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domingo, 15 de outubro de 2017

O Décimo-Terceiro (Epílogo)


Uma estrela e dois pequenos planetas podiam ser vistos no céu, pela janela da Sala do Conselho, no Edifício Principal. Um homem sozinho contempla, sério e pensativo, a imensa escuridão, decorada com minúsculos pontículos de luz, brilhando no lado de fora, alheios ao seu pesar.

“Este mundo já está condenado pela mesmice e pela rotina. Vive-se por tempo longo demais, mas não é necessariamente uma existência com prazer. Não há um real objectivo em viver longamente, preservar a espécie, ou até mesmo o planeta. Se houvesse um acidente que destruísse esta civilização, que diferença o universo iria sentir? Qual a diferença que o passado poderia fazer? E se o tal acidente for em algum lugar do passado, antes mesmo da grande destruição? Será que fará mesmo alguma diferença?

Aqui, neste momento, não há nada que possa nos dar qualquer razão para orgulho ou para querermos viver. A existência é vazia. É tudo muito cinza e sem beleza. Não existem sentimentos. Para que manter essa coisa a funcionar?”

***

- Chega de ser mais um experimento. Chega de servir de cobaia para a criação de uma vacina estéril. Eu já não quero ser mudado. É isso que me faz um ser único, no meio desta multidão de iguais.

- Mas a mutação está bastante acelerada. Tuas costas estão cobertas destas manchas negras e brancas, que já se espalham pelo resto do corpo e tuas defesas estão em baixa. Não vais resistir muito tempo.

- É uma opção minha.

- Tu não tens esta opção, pelas regras… Nenhum clone tem… nestas circunstâncias…

- Eu sou David, o Décimo-Terceiro… Se as coisas tivessem sido diferentes, eu seria escolhido para ser o próximo Supremo, por ser mais forte e resistente, ou para viajar pelo Universo. Agora sou apenas uma aberração. É melhor deixar que a vida siga seu curso normal. … e vou viver com isso… enquanto for possível…

- O que pode ser por muito pouco tempo, agora.

- Que seja. A vacina não funciona, de qualquer maneira.

***

- Nós vivemos num complexo de planetas, que gira em torno de uma pequena estrela, que possui luz natural limitada, mas mantém o sistema a funcionar equilibradamente. A órbita do planeta em torno de si mesmo ocorre por um período menos longo que na terra, por razões óbvias. O tempo passou, então, a ter um conceito diferente. Como o dia tem menos horas, a contagem dos anos é, portanto, diferente. O controlo da vida neste sistema de planetas pertence a um grupo de cientistas, que formam uma elite intelectual.

- Por que usam a contagem dos anos como A.D.?

- Porque os fundadores quiseram homenagear a Terra, o planeta de onde vieram, originalmente.

- E para que servem os clones, afinal?

- Este pequeno planeta fica ao centro de um grupo de outros planetóides de menor tamanho, cada qual com sua própria particularidade. O que o faz habitável é a característica única e pouco comum de possuir oxigénio, embora em quantidade muito menor que no planeta Terra. O elemento, vital para vida humana, é tratado, filtrado e usado dentro das estruturas protegidas, que chamamos de Estações. Esta característica não é a única coisa que temos em comum com o nosso distante antecessor da outra galáxia. Um manancial de líquido, com composição semelhante à da água, que corre por rios subterrâneos, é colhido, reprocessado e transformado em água potável e, então, disponibilizada aos habitantes, de forma natural. Mas estamos a enfrentar um novo problema: o manancial é limitado e está escasseando rapidamente. Equipas de pesquisa já foram enviadas em busca de alternativas, pela galáxia, mas até agora, nada real. Estas pequenas equipas, são, na sua maioria, compostas por clones seleccionados e treinados especialmente para isso. Uma unidade robótica avançada acompanha a tripulação de cada nave que parte. No momento, temos umas poucas, porque não conseguimos criar clones em quantidades suficientes.

- A clonagem é, na verdade, uma realidade e é inevitável, sendo praticamente a única forma de reprodução, neste momento. O processo é interrompido, a partir do momento em que verificamos que a resistência do corpo a qualquer tipo de problemas, físicos ou mentais, está praticamente garantida. Depois de aplicada a vacina, deixa-se que algumas características amadureçam sozinhas, formando indivíduos diferentes, dentro dos casulos, como crisálidas, nas incubadoras. Não usamos úteros humanos. Nem todos chegam ao fim do processo e sobrevivem, porque a vacina é bastante agressiva, mas é necessário que assim seja. Quando estão prontos, os mais fortes são seleccionados e reportados ao Supremo, que os inspecciona, juntamente com o Conselho, para mandá-los para o Edifício Principal. O planeta é habitado por uma raça única, que fala uma língua única. Os novos humanos são praticamente desprovidos de pelos, tendo sua caixa craniana aumentado em tamanho e seus corpos diminuído em proporção. Depois de bem treinados, farão parte das equipas seleccionadas pelo Conselho, para explorar a galáxia. Os outros, de uma linhagem mais regular, porém resistente, são enviados para a produção de Oxigénio. A densidade demográfica é mantida sob estrito controlo. Os nossos recursos são limitados, por isso temos que usá-los com eficácia.

