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domingo, 22 de novembro de 2015

Espirais (Epílogo)


O rapaz, que fora apreendido em flagrante, numa área à qual não deveria sequer ter tido acesso, em princípio, foi agressivamente retirado do local pelos seguranças do sumo-sacerdote. Os dois foram, então, levados de volta e mantidos no quarto da porta sem maçaneta e sem nenhum direito de acesso às outras instalações do grande edifício. Estavam encarcerados outra vez... e desta vez tinham plena consciência da razão pela qual voltavam àquela prisão.

- Aonde tinhas a cabeça? Sabes muito bem que foste extrema e completamente imprudente e negligente. Se antes nós corríamos perigo, agora o risco será muito maior. Temos que sair daqui o quanto antes… antes que nos façam mal maior…

O rapaz de óculos sabia que o outro tinha razão e não respondeu. Ele odiava quando aquilo acontecia, porque ficava sem contra-argumentos. Pôs as duas mãos na cabeça, sentindo-se cair num poço sem fundo, frio e escuro. Jogou-se de costas sobre a cama e fechou os olhos. Uma dormência tomou conta dele, quase que imediatamente. O outro também sentiu seus olhos pesarem e quase não teve tempo de sentar-se, antes de perder a consciência. Haviam sido drogados.

***
- Aquilo foi uma infeliz coincidência. Um acidente, que acabou salvando nossas vidas. Não somos nada especiais… apenas tivemos a sorte de não estar na superfície, quando as explosões ocorreram. Foi a estrutura do ‘bunker’ que nos manteve a salvo, fora da área de radiação.

- Eu não acredito.

- Pode acreditar. Nós somos dois comuns mortais. Nada além disso. Isso tudo não passou de um grande engano. Nós nem devíamos estar lá, naquele momento…ou aqui… agora…

- Amanhã, assim que o sol nascer, serão sacrificados. Se for verdade o que dizem, não haverá consequência…. Além da vossa morte, é claro. Se estiverem mentindo, vosso poder será meu. De todas as formas, eu saio ganhando e vocês perdem…


Em meio ao medo e à raiva que sentia, o rapaz de óculos gritou um imprecativo, mas em vão. O homem da cabeça rapada já havia saído, ignorando qualquer súplica e divertindo-se com o que acabara de dizer aos dois soldados prisioneiros. Eles já não tinham nenhum uso. Pelo menos serviriam de comida aos grandes animais, que eles usavam como farejadores de caça…

- Ora, ora… Que grande ideia… tornar o sacrifício de dois inúteis soldados num jogo de caçadores e caçados…

O homem sorriu, satisfeito por haver tido aquele lampejo de imaginação. Tinha que fazer uns arranjos para a manhã seguinte. Aquilo ia ser, mesmo, muito divertido…

Quando a porta foi trancada, um suave e conhecido perfume começou a impregnar o quarto e os dois começaram a sentir-se sonolentos.

Desta vez, porém, protegeram os narizes e as bocas com a almofada, levantaram as cobertas das camas, formando uma grossa camada protetora, como uma cabana e ficaram quietos, na esperança que o opiáceo não penetrasse entre as fibras das cobertas. Tinham que manter-se alertas, sem perder a consciência. Sabiam o perigo que corriam e não podiam deixar mais nenhuma ponta solta, ou seriam vítimas muito fáceis dos soldados a serviço do insano sumo-sacerdote.

O tempo parecia não passar. Algumas horas depois, ouviram o barulho de alguém a mexer no ferrolho da porta e entrar no quarto.

Os dois jovens soldados fingiram estar a dormir, tentando não respirar muito profundamente, para não absorver a droga que havia sido lançada no ambiente. Uma lufada de ar fresco entrou no quarto, assim que dois homens armados cruzaram a porta. Estavam acompanhados pela mocinha, filha do sumo-sacerdote, aquela que havia encantado o jovem soldado, que ainda fingia dormir.

Ela aproximou-se da cama e olhou-o bem de perto. Ele sentia o perfume da pele e dos cabelos dela, quase a roçar em suas narinas. Ele não resistiu e abriu os olhos, enquanto ela dava um gritinho nervoso, que chamou a atenção dos dois seguranças. O outro soldado percebeu a deixa e empurrou os dois seguranças contra a parede, com toda a força que conseguiu e gritou:

- Corre!

