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sábado, 7 de novembro de 2015

Espirais (Parte 3)


Uma mocinha, aparentando não mais que uns dezoito anos, vestida com uma simples túnica azul celeste de tonalidade muito clara, adornada apenas por um cordão dourado, amarrado à cintura, entrou, logo atrás de dois homens, que portavam nada discretas pistolas militares nas mãos, quando a pesada porta de madeira maciça foi aberta. Vinha com o propósito de servir de intérprete e traduzir a intenção por trás da presença dos dois homens armados a aqueles jovens prisioneiros. 

Ela pousou seus grandes olhos azuis nos dois, mas demorou-se uma fração de tempo mais longa no rapaz de óculos, que a observava com genuíno interesse e com a boca semiaberta. O amigo percebeu a reação do outro e sorriu discretamente. 

Poucos minutos depois, o grupo seguia pelo longo corredor, cujo piso de pedra polida amplificava o som dos passos, ecoando pelas altas paredes pintadas de bege. Iam em direção à uma sala aberta, no outro extremo do edifício. 

Um homem alto e corpulento, com a cabeça raspada e ar muito sério os aguardava, de pé e descalço. Estava vestido com uma túnica muito clara e uma espécie de calça feita de uma peça única de tecido liso amarrado à volta da cintura e dobrado, de modo a deixar as pernas cobertas até a altura dos joelhos, sem entretanto tolher-lhe os movimentos. Era tingida de um tom de azul bem mais escuro. 

Ele adiantou-se e recebeu-os com a mão estendida, ainda com o semblante bastante sério e falou-lhes, praticamente sem sotaque. 

- É uma enorme satisfação receber os dois homens que sobreviveram, incólumes, a uma explosão nuclear. 

Ele abriu bem os olhos, exibindo um sorriso um tanto estranho.

- Esse poder interessa-me muito…

O rapaz de óculos levantou o sobrolho, desconfiado, sem mover-se mais que o necessário. Estava, também, surpreso que o homem falasse a mesma língua. O outro soldado respondeu mais positivamente ao cumprimento daquele homem estranho, vestido com uma indumentária igualmente incomum, cujo aperto de mão, muito firme, mostrava uma força bastante evidente, a emanar dele, com uma naturalidade espantosa. 

Os dois olharam-se firmemente nos olhos, como se desafiassem um ao outro.

***

- Por que não dormes? Quase consigo ouvir teus pensamentos daqui…

- Não consigo… parar de pensar…

- Naqueles olhos azuis? Achas que eu não percebi?

- Bobagem. Não é nada disso. Estou preocupado. Nós estamos como hóspedes, neste quarto de luxo, depois de termos sido sequestrados. Há algo muito errado aqui…

- Pois há. Mas é melhor dormir, agora. Amanhã temos que arranjar uma forma de sair daqui. Agora descansa.

- Se fossemos hóspedes, mesmo, a porta teria uma maçaneta pelo lado de dentro. Estamos presos aqui.

- Eu sei. Mas de nada adianta tentarmos sair agora. Nossa saída tem que ser mais estratégica, quando estivermos fora daqui. O quarto é à prova de fuga. Nem janela tem…

- Estamos aprisionados por um louco. Viste os olhos dele? Ele é completamente louco… O que ele espera de nós? 

- Não sei ao certo. Mas ele quer mais poderes… se é que tem algum, além daquela insanidade doentia… Ele é muito, muito perigoso…

Os dois ficaram em silêncio, cada um imerso em seus próprios pensamentos. A quietude da noite, naquela ala do grande edifício onde estavam, pesava sobre os dois jovens soldados, perigosamente, como se fosse uma sentença de morte. 

O rapaz, cujos óculos repousavam ao lado do travesseiro, olhou o teto e viu, por um instante, num estranho lampejo de memória ou delírio, dois grandes e conhecidos olhos a olharem para si. Ele sorriu, virou-se para o lado e cerrou as pálpebras. Uma sensação agradável tomou conta dele, como se estivesse sendo embalado pelos braços e colo da mocinha de magnéticos olhos azuis. 

O outro sentiu, também, suas pálpebras pesarem, foi tomado por uma agradável sensação e não tardou a adormecer. 

Nenhum dos dois percebeu que um silvo muito subtil, quase imperceptível, num canto, instilava um poderoso opiáceo no ambiente, fazendo-os cair em sono profundo e pesado, fazendo-os sentir que estavam a flutuar, agradavelmente, sobre as camas dispostas em lados opostos do espaçoso quarto.

***

Depois de uma leve e breve refeição, à base de frutas, chá e sumos naturais, já a meio da manhã seguinte, os rapazes foram levados por um corredor, que seguia acima de uma grande sala, que cruzava uma larga parte aberta do edifício, onde aglomeravam-se muitas pessoas, vestindo túnicas soltas sobre seus corpos e as cabeças totalmente cobertas por capuzes, que escondiam boa parte de seus rostos. Entravam em grupos separados por cores das vestes, descendo por sete escadas em espiral, uma em cada um dos sete cantos da sala heptagonal e juntavam-se no grande hall, numa sequência que lembrava um arco-íris. Vinham participar de uma espécie de ritual, dirigido e controlado pelo homem da cabeça raspada, que os aguardava, num pedestal construído no centro do hall. 

O sumo-sacerdote estava vestido com uma longa e larga túnica dourada, mas não usava o capuz sobre a cabeça. Ele esperou até os grupos tomarem o espaço, por completo, à sua volta, em completo silêncio.