- Isso é incrível. E tudo começou com base na minha pesquisa, num passado tão remoto…

O chefe dos cientistas riu, meio sem graça. O homem parecia não ter plena consciência da importância que sua pesquisa teve no desenvolver daquela raça, que representava, de uma forma ou de outra, o futuro da humanidade. Não se podia condená-lo, afinal, levando-se em consideração que mais de vinte e cinco séculos se haviam passado desde então.

- Sim, doutor. Tudo isso com base na sua preciosa pesquisa… num passado remoto e num planeta um bocado diferente deste.

***

- Leona! Preciso que vocês venham até o laboratório imediatamente. Aconteceu uma coisa muito estranha.

- Que coisa?

- Melhor virem ver… eu não sei o que dizer…

Ao chegarem constataram que o laboratório estava vazio, exceto por uma Monarca, pousada na parede.

- Como isso veio parar aqui?

Leona riu.

- Eu não sei, ao certo, mas tenho uma ideia de onde possa ter vindo… Um certo clone… que viajou ao passado e que se encantou com uma revoada de borboletas…

***

- O surto está incontrolável. Os clones perecem muito rapidamente e a linha já não dá conta de produzi-los, para suprir as necessidades, devido ao período de incubação. A continuação da vida está condenada.

- Tive uma ideia. Ainda temos a Monarca connosco?

- Sim. Mas para que serve uma borboleta, agora?

- Foi como o estudo começou. Talvez tenhamos uma hipótese…. Vamos ter que recomeçar o processo todo. Isolamos o ADN e produzimos uma nova vacina. A original não funciona mesmo. Temos que começar do nada. Houve alguma coisa neste meio tempo, que deixou de funcionar e não temos mais tempo para tentar reparar. Temos que fazer tudo novo.

- Deixemos de tentar recuperar o irrecuperável e fazer tudo, do começo, outra vez.

- OK. Mas pode levar muito tempo, até conseguirmos chegar ao ponto em que estávamos, antes do incidente.

- Talvez. Pelo menos saberemos o que fazer…

***

O Supremo olhava para as manchas negras e brancas a cobrir seu corpo magro e pálido. Elas pareciam cobertas de uma densa camada de pelos, muito suaves ao toque. Sentiu uma pontada de dor na cabeça. Sabia que suas defesas estavam comprometidas, por consequência da anomalia e por já não tomar as vacinas.

Ele suspirou e olhou para o céu daquele planeta desolado, tão insignificante, no meio do infindo Universo, tão pouco conhecido, apesar de todas as evoluções, após o Caos Primeiro, e decidiu que estava em tempo de tomar uma decisão radical.

“Não era isso que eu queria. Eles estão muito perto de chegar à uma solução. Se desconfiarem de alguma coisa, vão-se voltar contra mim. Mas nunca vou deixar que eles saibam o que eu fiz. Agora vou ter que dar um jeito, em definitivo, nesta situação, antes que seja tarde demais.”

Programou o computador principal, que comandava todas as unidades, para duas acções. A destruição era absolutamente necessária. Concluiu o comando e sentou-se, relaxadamente, como nunca havia feito, desde que se havia tornado o Supremo.

“Genocídio e suicídio. Fiz bem em sabotar a produção das vacinas, desde que descobri que a anomalia podia ser uma grande oportunidade, para o extermínio desta raça. Isso tudo vai parecer um acidente, mas para quem terei que explicar algo, afinal? Não sobrará nada! Que grande plano!”

Ele fechou os olhos e esperou. Em poucos segundos, o planeta implodia e, em seguida, explodia completamente, numa sequência predeterminada, tonando-se uma imensa nuvem de detritos, já desprovida de qualquer sinal de vida, viajando em alta velocidade pelo espaço, em todas as direcções.

Uma cápsula solitária vagava, à deriva, não muito distante de onde o asteróide existia, poucos momentos antes. Em seu interior, um tubo de metal trazia informações preciosas sobre uma raça de humanóides, que viveu em um pequeno e árido planeta e que deixara de existir. A cápsula é lançada, juntamente com os detritos do planeta destruído, pelo vazio silencioso e escuro do espaço, sendo puxada para dentro de uma fenda no meio do caos, em meio a um clarão e, a seguir, desaparecendo completamente.

***

Numa praia quase deserta, dois rapazes caminhavam lado a lado, cada um com uma lata de cerveja na mão e conversando tranquilamente. Um clarão riscou o céu, vindo da frente deles, chamando-lhes a atenção, especialmente porque o céu parecia limpo, estrelado e sem previsão de chuva. O som de algo grande, caindo no mar, bem atrás de onde vinham, fê-los parar e voltar.

O estranho objecto metálico boiava na água salgada, balançando ao sabor das ondas, ainda fumegando.

Era um dia quente de Verão, no Anno Domini 2018.