O rapaz de óculos agarrou a mão da mocinha e saiu correndo pelo corredor, logo atrás do outro, aproveitando-se da confusão deixada, enquanto os seguranças tentavam, sem sucesso, sair do quarto que fora trancado pelo lado de fora.

Os dois jovens soldados correram pelos labirintos que levavam ao andar de baixo, sabendo que tinham que achar, urgentemente, uma saída daquele lugar. Passaram por uma série de corredores até alcançarem um hall, que levava, através de um pórtico, ao lado de fora, onde uma varanda com muros muito altos impedia-os de sair. Voltaram para dentro, correndo.

Ao retornarem, depararam com outro corredor, que levava até uma outra sala, completamente desprovida de móveis, com o piso de mármore puro e muito limpo. No centro daquela, uma enorme árvore erguia-se, imponente, como se fosse senhora do lugar e passando por uma abertura no teto, ainda crescia, como se não tivesse limites, até quase perder-se de vista. Um par de círculos concêntricos estavam pintados no imaculado chão de mármore, como se decorassem, em vermelho (a vida) e dourado (a realeza), o início da vida que ela representava.

Uma grossa liana subia em espiral por toda a extensão do tronco, das raízes até muito acima do teto do edifício.

Ao perceberem que os seguranças aproximavam-se rapidamente, os fugitivos utilizaram-se daquela improvisada escada, para escaparem pela abertura acima deles, mas a mocinha foi alcançada pelos homens do sumo-sacerdote, sem sequer conseguir subir atrás deles…

***

- Não se assustem. Não vos queremos mal. Não é sempre que alguém escapa da grande fortaleza.

Os homens, vestidos de uma forma mais comum, apressavam-se a tirar os dois jovens soldados da água do rio. Tentavam tranquilizá-los, já que um dos rapazes parecia bastante assustado e não demonstrava confiança cega em ninguém. O outro parecia mais aliviado. Deviam ter passado por uns maus bocados na fortaleza, rio acima, com os homens do sumo-sacerdote ou com o próprio…

Os dois foram levados para uma base, no meio da floresta, fortemente protegida e guardada por homens armados. Depois de trocarem as roupas molhadas, em aposentos militares, desprovidos de qualquer luxo, como o anterior, onde eram prisioneiros, os jovens soldados foram apresentados ao comandante, um homem com ar distinto e que os recebeu com um largo sorriso.

- Folgo em saber que dois homens bravos conseguiram escapar da fortaleza e da insanidade daquele homem. Sinceramente, não esperava que fossem tão jovens, mas vejo que estão bem.

- Nós somos soldados de elite, treinados pelo exército…

- Soldados treinados, hein? Não parece-me que sejam mais que dois jovens aventureiros. E como vieram parar aqui neste buraco, no meio do nada, a mercê de um louco como aquele?


Os dois mostraram as plaquetas de identificação do exército que traziam, ainda, penduradas nos pescoços, em correntes de aço e contaram, brevemente o que lhes acontecera.

- Fomos sequestrados, na saída do aeroporto. Estávamos numa viagem de férias.

O comandante ouviu-os com atenção, sem fazer perguntas. Quando terminaram, disse-lhes que descansassem, que ele ia verificar com seus contactos para tirá-los de lá, antes mesmo que os homens do sumo-sacerdote dessem conta que eles estavam naquela base. A presença deles poderia desencadear um conflito entre os dois lados.

- Por favor, entretanto, estejam à vontade, mas não saiam da área do acampamento, por ser mais prudente. Eu vou tentar ser o mais breve possível. 

Ele tomou nota dos números de identificação dos dois soldados e saiu.

O jovem, que perdera os óculos na queda contra o rio, mantinha um ar bastante preocupado. O outro compartilhou a inquietação do amigo, quando os olhos dos dois encontraram-se. Algo parecia estar fora do lugar…

***

Naquela noite, o comandante mandou acender uma fogueira no meio do acampamento e eles tiveram uma refeição ali mesmo, sentados em improvisados assentos de troncos, e mesas feitas de pedaços de madeira cortada a facão. Tudo muito rústico, mas interessante, ao mesmo tempo. Os soldados lembraram-se de quando acampavam juntos, antes de a tragédia acontecer. Os homens contavam histórias sobre o que acontecia por ali, das pessoas que haviam sido mortas e jogadas às feras, das quedas no rio - quase todas fatais - e dos mutilados corpos que iam dar às margens do rio, perto do acampamento. Eles comeram e beberam como se estivessem de férias, com os amigos à volta de uma fogueira, num acampamento de verão.

