Se não souber, depois que estiver lá, não há mais volta…

Há uma parte animal em todo ser humano – o instinto não falha, quando a razão é legada a segundo plano. As reacções do corpo não mentem jamais e ela contava com essa verdade universal. O melhor, mal sabia ela… assim como o pior… ainda estava por vir. Que raízes seriam profundas o suficiente para aguentar as ventanias que viriam a seguir?

***

Poucos dias depois, observava a maneira meio desastrada com que ele abria, com dedos trémulos, o presente que havia-lhe entregado. Dentro do pequeno pacote, uma caneta dourada, com o nome dele gravado, deixou-o completamente sem acção. Com um rubor autêntico, aquecendo-lhe a face, só soube dizer obrigado e mordeu o lábio inferior, o gesto que a fazia estremecer. Ela desejou beijar aquela boca de lábios bem desenhados, mas conteve-se na ocasião.

- É para escrever os poemas. Uma caneta digna da beleza de sua emoção.

Ela usava o pronome “você” com precisão e destreza, mostrando afinidade com a língua, bem e correctamente usada. Mantinha o coloquial fora do seu linguajar habitual, não por arrogância, mas por índole. Quanta coisa o jovem ainda tinha que aprender da vida, para se aproximar da experiência e da sabedoria daquela mulher?

***

Sabendo onde o rapaz guardava o caderno de poesias, ela ia, ávida, em busca de sinais deixados, intencionalmente. Muitas vezes deixava mensagens escritas para que ele as lesse quando chegasse da universidade. Um longo poema, feito especialmente, foi presenteado com uma marca de batom, deixada enquanto estava ausente de casa. Naquele, ele abria um mundo novo, mostrando-se amadurecido e preparado, lançando um convite, irrecusável - embora velado - ao desconhecido. Ao ver a marca no papel, sorriu. Tinha ficado reticente se deveria mostrar, abertamente, aqueles versos, mas a vida - ou parte dela - se encarregou de fazer a sua parte. Ele se perguntava se os deuses estariam ao seu lado…

***

A ruela por trás do horto estava deserta, excepto pelo casal sentado sob a sombra de uma grande árvore. A luz do sol caía sobre as folhas que atapetavam o chão, pintando de luz e cor a amena tarde de Outono. A mulher beijou as mãos pálidas e frias do rapaz, que pendeu a cabeça sobre a dela, para surpresa da mesma. Ele fechara os olhos e cheirava-lhe os cabelos louros, pela primeira vez, desde que se viam, há meses. Enquanto sempre havia sido cuidadoso, ela havia sido ousada, mas desta vez, ela quem fora surpreendida. Os dedos entrelaçados, o ar sério e verosimilmente preocupado, no rosto juvenil, fizeram-na estremecer, quando ele mordeu, como de costume, o lábio inferior. Ela não resistiu e aproximou-se, com cuidado, para que ele não fugisse do que parecia inevitável. Aquele contacto tinha um sabor insólito. Era a aventura, o proibido e um estranho prazer, juntos num mesmo pacote. Os lábios dele, macios, tocaram os dela, devagar e suavemente. Apesar de tudo que já vira e experimentara, ela não estava preparada para aquilo. O beijo fora suave, como a sensação da seda na pele nua. Ele não era um aprendiz, de forma nenhuma, concluiu a mulher que quis abandonar-se ao momento e avançar com ardor, mas ele pediu-lhe calma. Queria senti-la, completamente, vagarosamente, detalhadamente. Foi então que ela compreendeu que um aprendiz pode tornar-se um mestre, desde que tenha as ferramentas necessárias.

***

Na penumbra do quarto, o contacto entre os corpos confundia as sombras, em nuances de luz, cores, volumes e sons. Ela estava certa. A natureza sabia levar seu próprio curso. Ela conduzia, ele seguia. Ela se entregava, ele tomava. Ela ousava, ele controlava. Ela aprendia a se deixar levar e ele a levar. Quem era mestre e quem era aprendiz, naquela hora, não importava. O que importava era estar ali, naquele momento, com aquele menino que se tornava homem, colado à pele dela, como uma tatuagem, que bebia dela como se tivesse sede, que cruzava a fronteira do mundo dela, como se fosse parte do mesmo corpo que possuía. Deixaram-se arrastar pelas ondas que iam e vinham, como no movimento incessante e harmonioso do mar sobre as areias da praia. E ela explodiu, como se as cores fossem todas graduações de vermelho, levando-a a gritar, um grito que ficou abafado pela boca quente do amante. Ele, por sua vez, sentiu-se envolvido por uma onda de calor, que lhe subia pelo corpo, despertando sensações que desconhecia, enquanto ia e vinha, devagar, provocando reacções descontroladas na mulher sob o corpo dele. Quando sentiu seu próprio corpo lançar-se para dentro de um mundo que apenas começara a conhecer, abraçou-se a ela, como se fosse um náufrago agarrando-se à sua tábua de salvação… e chorou. Ela entrelaçou-se ao corpo do menino-homem e chorou junto com ele. A obra ganhava vida, surpreendendo o artista, no melhor estilo da mitologia grega. Ficaram ali, como se fossem um só corpo, na meia-luz do quarto, até o mundo despertar, outra vez, chamando-os para vida que os esperava lá fora. Era a realidade a roubar-lhes a fantasia que acabara de os envolver em sua ténue teia de prata.