***

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Homens do Mar (Epílogo)


A porta destrancada não pareceu bom presságio ao pescador, ainda ressabiado pelo sonho que tivera algumas semanas antes. Ele vestiu o casaco e saiu correndo pela porta afora, num ímpeto desesperado, que nem conseguia distinguir se era protetor ou auto defensivo; um medo de perder ou, ao mesmo tempo, de ficar sozinho...
Quase nem sentia os pés, a pisar, ligeiros, a areia molhada, nem, ao menos, percebia a carga de adrenalina, que circulava veloz em seu corpo, enquanto corria pela praia, sentindo a angústia aumentar, exponencialmente, dentro de si. Em sua mente, só conseguia pensar no pior. E o pior era-lhe mesmo inconcebível, naquele momento.
O dia mal raiara e a brisa fresca, misturada a uma densa névoa, bastante comum naquela época do ano, passavam quase despercebidos pela mente preocupada do homem, cujo olhar, mais atento que seus pés, escrutinava a orla, com extrema e minuciosa atenção. A visibilidade estava comprometida pela pouca luz e pela neblina, mas ele era movido por uma força que o levava a não desistir, enquanto não encontrasse o rapaz.
Mais à frente, viu delinear-se a silhueta conhecida do amigo, sentado sobre o rochedo. Um alívio e uma urgência misturam-se em seu peito e ele correu naquela direção.
- Deste-me um susto enorme, rapaz. Pensei que havia acontecido o pior.
- Eu precisava refletir um pouco sobre tudo o que aconteceu recentemente. Estar aqui dá-me uma sensação de segurança e amplia-me os horizontes. Tento pensar fora da caixa… e não é fácil... Minha vida vai tomar um novo rumo, muito em breve e eu tenho que tomar as decisões mais acertadas.
- Eu percebo. Fomos surpreendidos, não fomos?
- Com certeza. É tudo um pouco fantasioso demais para mim, neste momento e eu tenho que pensar bem no que fazer.
- Sabe? Naquela noite em que tive um sonho estranho, fiquei bastante apreensivo. Sonhei que tentavas cometer suicídio, afogando-te no mar. Não consegui engolir a seco aquela história da testemunha, que viu-te ser assaltado e jogado num carro. Quando vi que a porta estava aberta e não estavas deitado no sofá, só consegui lembrar do meu sonho… ou pesadelo… e pensar que ele tornava-se real. Confesso que tive medo…
- Não tão rápido, amigo... Eu também tive um sonho muito peculiar, naquela mesma noite, como sabes…
O rapaz contou, com detalhes, o sonho que tivera, semanas antes. O pescador achou aquilo bem mais credível que as "evidências" informadas pela Polícia. De uma certa forma, corroborava a presença do homem de fato escuro.
- Será que, de alguma forma, minha memória trouxe de volta aquele facto? Ou foi mesmo muita coincidência?
- Tudo é possível, meu amigo. Tudo é muito possível nessa história. Gostaria que tua memória recuperasse, para acabarmos com este mistério, mas, ao mesmo tempo, tenho receio do que vais lembrar e do que vai acontecer em seguida. Mas tens que ir adiante, não importa o que vais descobrir.
- Não temas. Não vamos deixar de ser amigos, não importa o que eu lembre... Não vou poder desligar minha vida do que aconteceu neste tempo em que estive a conviver nesta ilha. Eu posso ser jovem... bem mais jovem que tu, para dizer a verdade, mas não serei ingrato, nem estúpido.
- Jamais pensaria algo neste sentido. Gosto muito de ti, meu amigo.
O rapaz olhou o homem sentado ao seu lado, no rochedo de frente ao mar e sorriu. Deu uma palmadinha na mão de seu protetor e disse:
- Vamos voltar? Temos muito o que fazer. O mar nos espera...
- Já não precisas ajudar-me nas lides do mar. Sabes disso.
- Mas eu quero… uma vez mais, pelo menos. Amanhã devo voltar ao continente e, a partir de então, não sei o que pode acontecer comigo. Mas é necessário…
***
- Ainda bem que chegaste. Estás pronto? Devemos ir logo...
O homem, vestido de preto e usando uma gravata de seda azul-escura, muito discreta, com um pequeno logotipo impresso, possivelmente da firma onde trabalhava, aparentava estar na casa dos quarenta anos. Era alto e claro, com o corpo de quem passava muitas horas no ginásio, a fazer musculação. Provavelmente também era perito em defesa pessoal ou artes marciais. Não seria surpresa nenhuma que também tivesse uma arma, afinal era o chefe da segurança de uma empresa, cujo filho bastardo do fundador desaparecera misteriosamente, havia já algum tempo, não muito depois de o pai reconhecê-lo como tal.
O Chefe da Segurança havia chegado à ilha, junto com o doutor, no ferry da manhã e, como na semana anterior, viera com um interesse único: levar o rapaz consigo para o continente, para ser submetido a um novo e revolucionário tratamento de recuperação da memória, especialmente criado e desenvolvido para aqueles sujeitos que tiveram-na perdida em estados traumáticos.
Segundo constava, o jovem tinha um Q.I. muito acima da média e uma capacidade sensitiva muito grande, além de um tino excecional para análise de investimentos e imensa habilidade com computadores. Suas aptidões haviam trazido muito lucro aos empresários e investidores. Por essas e outras razões, era interesse da firma investir na recuperação dele e na volta ao mundo dos negócios.
O combinado era o rapaz estar pronto ao fim de uma semana da primeira visita do Segurança.