Pela primeira vez em dias, os rapazes dormiram bem, sem estarem drogados. No dia seguinte, assim que amanheceu, um estranho silêncio colocou os guardas em estado de alerta. Algo não ia bem. Os pássaros costumavam estar sempre em algazarra, assim que o sol nascia, anunciando que a vida continuava normal, não importando o que havia acontecido no dia anterior. Um dos cães, que estava sentado junto ao dormitório, levantou-se e correu para o meio do mato, a latir ferozmente. Os homens seguiram o animal, de armas nas mãos e sem muito pensar. Agiam por puro reflexo.

Um berro, um estranho urro e um curto ganido foi tudo o que conseguiram ouvir, antes do céu vir abaixo, dentro do acampamento. No meio da correria, da confusão e dos tiros, os rapazes perderam-se. Não tinham armas, estavam completamente alheios ao que acontecia, quando uma cabeça apareceu na entrada da tenda e gritou:

- Venham! Depressa!

O comandante pulou num jeep e girou a chave na ignição. Os rapazes mal tiveram tempo de entrar no veículo, que não demorou uma fração de segundo para sair pelo meio do mato, numa trilha mal aberta, em alta velocidade, sem cuidar muito por onde passava. Atrás deles ouviam-se tiros e berros, como se grandes animais estivessem em luta com humanos. Eles não queriam imaginar quem iria vencer aquela estranha batalha.

- Mantenham as cabeças baixas. Vamos sair daqui sem demora. Os homens e as feras do louco invadiram o acampamento. Devem ter sabido que vocês estavam lá.

E pela densa mata o jeep rumava, sem parar, com os três homens mudos e concentrados apenas no que viam pela frente. Só parou, muitos quilómetros à frente, depois de atravessar uma longa trilha e de chegar à uma cidade. O comandante entregou os dois ao quartel-general, deixando-os sob a proteção do exército local. Deu instruções para serem escoltados até o aeroporto e só retornarem quando o avião houvesse partido. Os dois iam embarcar como soldados a serviço do exército, com passaportes arranjados às pressas. O comandante deixou-os, praticamente sem despedir-se e voltou para a base.

***

- Eu nunca mais saio da base militar… para nada! Não adianta tentar convencer-me do contrário. Eu nunca mais saio de lá!

- Não digas isso… Não estás sendo coerente.


Ao passar pelo hall do aeroporto, já em território natal, uma moça de grandes olhos muito azuis, que vinha pelo corredor, fixa o olhar no do rapaz que sentia falta de seus óculos, para poder enxergar melhor… Ele se distrai, tropeça na mala e quase cai. Quando levanta a cabeça, não vê ninguém com aquelas características. O amigo olha-o com uma expressão questionadora, mas ele ficou com vergonha de mencionar o que vira. Ele volta a olhar em todas as direções, à procura da moça, mas em vão. Sacode a cabeça, convencido estar enganado, resmungando para si mesmo.

- Deve ter sido impressão minha…

Por trás de uma banca de venda de comida, dois grandes olhos muito azuis observavam, enquanto os dois soldados dirigiam-se para a saída. Um deles vinha à frente, com o passo firme e pesado, enquanto o outro seguia-o, balançando a cabeça, desconsolado.

Na calçada, do lado de fora do aeroporto, uma van escura vinha chegando, sem ser percebida pelos dois jovens, que já iam a caminhar um tanto longe, na direção oposta.

Um par de soldados entrava naquele momento, ainda vestindo seus uniformes de gala, onde traziam insígnias do exército especial e medalhas de bravura, recentemente agraciadas, ostensivamente reluzindo em seus peitos. Não perceberam que a porta lateral da van abriu-se naquele momento e um homem vestido de negro saiu de lá, mantendo os olhos fixos nos soldados, que dirigiam-se à área de ‘check in’, subindo as escadas em espiral, erguidas no centro do movimentado hall do aeroporto…

***