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domingo, 9 de agosto de 2020

Viajante do Tempo. Parte 3. O Moinho. Os Geocaches. Encontros.

  


O policial segurava, firmemente, o braço do jovem de óculos. O homem que eles presumiram ser da empresa de segurança estava ao seu lado.

 

- O que você faz aqui?

 

- O mesmo que todas essas pessoas. Estou curioso sobre o que aconteceu por aqui.

 

- Eu conheço você. Tenho certeza de que já o vi antes.

 

O homem de óculos fingiu ser apenas um turista e rejeitou a afirmação do segurança.

 

- Não é possível. Eu não sou daqui. Estou apenas passando o dia na praia. O moinho foi roubado?

 

- Acha que é engraçado?

 

- Nem um pouco, senhor. Todavia, numa aldeia pequena como esta, até um roubo é um grande acontecimento, sabe?

 

- Achei que havia dito que não era da região.

 

- E não sou. Mas é fácil chegar à esta conclusão, não?

 

- Deixe que eu cuido dele.

 

O segurança agarrou o braço do jovem, com um aperto tão forte, que parecia uma poderosa garra.

 

- Ei, me solta. Eu não fiz nada!

 

Ele falou em voz alta e isso fez com que as pessoas que estavam por perto virassem a cabeça na direção de onde vinha o conflito. Olhando em volta, ele viu seus dois amigos se aproximando, prontos para ajudar. Ele balançou a cabeça, desencorajando-os. Eles logo perceberam a mensagem e se afastaram, observando de uma distância segura, junto com os demais moradores, que começaram a formar um círculo ao redor deles.

 

O segurança, evidentemente maior e mais forte, tentou puxar o jovem para longe, sob óbvio e ruidoso protesto, atraindo, mais atenção para eles do que antes. A pequena multidão logo cercou completamente os três personagens, que estavam naquela discussão, cada vez mais acalorada.

 

O moinho, cuja porta havia sido arrombada, fora esquecido por um ou dois minutos.

 

Era uma oportunidade a ser aproveitada, antes que alguém voltasse a lembrar do acontecimento. O homem de pele muito pálida entrou no prédio e subiu os degraus, até o andar superior. Poucos minutos depois, descia as escadas, quase despercebido e saía pela porta aberta e completamente esquecida.

 

***

 

- Foi uma jogada insana, mas muito corajosa.

 

- Eu tenho de concordar contigo. Eu não poderia deixar aquela oportunidade ser desperdiçada. Não seria justo, depois de todo o trabalho que tivemos.

 

- Verdade!

 

- Vamos. Precisamos ajudar nosso amigo, agora.

 

- Conseguiste alguma coisa lá de cima, afinal?

 

O homem de pele pálida sorriu recatadamente.

 

- Falaremos sobre isso mais tarde. Vamos ajudar nosso amigo. Tenho um argumento bom e convincente. Se eles quiserem levar um, terão de levar todos nós. Vamos fazer a multidão entrar nisso connosco e trazê-los para o nosso lado.

 

- Tu és absolutamente louco, meu amigo, mas essa é uma ótima ideia!

 

Em meio à toda aquela turbulência, a estratégia funcionou e a pequena multidão não permitiu que a polícia e o segurança levassem o jovem de óculos com eles e ele foi logo liberado. Mas os dois homens não ficaram nem um pouco felizes.

 

Temendo pela própria segurança, os três amigos saíram o mais prontamente possível. Ainda havia muita coisa a ser resolvida e eles precisavam agir imediatamente.

 

***

 

O jipe contornou a rotunda e rumou para a saída à direita. Estavam de volta à A28, em direção ao sul.

 

- Eles não estariam lá sem motivo algum. A ação foi muito imediata…

 

- Foi o que eu pensei.

 

- Esse incidente apenas confirmou minhas suspeitas.

 

- Ainda falta uma peça nesta história ...

 

- Sim. O homem de fato de treino escuro, com capuz...

 

- O que ele quer, nós meio que já sabemos... O que precisamos perceber é quem ele é e o que sabe...

 

- E se ele é amigo ou inimigo...

 

- Uma coisa é verdade: estamos um passo à frente dele, ainda... Mas precisamos visitar aquele farol, novamente, na cidade... E tem de ser imediatamente!

 

Os dois amigos olharam para o homem de pele pálida, que segurava, nas próprias mãos, o falso "geocache", que havia retirado do moinho.