Ele fora encarregado de identificar o "náufrago", que havia sido reconhecido pelos panfletos que a polícia distribuíra pelo país afora. Trazia documentos e uma série de fotografias, que suportavam a autenticação. Quando o rapaz entrou, acompanhado pelo pescador, ele estava a mostrar as evidências documentais ao médico, que admitia serem muito bem suportadas e incontestáveis.
- Não consigo reconhecer-me nestas fotos. Aquele não sou eu. Ou melhor… já não tem nada a ver comigo. Estive pensando em estudar, formar-me e fazer minha vida. Quero aprender Oceanografia e aprofundar meus conhecimentos de Informática, que parece ser minha expertise. Quero associar os dois campos em uma carreira...
- Deves voltar a trabalhar connosco. Terás tudo o que quiseres, suportado pela firma e pelo teu pai. Ele te espera, ansiosamente. A empresa precisa dos teus serviços... e, o quanto antes, melhor.
- Mas eu não quero voltar à empresa, desta forma... Quero recuperar a memória, sim, mas tenho outros planos. Se a empresa não quiser investir em mim, nestes termos - o que é compreensível - não há problema. Minha vida já não está voltada naquela direção. Eu quero decidir por mim...
- E como vais sustentar esta decisão? Não tens condições financeiras para tal. Nós podemos prover-te de tudo que desejares. Pelo menos até que possas ter o suficiente para suportares uma mudança. Até lá, tens que ter um emprego decente. Não creio que um velho barco de pesca possa ser a tua fonte de sustento. Teu pai jamais te perdoaria...
- Eu não conheço o homem que dizem ser meu pai. Não conheço a empresa. Não conheço nada além do velho barco de pesca... que, afinal, deu-me o que eu tenho agora...  Eu não quero voltar para a vida que eu tinha e da qual nada conheço, nem tenho qualquer lembrança.
- Eu já vi este filme... Antes do teu desaparecimento, já andavas com intenções de deixar a firma. Foi uma decepção muito grande ao teu pai, meu patrão, e um problema para todos nós. Vamos deixar de conversas e vamos embora, antes que o ferry parta e nos deixe aqui.
O homem de preto segurou o braço do rapaz, com firmeza, o que causou uma distinta estranheza aos outros dois homens. O rapaz puxou o braço, com força, libertando-se da mão do outro.
- Não. Se meu pai estivesse, mesmo, preocupado comigo, teria vindo, ele próprio, buscar-me. Não teria mandado um segurança...
O homem ficou lívido. Sabia que tinha uma missão a executar. As consequências do não cumprimento da sua tarefa, ele conhecia muito bem. Adiantou-se, de encontro ao rapaz, que esquivou-se. Ele pôs a mão dentro do paletó e puxou uma pequena pistola, para assombro de todos. 
O rapaz olhou o homem com a arma apontada em sua direção e foi como se um flash passasse pelos seus olhos, trazendo-lhe memórias há muito perdidas.
Ele lembrou-se de estar sendo perseguido pelas ruas da cidade e de esconder-se nas vielas da ribeira. Viu que havia um barco preparando-se para sair do cais, naquele exato momento. Procurou ouvir atentamente os sons próximos de si, para poder tomar uma ação, mesmo tendo que arriscar-se demais. Aquele mesmo homem, vestido de preto, procurava por ele, atentamente e armado com uma pistola, provavelmente, com a intenção única de trazê-lo de volta a qualquer custo e de qualquer forma...
A qualquer custo, ou de qualquer forma, porém, não era sua intenção voltar para qualquer lugar... menos ainda para aquela empresa...
O rapaz manteve os olhos fixos na pistola apontada para si e disse, fingindo uma serenidade que não sentia:
- Agora eu lembro o que aconteceu...
***
- Foi praticamente um milagre minha memória voltar, tão nítida, diante daquela situação de choque. Eu quase paralisei…
- Normalmente, situações em que há uma grande descarga de adrenalina despoletam este tipo de reação. Se ele não tivesse dito que tu não escapavas dele uma segunda vez, apontando aquela arma, daquele jeito, para ti, não teríamos razão para atacá-lo, nem bases para a polícia prendê-lo. Ainda bem que a nossa reação foi rápida, mas ainda tenho a marca da bala que raspou meu braço, quando eu e o doutor corremos e pulamos nele. As más intenções do homem ficaram claras a partir daquele momento.
- Mas podia ter sido muito pior. Vocês podiam ter sido mortos a tiros. Depois que a arma foi tirada da mão dele, foi mais fácil. Ainda lembro das fortes cadeiradas que a matrona deu nas costas do homem, derrubando-o de vez. Arrancar a confissão, depois daquela confusão toda, no meio de um rompante de raiva, quando ele podia negar tudo, se fosse mais esperto, foi sorte nossa... mas estava completamente tomado pela cólera....
- Sim. Tivemos muita sorte. Foi um grande trabalho de equipa. Ele seria capaz de fazer qualquer coisa. Só não contava que tu fosses sobreviver, depois de teres sido golpeado, despido e jogado ao mar. Só não entendi porque ele preferiu bater na tua cabeça e livrar-se do corpo, sem certificar-se que estavas mesmo morto.
- Ele deve ter pensado que a pancada poderia ser mais fácil de explicar, caso o corpo fosse encontrado. Queria que parecesse um infeliz acidente. O toque de mestre foi achar que por estar sem roupas eu seria mais difícil de ser identificado… e tinha certa razão, afinal...
- Felizmente tudo terminou bem, principalmente porque eu te achei na praia, no momento certo. Jamais hesitaria em defender-te de quaisquer perigos que aparecessem. Eu faria tudo outra vez, se precisasse. Podes ter certeza disso.