A mocinha conduziu os dois jovens soldados até uma sala com uma sacada fechada, num mezanino, donde podiam ver o ritual, por completo, mas sem o direito de participar ou interferir. 

Quando o homem da túnica dourada começou a falar, eles perceberam a perfeição da acústica da grande sala. Ele não usou nenhum artifício para amplificar sua voz, a qual soou clara e poderosa, para a surpresa dos dois amigos.

***

- Vê só como ele manipula estas pessoas. Consegue o que quiser destas criaturas tão carentes e a necessitar de esperança. Ele sabe disso e usa deste conhecimento contra elas. 

- São como ovelhas perdidas a seguir um mau pastor, por ignorância ou por medo… Mal percebem que estão sendo conduzidas à própria exploração e condenação, por escolha delas mesmas. Não percebem, nem sabem pensar por si próprias. Buscam um paraíso que não existe, onde os seus pecados possam ser redimidos, para poderem sentir-se menos miseráveis ou para terem algo a que apegar-se. Como se diz: o pior cego é, com certeza, aquele que não quer ver.

- O fanatismo sempre levou as pessoas a cometerem as maiores barbaridades, em nome de suas crendices. As religiões são quase tão antigas quanto a humanidade. Os mitos e os deuses foram criados pelos homens, para explicar o inexplicável ou para controlar o comportamento dos mais comuns e menos esclarecidos. 

- As massas sempre necessitaram de líderes. É natural que sigam seus profetas e hierofantes, sem questionar. Facilita-lhes viver e diminui-lhes a culpa e o sofrimento. As pessoas precisam apegar-se a algo para terem razões para viver. Procuram fora delas o que não encontram dentro de suas fracas e desesperançadas almas: paz e, talvez, fé.

- É mais fácil apegar-se a algo externo do que trabalhar a paz internamente. Também é mais conveniente, pois uma viagem ao exterior é menos complicada e dolorosa que para o interior das nossas mentes. 

- E gera menos questionamentos. Os antigos profetas e os sumo-sacerdotes nada mais eram que indivíduos com um grande poder de persuasão e controlo dos homens através das palavras e, muitas vezes, por conta de delírios esquizofrênicos. Em algumas tribos indígenas, até recentemente, as profecias e visões eram geradas por alucinantes poderosos a fazer efeitos em mentes complexas, depois de participarem em rituais mais complexos ainda e eram respeitadas como visões iluminadas de homens iluminados. O mesmo acontecia com os rituais pagãos, que mais tarde foram condenados e perseguidos pela igreja. Que diferença existe, afinal, entre um nórdico, que acreditava que o som do trovão era gerado pelo bater do martelo do deus Thor numa bigorna, no reino divino de Asgard, um índio que chamava a Tupã o deus do trovão ou um homem que guia-se por uma tábua escrita por um dedo invisível de um deus todo-poderoso, com uma dezena de mandamentos de conduta, mas que não respeita as manifestações religiosas de outros povos?

- O ser humano, quando está carente ou desorientado, é mais manipulável que um gato com fome. São como cegos em busca de luz. Os mais espertos, manipuladores e sem escrúpulos aproveitam-se da fragilidade emocional destas pessoas. Nestas ocasiões as novas seitas e religiões nascem e proliferam, para conforto dos pobres fiéis e enriquecimento dos ditos pastores e líderes. Isso sempre foi e sempre será assim.

- Sabes muito bem que as pessoas não questionam as religiões, as tradições ou os ensinamentos dos ancestrais, por conformismo ou medo de colocar sua fé em cheque. Por trás de boas intenções, existem, sempre, entretanto, muitas más ações.

A mocinha, que até então estava quieta a ouvir os dois rapazes discorrendo sobre um assunto muito complexo, olhou para os dois, firmemente e disse:

- Cuidado com ele ou a falar mal dele. O nosso povo confia cegamente e não medirá esforços a protegê-lo. Qualquer palavra em falso poderá causar-vos um problema bastante grave… e uma complicação das grossas... Ou mesmo a vossa condenação e morte. 

***

O rapaz de óculos vinha saindo do lavatório, quando ouviu uma música muito suave, vindo de algum ponto, no fim do corredor. Curioso e intrigado, ele resolveu que tinhas de descobrir de onde aquela melodia vinha. 

Numa saleta desprovida de decoração, uma moça dançava com movimentos muito lentos, como se fizesse yoga ou alongamento. O rapaz ficou a olhar a moça, completamente encantado pelo que via. A luz, que entrava por uma pequena janela, no alto da parede, batia na cabeça da moça, dando, ao rapaz, a impressão que estava diante de uma cena tanto surreal quanto angelical. Uma estranha sensação brotou em seu estômago, como se fossem borboletas a baterem suas frágeis asas, num voo suave e certeiro, atingindo-o em cheio e deixando-o, ao mesmo tempo, fascinado e confuso. 

Ela abraçava seu próprio colo e dançava sozinha, com os olhos fechados, como estivesse tomada por uma alucinação qualquer. Seu rosto era sereno e, assim, iluminado pela luz que entrava pela janela, parecia refletir os raios do sol.

Quando a música parou, ela abriu os olhos e viu o rapaz parado na porta a observá-la. 

Ele corou imediatamente, sem saber o que fazer. 

Ela não disse nada. Limitou-se a olhar na direção da porta, com aqueles olhos muito grandes e azuis, que tanto enfeitiçavam o jovem soldado, que de repente, teve seus dois braços agarrados por trás e puxados com uma força tão grande e descomunal, que deixaram-no totalmente inerte e imobilizado…

***