 

***

 

- Essa não! O que pode ter acontecido aqui? Eu não consigo mais encontrar. Onde é que foi parar?

 

- O que? Como assim, não consegue mais encontrar?

 

- Acho que sei o que pode ter acontecido. Eu me pergunto se...

 

- Achas que ele chegou aqui antes de nós?

 

- Sim, eu acho.

 

- E o que vamos fazer agora?

 

- Não sei, mas se ele ainda não percebeu, logo descobrirá que nós temos a outra peça desse ‘puzzle’ e talvez chegue à sensata conclusão de que precisaremos trabalhar juntos, caso contrário outra pessoa pode...

 

- Tu não podes estar a falar sério. Ele não é um amigo, pelo que pudemos perceber.

 

- Não sabemos ainda ...

 

- Então o que ele é? Quem ele é?

 

- Pense comigo: se ele fugiu da polícia e do segurança, daquele jeito, ele não é nosso inimigo, de jeito nenhum...

 

- Bem, ele invadiu o moinho, não foi? Isso não é um procedimento nada inocente. Ele sabia exatamente o que estava fazendo.

 

- Temos de encontrar aquele homem e obter algumas respostas, para todas essas perguntas.

 

- Mas como? Como podemos encontrá-lo, no meio desta cidade? Não temos ideia de onde ele está e nem como entrar em contato com ele...

 

- Precisamos achar uma maneira. Eu me pergunto se há um jeito de nos comunicarmos... Ele pode não estar longe de nós... daqui... disso tudo...

 

- Vocês estão certos!

 

Os três homens se viraram, ao mesmo tempo. Um homem, vestindo um fato de treino escuro e com capuz estava parado à porta do farol. Seu rosto estava na sombra.

 

- Esse 'cache' não está mais aí, como vocês já devem ter percebido, com certeza. Eu estava esperando por vocês!

 

- O quê?

 

- Não vai ser eficaz lutarmos um contra o outro. Não faz sentido. Temos de trabalhar juntos e rápido. Essas pessoas são perigosas e querem o mesmo que nós, mas com uma intenção diferente. E eles estão cada vez mais perto...

 

- E quem és tu, oh, caral... quer dizer, quem diabos é você?

 

O homem baixou o capuz e descobriu, totalmente, a cabeça. Os três amigos ficaram pasmos.

 

- Como isso pode ser possível?

 

***


quinta-feira, 6 de junho de 2013

Outros Estudos em Vermelho e Azul - Parte 3


Vermelho… Azul… vermelho… Azul… Vermelho… Azul…

O fino veio de fluido escarlate, ainda levemente viscoso, escorria vagarosamente por entre os espaços das pedras do passeio. Mais à frente, juntava-se a outros, como afluentes a um mesmo rio, formando, ainda mais adiante, uma pequena lagoa esmaltada, tinta de um brilhante tom rubro, que ia lentamente aumentando de tamanho, diante de seus olhos. 

Ajoelhada no gasto calçamento de granito cinzento e sujo, ela examinava o corpo caído - meio de lado, meio de bruços - no meio do passeio público. Uma mistura de perturbação e profunda dor comprimiram-lhe o peito, ao tocar a pele - ainda morna - do jovem homem. Impelida pelo senso de dever, tentou privar-se de pensar em seus sentimentos, procurando ser a mais científica e profissional detective, diante da situação e dos factos. Sendo cruelmente consumida pela dor, entretanto, ela não já conseguia separar a razão da emoção. Engoliu em seco, tentando reter as lágrimas que sentia inundarem seus olhos e seu espírito que, em objecção, retribuiu com uma aguda fisgada no principal órgão pulsando em seu peito. 

Controle-se, pensou ela. Controle-se… 

Aqueles olhos, de um tom intenso de safira, ainda abertos, não pareciam haver sido inteiramente surpreendidos pela fatalidade. Na verdade, davam a impressão de contemplar, imperturbavelmente, o espaço vazio à frente. A mulher estremeceu levemente, tendo a falsa impressão que ele apenas descansava, desajeitadamente, sobre o duro piso da rua. Questionou-se, intrigada e em silêncio, o que aqueles olhos teriam visto, antes que a vida fosse arrebatada deles, triste, violenta e definitivamente? 