- Sabes o que penso? Tu és como a chuva: às vezes cai e refresca; às vezes, simplesmente, inunda. Tu és um homem bom. Não me interessa o que fizeste no passado ou o que o teu passado fez contigo. Já viveste teu inferno particular. Tua dívida já foi paga e não tem nada a ver comigo. Não me conhecias e fizeste o impossível para ajudar-me, mesmo sem saber quem eu era. Não tinhas obrigação nenhuma e foste meu melhor mentor e protetor. Foste a única pessoa que realmente importou-se comigo, sem jamais pensar em segundas intenções. Seguiste tão-somente o teu coração e eu sou-te muito grato pelo que fizeste. Minha dívida contigo é eterna.
- Bobagem. Não me deves nada!
O rapaz abraçou o velho mentor e amigo, com verdadeiro afeto e gratidão e falou-lhe, ao ouvido.
- Devo, sim. Devo-te a minha vida!
Por alguma razão inexplicável, aquele abraço causou-lhe um efeito muito peculiar. Sentiu-se leve e cheio de vida, com o coração a pulsar de emoção, como há muito não acontecia...
- Eu já não lembrava que era capaz de sentir este tipo de emoções. Nem sabia que era possível, ainda, sentir, além das minhas necessidades mais básicas, alguma emoção deste género...
- Tu pensas demais. Parece que tens medo de demonstrar sentimentos, como se fosse um sinal de fraqueza. Eu posso ser jovem, ainda, mas posso garantir que só os fortes vivem, verdadeiramente, os seus sentimentos… e não têm vergonha, nem medo disso.
***
Alguns meses depois, o homem do mar recebeu, pelo correio, dois envelopes.
No menor havia uma carta simples, vindo de longe, escrita em uma caligrafia que ele reconheceu logo. As notícias eram confortantes. O rapaz havia conseguido uma bolsa de estudos, depois de algumas tentativas, no curso de Oceanografia. O dinheiro que usara no início, para poder sustentar-se, enquanto fazia os testes de admissão, havia sido muito bem empregado e a carta trazia a promessa da devolução do mesmo ao seu mentor e amigo, num prazo razoável.
O homem sorriu. Havia investido, com o coração, na certeza do sucesso de seu jovem amigo e sentia que já obtivera os lucros de seu empreendimento. Não estava preocupado com o seu dinheiro, na realidade, mas com o progresso que seu protegido vinha alcançando desde que voltara à cidade. A vida havia sido, finalmente, boa para o rapaz, em resposta aos seus esforços e às suas capacidades. 
Ele colocou a carta de lado, ainda sorrindo e direcionou sua atenção ao envelope pardo, maior que o outro, onde havia um logotipo conhecido, impresso no canto esquerdo. Vinha de uma firma conhecida na cidade, cujo nome trazia-lhe algumas lembranças.
Dentro daquele, havia uma mensagem e um relatório de uma firma de advocacia da cidade. Pelo que constava, um inquérito havia sido aberto, para investigar o acidente/incidente da cirurgia da mulher e sua consequente morte, durante o procedimento. Uma nota, no rodapé, revelava a razão da reabertura do processo investigatório. Haviam motivos para crer-se que a morte não fora uma simples e infeliz contingência, visto que algumas testemunhas haviam-no ouvido a discutir com a esposa, no restaurante, durante o jantar, na noite do acidente, a respeito da infidelidade dela. Aparentemente o médico havia saído do local, bastante alterado, emocionalmente. Apesar de já haver cumprido pena por homicídio culposo, ele ainda podia ser condenado, se fosse confirmado o dolo.
O homem pousou o documento na mesa. Uma tristeza profunda comprimiu-lhe o peito, como se fosse uma camisa de força, amarrada com eficaz crueldade, tolhendo-lhe os movimentos da alma. A ventania e a chuva fina a cair lá fora, naquele dia tão cinzento e quase friorento demais, só aumentaram sua melancolia e trouxeram vívidas lembranças, adormecidas há bastante tempo. Duas lágrimas quentes escorreram-lhe pela face fria e caíram sobre o papel timbrado que jazia sobre a mesa, com notícias tão pouco bem-vindas.
***
Um homem de meia-idade caminhava pela praia, completamente absorto em seus pensamentos. Aqueles fantasmas, que estavam muito bem escondidos, resolviam, vez em quando, manifestar-se e atormentá-lo. Havia dias em que sentia-se mais só que nos outros e aquele era, definitivamente, um deles. Sentia-se triste e uma sensação de vazio parecia aumentar dentro de si. Naquele momento, ele era, apenas, uma carga emocional de lembranças, que faziam-no sentimental e um tanto fragilizado, a ponto de render-se ao choro, mas forte o suficiente para querer manter-se vivo. 
As circunstâncias colocam pessoas e situações em nossos caminhos, para testar-nos, às vezes, ou para chacoalhar nossos equilíbrios e tirar-nos de nossas zonas de conforto. O Universo tem seus próprios meios e seus planos, que a própria vida desconhece. A beleza do viver está, exatamente, nas surpresas e na imprevisibilidade do que nos acontece dia após dia. O pescador sabia que a vida nos põe à prova, todo o tempo, testando nossos limites. É a forma de tornar-nos mais fortes e tolerantes, aumentando nossa resistência às circunstâncias. Viver é, verdadeiramente, uma prova constante de adaptação e resistência. A parte boa é que, muitas vezes, no percorrer do longo caminho, encontra-se pessoas, animais, momentos e ocasiões que, real e efetivamente valem toda a pena.