Diz-se que a teoria do yin-yang é mais verdadeira que se possa controlar, conscientemente. Para tudo existe um equilíbrio. Para todo mal há um bem; para toda dor, um prazer … e vice-versa… Quantas almas um homem deve possuir, até que lhe roubem toda a esperança? Quantos sonhos serão extirpados à realidade, pela crueldade acre da perfídia? Que ardis se escondem por trás das supostas boas intenções?

***
- Não posso aceitar isso, de jeito nenhum. Eu tenho que me explicar.

A mulher tentava apegar-se à coerência e aos pequenos vestígios de esperança que a notícia, trazida pelo rapaz, ainda deixava aceitar. Era o fim de um sonho que mal começara a acontecer. Por que razão deveria abrir mão da pequena conquista, que se tornara sua única loucura? Há quanto tempo ela não se sentia tão viva? E, agora…

- Por favor, não vá se explicar. Vai ser pior. Não quero que sejas atacada, como eu fui. Não pense que foi fácil ter a família inteira reunida, me agredindo e condenando… As evidências estavam à mostra, na folha de papel com a marca de batom e no bilhete que eu não joguei fora, por prezar tanto a sinceridade da tua emoção. Não temos outra saída. Foi-me dado um ultimato. Temos que por um fim a este caso. Nós sabíamos que isto iria acontecer, mais cedo ou mais tarde. Só não achamos que seria tão cedo. Sei que não é justo, mas não vejo outra alternativa. Temos que nos afastar, antes que seja tarde demais.

Ele tentava ser racional e manter os pés firmes no chão, embora seu coração estivesse estraçalhado. Já era tarde demais e ele sabia. A emoção havia sido relegada a segundo plano, depois da tal reunião, quando sua voz não havia sequer sido ouvida, nem suas razões - se é que havia alguma - consideradas. Nem toda a verdade fora contada, para poupar a mulher de maiores transtornos. Nem tudo que ouviu, ele contou. Ele estaria sendo vigiado de perto e lembrado, em cada oportunidade que aparecesse, das consequências de sua irresponsabilidade, por um bom tempo. Ela jamais saberia nem este, nem mais detalhes.

Ele manteve-se sério e irredutível entre o o que sentia e queria e o que devia ser feito. Ou resistia firmemente ou jogaria tudo para o alto, enfrentando uma guerra que não estaria preparado para vencer, tanto por inabilidade quanto por imaturidade. Sua vontade era abraçar, beijar e proteger a mulher, talvez até morrer por aquela, cujos olhos marejavam com um misto de ódio, decepção e impotência, face à realidade que lhe jogava contra uma parede tão sólida quanto o que sentia. Ele sabia, porém, que os alicerces daquela relação rompiam-se, naquele momento, por falta de uma estrutura consistente para sustentar o peso do futuro e da responsabilidade. Por dentro, sentia o punhal afiado e perverso do destino a dilacerar-lhe, profundamente, com seu corte certeiro e cruel. Um golpe cujas consequências seriam lembradas para todo o sempre. Uma cicatriz profunda demais a marcar eternamente a alma despreparada de um homem, que mal desabrochara para vida e que nunca mais seria o mesmo.

A mulher não conseguia ouvir o discurso com a razão, mas com a emoção. Sentia-se decepcionada, traída, revoltada e só. Sentia que ele entregara os pontos muito cedo e sem luta. Quão frágil era a linha que separava a coragem do medo, ou o amor do ódio…

***
- Mãe!

Os pensamentos da mulher esvanecem com o presente trazendo-a de volta à realidade. Virou-se para onde o menino de cabelos castanho-claros e olhos verdes vinha, desceu da rocha onde se encontrava e foi ao encontro do filho que a chamava. Os cachos que decoravam a face angulosa do menino, dançavam ao vento da tarde, enquanto ele corria de encontro à mãe. Ela abraça-o, beija-lhe a cabeça e saem pela praia, a caminhar sem dizer nada. Havia um entendimento entre eles, que não precisava de palavras. Estas seriam desnecessárias naquele momento e em qualquer outro. Existem segredos que, para permanecerem ocultos, devem ser completamente enterrados em algum lugar secreto da alma… terna e eternamente.

Ela sabia que o tempo (sempre) cura as feridas, mas não apaga as cicatrizes jamais.