Desviou a atenção, sentindo um certo mal-estar pela cena daquela peça lúgubre, descortinada ali, diante de si, em vermelho… e azul… Os peritos já chegavam para examinar, detalhada e cientificamente, o corpo e o local, recolhendo amostras de tudo que podiam. Alguém dignou-se a fechar-lhe, com cuidado, as pálidas pálpebras. Ele, agora, parecia serenamente adormecido… 

Curiosos ajuntavam-se à volta, apesar do cordão de isolamento estendido pela polícia em volta da cena do crime. Seu mal-estar cresceu diante daquela situação. Pensou em abutres em torno de um animal morto, prontos a atacar, na primeira oportunidade. Aquele pensamento inquietou-a grandemente, ao ponto de fazê-la querer estar longe dali, alheia a tudo e a todos.

Numa situação normal consideraria um corpo sem vida como um objecto de estudo… um conjunto de provas que se tornariam irrefutáveis para os peritos do laboratório forense determinarem a causa da morte e conduzirem as investigações aos policiais. 

Aquele caso específico, todavia, mexera bastante com seus nervos. Sentiu uma súbita convulsão no estômago. Teve fortes ânsias de vómito. Precisava de ar fresco, distância daquele local e um pouco de descanso.

As luzes a piscar intermitentemente feriam-lhe os olhos, enquanto as imagens misturavam-se em sua mente, tornando difícil separar passado e presente, realidade e imaginação, memórias e factos. Apesar daquele tipo de ‘espectáculo’ não lhe ser nenhuma novidade, o excesso de horas seguidas de trabalho, sem repouso, estava dando cabo de sua paciência, com uma facilidade descomunal. 

A investigadora de polícia – sempre durona, fria e impessoal - começava a mostrar sinais de fraqueza e stress. O facto de conhecer a vítima contribuía grandemente para aumentar o seu incómodo e incutir-lhe uma estranha sensação de culpa, que já começava a aumentar o peso em sua torturada consciência. Ela estava de pé por mais de 24 horas, não dormia direito já por vários dias seguidos e começava a desconfiar que a quantidade de cafeína ingerida causava-lhe delírios. 

Percebeu, quase sem querer, que do outro lado da pequena multidão de curiosos, ela estava sendo observada por um certo par de olhos profundamente azuis – como as águas do Oceano Pacífico. Ele estava lá, atento a cada movimento que fazia, como se a estudasse com grande interesse. Se a vigiava como a uma presa, preparando um futuro bote, ela não tinha realmente certeza, mas aquela visão deixou-a, de alguma forma inquieta e desconfortável. Qual a relação que ele tinha com aquele contexto, ela ainda não sabia, mas o instinto de policial bem treinada acendeu uma luz vermelha dentro de si e alertou-a para o facto de que aquela não era uma curiosidade inocente… nem tampouco casual. 

Franziu o cenho, ao olhar naquela direcção, mas uma distracção qualquer a fez perder o contacto visual com o rapaz. Quando tornou a procurar Misha, no meio da multidão, este já havia desaparecido. Perguntou-se se o havia visto realmente, ou se o havia imaginado naquela cena. 

Vermelho… azul… vermelho… azul…

As luzes acesas em cima das viaturas policiais pintavam a noite com tons quase irreais de cores fortes. Os olhos da mulher, anteriormente atentos, começaram a perder o foco, gradativamente, enquanto ela procurava, na faixa por detrás do cordão de isolamento, a presença do personagem que ela não tinha certeza de haver verdadeiramente visto. Os sons das vozes, sirenes e trânsito foram-se distanciando, lentamente… Sentiu as pernas fraquejarem e, por sorte, estava suficientemente próxima do carro parado, para poder apoiar-se. Fixou-se nas cores a girar, na tentativa de voltar a manter o foco, mas sua mente começou a vaguear no tempo… 

Os olhos azul-cobalto… o facho de luz filtrada pelo vitral vermelho da janela… outros olhos de um distinto tom de safira… a explosão em vermelho dentro de si… os olhos azuis do corpo caído na sarjeta… a poça de sangue vermelho e brilhante à volta do rapaz morto… 

  - Pare de olhar estas luzes assim... 

Sentiu um firme puxão no braço, fazendo-a voltar à realidade…

***

- Eu gosto tanto de estar aqui… Contigo sinto-me segura e bem… protegida, como toda mulher deve, na verdade, sentir-se… 

Deitada ao lado dele, na ampla cama de casal, ela esperou uma reacção. À declaração seguiu-se apenas um profundo suspiro. Ela virou-se para ele e viu que uma lágrima silenciosa e solitária escorria-lhe lentamente pelo lado do rosto.