O vento de outono soprava, ainda ameno, contra seu corpo e seu rosto arredondado, emoldurado pela barba castanho-avermelhada, desalinhando mais ainda os cabelos castanho-claros, que já rareavam no topo da cabeça. Apesar de não estar frio, ele sentia que o inverno estava próximo. Olhou o mar e sentiu o ímpeto de deixar-se levar por um convite silencioso. Despiu-se e entrou na água fria, sem pensar muito. A baixa temperatura da água fê-lo sentir-se mais vivo que há muito tempo atrás. Olhou para o horizonte, deu mais uns passos e mergulhou, sentindo a água fresca a envolver-lhe, completamente, o corpo nu…

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Homens do Mar (Parte 3)


Deitado, em silêncio, no sofá da sala e a olhar, fixamente, para um ponto inexistente no teto, o rapaz tentava organizar os pensamentos, depois de tudo o que já vira, ouvira e, obviamente, lera. Apesar da quietude da noite, sua cabeça estava a trabalhar ruidosamente, como os dentes de engrenagens secas e enferrujadas, a ranger uns contra os outros, num campo fértil em ideias conflituantes. Era bastante tarde, mas ele não conseguia dormir, por mais que tentasse.
Segundo constava no relatório da Polícia, uma testemunha vira-o ser assaltado, espancado e jogado dentro de um carro, que arrancou em alta velocidade, a muitas centenas de quilômetros dali. O que acontecera depois era, ainda, uma incógnita.
Ele tentava lembrar de algo, mas aquele relatório e aquela informação, nele contida, não batia muito dentro de sua mente, fazendo com que tudo parecesse muito surreal, para ser verdade. Apesar de estar com o pensamento assim, tão inquieto e de tentar resgatar qualquer coisa que pudesse, de sua memória de longo prazo, entretanto, tudo o que ele conseguia era imaginar alternativas… possibilidades, apenas… do que acontecera, mas sem quaisquer fundamentos. O fino e frágil fio da memória havia-se rompido em algum ponto e, inexplicavelmente, ele não conseguia encontrar as partes, para juntá-las novamente.
Na verdade, ele nem sabia quem era. Podia ser tanta coisa… tanto boa, quanto má. Podia ter sido uma vítima ou ter tido muito azar. Podia ter entrado em confronto com alguém mais forte que ele. Podia ter sido, realmente, atacado por assaltantes. Podia não ser nada daquilo, por mais bizarro que pudesse ser…
O cansaço e o esforço infrutífero fizeram-no, finalmente, adormecer e sonhar…
***
No único quarto da pequena e modesta habitação, construída à beira da praia, o pescador rolava de um lado para o outro em sua simples e antiga cama de madeira escura e resistente, sem conseguir pregar sono. Sua mente também estava perturbada, especialmente depois da conversa mais informal, que tiveram com o doutor. A investigação continuava, baseada no relatório emitido pela Polícia, mas ele tinha um pressentimento de que algo não estava certo. Como padrão, não costumava confiar na sua intuição, mas daquela vez, sentia algo muito forte e não podia deixar de ouvir aquela voz na sua cabeça, a dizer para vasculhar os factos mais a fundo e não confiar piamente em tudo que lera.
Claro que um testemunho era melhor que nada, mas ele preferia contar com o que seu hóspede conseguisse lembrar, em seu próprio tempo, para certificar-se que não estavam enganados. Aquela situação estava cada vez mais angustiante.
Ele havia desenvolvido uma grande afeição pelo rapaz e, descobrir a verdade, bem como recobrar sua memória, de uma vez por todas, tornaram-se suas prioridades. Ele sentia que o mais provável que acontecesse, assim que estivesse recuperado, era que o outro voltasse a viver sua própria vida e deixasse a ilha, talvez para sempre e, aquela quase certeza, também, o afligia. 
Mas, ele tinha que pensar com a razão e não com o coração. Por mais tolo que pudesse parecer, porém, avaliar com o coração era exatamente o que ele vinha fazendo, ultimamente, cada vez que ficava sozinho, com seus próprios pensamentos. De esquivo pescador com, somente, a quase impercetível companhia de seu velho e silencioso amigo felino, ele agora tinha um bem-vindo parceiro, tanto para conversar, quanto para ajudá-lo no trabalho e aquilo parecia divertir a ambos. Embora gostasse da assistência do rapaz, não podia ser egoísta e pensar no que ele gostava ou queria para si, somente. Sentia que ia perder seu camarada, mais cedo ou mais tarde, assim que as coisas voltassem ao seu normal. Mas não podia deixar de desejar que mantivessem a amizade, pelo menos por algum tempo.