Num gesto de espontâneo carinho, ela tocou-lhe, com cuidado, a face molhada. Uma sensação desconfortável envolveu-lhe o espírito, como se o prenúncio de uma tragédia se aproximasse a passos largos.

Ele deu outro suspiro e falou, com voz grave e baixa:

- Só não me faça sofrer, por favor. Já passei por muita dor na minha vida. Não sei quanto mais eu iria conseguir suportar...  

Num momento em que deveriam estar relaxados e felizes, fazendo planos para o futuro, ou rindo de coisas bobas, ele, de repente parecia tão distante e tão perdido… tão sem perspectivas… 

Ela puxou-o para si e abraçou-o com força, sem dizer nada. Ele entregou-se àquela demonstração de ternura e chorou, com a cabeça nos ombros da mulher que, naquele momento mostrava-se tão forte a ampará-lo, enquanto ele desabava diante dela, deixando cair todas as suas defesas, sem medo de parecer ridículo. Quão frágil e carente aquele homem se encontrava ali, aninhado em seus braços… Seu choro era triste… angustiado… convulsivo... 

Ela beijou-lhe a cabeça, com suave e autêntica afeição.

(Vinte e seis anos de idade e já assim tão sofrido? Quem fez isso contigo, minha criança? Quem te magoou esse tanto a ponto de deixar-te tão desiludido… tão fragilizado?) 

Um sussurro, ao pé do ouvido, foi o melhor que pode oferecer-lhe. Ele suspirou e, aparentemente, acalmou-se, ainda abraçado a ela.

- Não tenha medo, meu menino, de parecer fraco. Não tens que ser forte sempre. O passado, que te trouxe até aqui, ficou lá atrás. Deixa-o ficar onde ele pertence. Ele pode ter feito quem tu és, hoje, mas não precisa determinar quem tu serás amanhã. O que passou, passou, meu querido amigo. O presente é aqui… comigo. O que vier daqui para frente só depende de ti… de mim… de nós… mas o melhor ainda está por vir… acredita em mim… Para falar bem a verdade, eu não tenho saudades do passado que vivi. Eu acredito num futuro melhor e quero que faças parte dele. Confia no teu coração… e no meu... Dê uma hipótese a nós dois para que essa relação possa dar certo. 

Ele não respondeu. Ficou em silêncio, como se estivesse tentando absorver o sentido daquelas palavras, digerindo-as devagar, depois de mastigá-las um grande número de vezes. Sabia que ela estava correcta, mas não tinha convicção de haver-se convencido a entregar-se totalmente, como quem se jogasse na escuridão fria e incerta do oceano, numa noite de tempestade. 

Ela percebeu que, afinal, eram ambos náufragos, em um mar de decepções passadas e tinham receio de ter o coração machucado, como já havia acontecido vezes sem conta, pelo menos no seu caso. Ele também parecia haver experimentado profundas decepções – daquelas que fazem o medo ofuscar a razão e bloquear a emoção. Para não sofrer, tanto um como o outro, restringiam, assim, o ‘permitir-se enfrentar’ o que a vida pudesse lhes oferecer, aberta e intensamente, por tanto tempo quanto merecesse durar qualquer relação afectiva… 

Apesar de encorajá-lo, ela percebia que também estava assustada…. Na verdade, sentia-se cada vez mais angustiada e assustada… 

- Eu preciso de um tempo… sozinho… Estou tão confuso neste momento…

(Oh, Deus… e essa agora…) 

Naquele momento ela pareceu distanciar-se daqueles olhos azuis e daquele sorriso de menino travesso, pelos quais havia-se deixado, inadvertidamente, apaixonar. Aquele pedido havia-lhe caído como uma grande pedra na água serena de um lago, levantando uma imensa onda… de apreensão… em seu coração. Custava-lhe acreditar que ele dissera aquilo, daquele jeito, ali, naquele momento…

(Quantos erros podem ser cometidos, até uma pessoa se convencer que apenas os repete indefinidamente?) 

***

Assegurou à amiga que estava bem e que podia conduzir, sozinha, para casa. Deixou-a, ainda um tanto desconfiada, numa estação de metro e seguiu adiante, já pensando no conforto de um banho quente e da grande e confortável cama. As luzes da noite passavam, praticamente imperceptíveis, pelas janelas do carro, em velocidade acelerada.