Como tudo na vida, a distância iria, invariavelmente, arrefecer aquela relação e os afastar, aos poucos, até que seus contactos desaparecessem de vez. Admitia que iria sentir muita falta do rapaz. Aquele devia ter sua vida e, talvez, uma namorada, uma família e possivelmente, até, um cão ou dois.
Ele, por sua vez, tinha somente seu casebre, seu gato e seu velho barco de pesca... e, absolutamente, nenhuma outra vida para a qual pudesse voltar. Decidira seu destino e tinha que viver com aquilo. Aprendera a viver com muito pouco e de mais não necessitava. Vivia apenas um dia após o outro, sem pensar em um futuro muito longínquo.
Se aquela vidinha era-lhe suficiente, ele já não tinha mais tanta certeza. Sabia somente que, até conhecer o inquilino, que dormia profundamente no sofá da sala, ele havia abdicado de muitas ambições e que não almejava muito mais que aquilo que presentemente possuía.
Agora queria saber mais do outro, vê-lo vencer na vida, testemunhar seu sucesso e, talvez, conhecer sua namorada, vê-lo casar e ter filhos de cabelos rebeldes como do pai. Talvez até pudesse participar de alguma atividade com eles, como um caro e bem-vindo amigo…
Que bobagem! Ele era apenas um velho casca grossa e sem nenhuma relação com o rapaz. Não adiantava iludir-se e achar que poderia ter, no futuro, alguma parte na vida dele.
Havia mudado tanto assim naqueles últimos dias? Um incidente daqueles não devia mexer tanto com sua rotina e sua vida. Era melhor enfrentar a dura realidade: ele iria, em breve, voltar a ser aquele homem solitário, carrancudo e distante, com tão poucas expectativas em relação ao seu próprio futuro.
O homem escarneceu de si mesmo. Estava ficando velho e piegas. Aquele coração ressecado e endurecido não deveria ter-se deixado amolecer tanto, em tão poucas semanas Esteve tão acostumado com sua velha amiga solidão, que esquecera os prazeres de uma boa companhia. Agora, sentia - ou melhor, ressentia – ter que voltar a ficar sozinho, quando a presença do outro, embora tão recente em sua rotina, trouxera mais cor à sua própria existência…
Sentiu-se triste, de repente. Estava cansado de pensar. Na verdade, estava cansado de muita coisa… Fechou os olhos, que começavam a ficar, por aquilo que considerava uma tola razão, tão húmidos quanto as delicadas pétalas das flores, que amanhecem róscidas de orvalho, nas manhãs de outono. Adormeceu… e logo começou a sonhar…
***
- A água está tão boa… Vem ter comigo. 
- Tu és louco! Está frio!
- Não está nada frio. Está bom… Vem.
 O rapaz nadava, tranquilamente, à volta do barco, divertindo-se a desafiar a namorada a mergulhar e nadar com ele, naquele imenso e quieto oceano. Embora o sol estivesse alto, sabia que a temperatura da água estava fresca demais para ela. Para ele, entretanto, estava perfeita. Ela não caiu na conversa dele. Apenas acenou-lhe, jogou-lhe um colchão insuflável e os óculos de sol e deitou-se sobre uma toalha, no convés, a tomar sol. Ele aproveitou e deitou-se no colchão, que flutuava serenamente, entre a intensidade do azul quase cobalto do céu e do verde-esmeralda do oceano, deixando-se levar pelo agradável balanço das ondas e com o pensamento a vagar muito longe dali. Sentiu um peso nas pálpebras e fechou os olhos, adormecendo logo em seguida.
De repente, aquele balanço confortável de seu sono pareceu mudar para um estado mais agitado e violento. O rapaz virou-se, involuntariamente, perdeu o equilíbrio e caiu ao mar. O choque com a água fez com que acordasse totalmente e em estado de confusão total. Ele sentiu que afundava na água fria e salgada do oceano e que seu fôlego fugia-lhe rapidamente. Tentou bater os braços e nadar, mas o movimento das ondas era muito violento. Ele engolia água e sentia-se enfraquecer. Uma dor na parte de trás da cabeça causava-lhe desconforto e ao passar os dedos, viu que estava a sangrar. Ele tentou manter-se na superfície, mas o esforço era muito grande. Sabia que se ficasse com o rosto na água, ia afogar-se, por isso tentou ficar de costas. A água fria ajudaria a aliviar a dor na cabeça. Ele fechou os olhos e deixou-se levar por uns minutos, esforçando-se por boiar, mas as ondas eram cruéis. Uma delas passou por cima dele e, engolindo água, sentiu-se afundar. Ele debateu-se, mas parecia em vão. Seus pulmões estavam inundados, seu corpo cansado e ele sentiu que as forças faltavam-lhe. Aceitou, finalmente, seu destino e deixou-se submergir, lentamente…
Pensou, enquanto afundava, que era muito jovem para morrer… O ar faltou-lhe de vez. Era a morte a envolver-lhe, num frio abraço, com mais afeição que ele esperava. O rapaz ainda pensou, antes de deixar-se desfalecer, que a ideia que tinha de morte era de uma agonia muito maior que aquela…