Vermelho… 

A mudança repentina na cor da luz no semáforo à sua frente a fez pisar nos freios com força. Um caminhão de bombeiros, seguido de uma ambulância - ambos com as sirenes ligadas - passou em alta velocidade pela rua transversal à que estava parada. 

Ela se viu, entre imagens trazidas à sua mente activa e consciente, cercada de braços, mãos, estilhaços de vidro e vozes - que ouvia, mas não conseguia compreender. Apagaram-se as luzes, as vozes, as pessoas e ela deixou de sentir dor, caindo no profundo vazio de um imenso e silencioso buraco negro…

Lembrou, então, de quando acordou do coma a que esteve por uma boa temporada. O trágico acidente de viação deixara-a entre a vida e a morte, em coma, por um longo tempo. Perdera, definitiva e irreparavelmente, quem mais havia amado até então. O marido não resistira ao impacto da colisão e morrera instantaneamente. A ela, foi restituída a vida, mas não sem um preço.

Enquanto estava no hospital, pessoas que a visitavam traziam-lhe presentes e flores, em tentativas desastradas – a seu ver - de minorar a dor e a solidão da perda e da convalescença pós-coma. Ela se sentia derrotada e assumia que provavelmente não tinha direito aos presentes que lhe traziam. A compensação parecia-lhe imprópria e injusta. Flores e presentes passaram, então, a representar sua grande perda, portanto ela abominava-os com todas as suas forças.

A partir dali, passava a ficar desiludida para o resto da vida, de modo a sentir aversão a toda e qualquer ocasião que se relacionasse com presentes. Paradigmas que se repetiam. Continuava a deixar-se levar pelo comportamento padrão que tinha menos direito que os outros. Queria satisfazer os desejos dos outros, sem pensar naquilo que realmente queria. 

(A vida, por ironia ou maldade, como resultado do acidente, privou-me do direito de procriar. Eu confundi com o direito de amar ou relacionar-me e assumi que tinha de ser durona, insensível, quase masculina, característica que se acentuava até no modo de vestir-me. Meus poucos relacionamentos, após aquele, haviam sido fugazes, sem nenhuma profundidade. Nas duas únicas vezes em que tivera um mínimo de esperança em ter alguém por mais tempo, fora surpreendida com os tristes e cruéis golpes do destino. Parece que tenho um pesado ‘carma’ a pagar e este está a custar-me bem caro…)

Ela se tornara uma pessoa solitária, amarga e sem expectativas em emoções e outras coisas imateriais, que decidira dedicar-se inteiramente ao trabalho, já que não sobrava muita coisa além daquilo em sua vida. As longas horas de trabalho duro e obsessivo afastavam-na de pensar em sequer relacionar-se com alguém. O que ela mais prezava era aquele pouco de paz, quietude e o conforto do silêncio, quando voltava para casa no fim do dia, onde o fiel Ginger sempre esperava à porta, invariavelmente, saudando sua chegada, sempre disposto a ganhar um pouco de atenção e esperando ser alimentado convenientemente. 

Tinham uma relação bastante especial e única. Passavam o tempo livre dela sempre juntos, muitas vezes em intuitivo silêncio ou ouvindo música baixinho, grudados um no outro, deitados no sofá da sala, em dias frios, debaixo de um espesso cobertor. Era ele quem a ouvia, talvez sem compreender, quando a mulher entrava em modo de depressão, mas o bichinho nunca reclamava – apenas a olhava nos olhos, como quem dissesse: ‘eu não sei se percebo bem o que dizes, mas estou aqui, a dar-te todo o apoio que precisares’. 

Esboçou um sorriso um tanto triste ao pensar no seu companheirinho de quatro patas e voltou à realidade do momento presente. 

O sinaleiro havia estado em vermelho pelo que tomou por tempo demasiadamente longo. Sua cabeça não conseguia manter o foco em nada, por mais que umas fracções de segundos. Seus pensamentos voltavam invariavelmente para aquela cena e para os olhos que a observavam, como se analisassem seus movimentos, por um lado, mas por outro mostravam algo mais: talvez uma espécie de retaliação. E se, conscientemente, ele a estivesse punindo por não havê-lo ajudado? E se ele estivesse a vingar-se, tirando-lhe algo que sabia que ela prezava, para compensar a noite que tivera de passar na cela da cadeia, por não ter como pagar uma fiança? 

O sinal mudou para verde e ela prosseguiu, pelas ruas da cidade, semi-consciente do que fazia, confiando mais no instinto que em seu estado de alerta. Uma pontada de dor atingiu-lhe as têmporas e os músculos em seu pescoço formigaram. Tensão, pensou… Precisava parar. 

Já via diferentes olhos em todos os diferentes lugares. Ela não tinha certeza se estava fascinada ou em completa alucinação. Não conseguia parar de pensar na fascinante cor azul daqueles expressivos olhos, que faziam parte de seu passado recente, tão cruel e violentamente arrebatado de si.

Chegar em casa foi uma experiência estranha, da qual não se recordava de nada muito claramente. Parecia haver uma névoa em seus olhos e em seu discernimento. Estava praticamente semi-consciente. Só deu-se conta de onde estava, depois de sair do carro, caminhar até a porta do saguão e deixar cair as chaves da mão. 

Foi como se acordasse de um estranho transe. Sua cabeça parecia estar em turbilhão e os pensamentos não encaixavam… eram uma sequência recortada de imagens passando completamente sem nexo – aleatória e rapidamente. 

Não sabe ao certo como chegou à porta do apartamento. Entrou e jogou as chaves sobre a mesinha no hall de entrada, seguindo para a cozinha, a fim de preparar algo para comer. 

Ginger a esperava naturalmente ansioso, como todos os dias quando chegava em casa e saudou-a com uma cabeçada na perna: sinal que estava na hora da sua comida. Alimentou o bichinho e preparou para si uma sanduíche de queijo quente, por ser mais prático e rápido e por ser já bastante tarde na noite. 

Uma taça do seu vinho tinto favorito acalmou seus ânimos e relaxou-lhe o corpo demasiadamente tenso. O banho ia ter de esperar. Jogou-se no sofá da sala logo em seguida, ainda completamente vestida, atirando os sapatos para o lado, para o desespero do gato, que abominava desarrumação. Seu pequeno companheiro aproximou-se, deitou-se sobre seu peito, ronronando de satisfação e olhando no fundo de seus olhos, como costumava fazer, quando queria um carinho. 

Adormeceu ali mesmo, cansada que estava para fazer qualquer outra coisa minimamente producente.

Os olhos azuis perseguiram-na pela noite adentro, em sonhos cheios de agonia e suor frio, num sono agitado, como já vinha ocorrendo muitas vezes ultimamente. Acordou-se no meio da madrugada, mais cansada do que se não tivesse dormido ali, devido ao pouco conforto do sofá… Levantou-se sentindo frio, tomou um duche morno, enrolou-se no roupão e foi preparar algo quente para beber. Estava ainda tão tensa que não iria conseguir voltar a dormir, de todo jeito.

Uma boa xícara de café forte iria deixá-la desperta o suficiente para pensar e avaliar mais coerentemente as circunstâncias e os eventos do último dia. Precisava juntar os factos de maneira lógica. Tinha que tentar seguir uma linha de raciocínio que a levasse à uma conclusão acertada, ou pelo menos que desse uma pista de como desvendar aquele mistério. Seu instinto apontava uma direcção, mas precisava de factos concretos e sabia que ia ter que esforçar-se bastante para consegui-los. 

Começou a fazer anotações apressadas, sem muito critério, como se num brainstorming, para tentar organizar os detalhes ainda vivos em sua memória. A aparente tranquilidade na face do rapaz morto ainda a intrigava. Por qual razão não deixara gravada nenhuma surpresa no olhar congelado pelo último acontecimento de sua vida, ela não conseguia ainda perceber. 

O que mais a atormentava, porém, naquele momento, era descobrir qual a relação Misha tinha com aquela cena toda. Não poderia estar apenas por um acaso do destino, naquela hora, naquele lugar. Não era um comportamento que ela aceitaria com base no que conhecia dele. Ela tentava sem parar, mas sua cabeça começava a dar sinais de cansaço. 

A sua velha conhecida dor nas têmporas, voltou a afligi-la, impedindo-a de pensar claramente. Sentiu os músculos atrás do pescoço e ombros a formigarem. Passou, instintivamente, as pontas dos dedos pelos músculos doloridos… A um calor subindo-lhe pela espinha, seguiu-se uma tontura quase deliciosamente confortável, como se fosse o torpor gerado pela ingestão de uma grande taça de vinho, quando se está com o estômago vazio. Ela fechou os olhos e deixou-se cair numa escuridão suave e silenciosa, apagando completamente todos os sentidos…