Um clarão acendeu-se por cima dele, num repente, fazendo-o crer que a lenda popular de que havia uma luz, que todos falavam e que ele nunca acreditou, quando se passa da vida para a morte, era mesmo verdadeira. Aquela luz, tão intensa e muito forte, bateu, em cheio, sobre seus olhos. Naquele momento, ele sentiu uma paz enorme e confortavelmente morna...
Abriu os olhos e viu, entre os raios de sol que entravam pela janela da sala, a familiar silhueta do gato malhado, sentado tranquilamente sobre o descanso da esquadria de madeira pintada de um já-fora-verde-musgo-algum-dia e que agora estava muito desbotada. O animalzinho olhava para fora, aproveitando o sol da manhã, que começava a elevar-se horizonte acima, num azul muito limpo e intenso, como somente o céu de inverno podia ser. Aquele ia ser um dia bonito, afinal… e, também, bastante frio.
O rapaz percebeu que havia tido, apenas, um sonho bastante vívido e pormenorizado, afinal. Sorriu, levantou-se, vestiu-se rapidamente e foi para a cozinha, seguido pelo gato, que esfregava-se em suas pernas, quase fazendo-o perder o equilíbrio, na sua faina de ganhar algum afago ou comida.
***
O homem levantou-se, como de costume e ao passar pela sala, não viu o rapaz deitado no sofá. Estranhou que a porta da varanda estivesse destrancada. Intrigado, vestiu um casaco e saiu. O rapaz estava a alguns metros da margem, caminhando lentamente, cada vez mais para dentro do mar. Ele ficou a observar, por uns instantes, o que acontecia. Apesar da temperatura da água, ele avançava, como se fosse alto verão. Não olhava para trás, nem hesitava. Parecia determinado a algo, que o outro não percebeu, a princípio. Prosseguiu, até onde a água batia-lhe, à altura do peito, deu mais alguns passos e submergiu, em silêncio.
Uma má sensação percorreu a espinha do pescador. O instinto gritou-lhe, mais alto que a razão, dentro de si. Ele livrou-se do casaco, tirou a camisa e os calçados e atirou-se ao mar. A adrenalina, que corria-lhe intensamente pelo corpo, não permitia que sentisse o frio a enrijecer-lhe os músculos. Sem conseguir avistar o rapaz, mergulhou, à procura do corpo, nas águas geladas do oceano. Viu uma sombra à frente, parecendo ser o corpo a afundar e nadou naquela direção, emergindo para tomar fôlego e mergulhando novamente, de modo a resgatar seu protegido.
O homem não pensava; apenas agia, movido pelo desespero e pelo medo de perder o amigo, para um inimigo cujas armas desconhecia completamente. Ele aproximou-se e tentou alcançar os braços do outro, que estavam esticados para cima, já sem movimento algum. Ele fechou os dedos à volta dos pulsos do outro e puxou-o para cima, com energia, para que emergisse, facilitando o resgate e permitindo-lhe, também, encher os pulmões de ar. Ainda deu um impulso no corpo, enquanto via-o subir, antes de alcançar a superfície da água.
Ao emergir, passou o braço à volta do peito do rapaz, que estava inconsciente, mantendo a boca e o nariz acima da linha da água. Ele aprumou-se e começou a nadar, arrastando-o para a praia, quase sem dificuldade e deitando-o, de costas, na areia, iniciando a massagem cardíaca, logo em seguida, na tentativa desesperada de trazê-lo de volta à vida.
- Por que fizeste isso? Onde é que estavas com a cabeça?
O homem não compreendia a atitude descabeçada do rapaz... E agora não conseguia fazê-lo respirar e despertar do estado inconsciente. Segurou-lhe o nariz, abriu-lhe a boca e soprou ar para dentro, voltando a massajar o peito do rapaz.
- Vamos lá! Vamos lá! Acorda, por favor!
Repetiu o procedimento, desta vez, soprando com mais força. Ao apertar-lhe o peito, com as duas mãos, percebeu uma espécie de convulsão e o rapaz tossiu, expelindo a água que havia engolido. O homem sacudiu-o e viu que ele abriu os olhos, confuso, como se não soubesse o que acabara de acontecer.
O pescador levantou-o, abraçando-o e, sem dizer nada, simplesmente chorou, sentindo um misto de alívio e alegria.  Um pouco abaixo da linha do peito, uma estranha pontada de dor sinalizou que algo estava errado.
Fechou os olhos e afrouxou o abraço, sentindo-se cair, numa espécie de desmaio. O esforço que fizera, até aquele momento, talvez houvesse sido demasiado para ele. A pontada ficou mais perfurante e pareceu mover-se com uma pressão a subir-lhe o peito.
Uma sensação fria na ponta do nariz e um leve e contínuo ronco, fê-lo abrir os olhos e deparar com o gato a mirar-lhe nos olhos e pressionar-lhe uma unha na altura do peito. Deu uma risada e levantou-se, percebendo que havia tido um sonho absolutamente invulgar.
***
 - Tive um sonho muito estranho e detalhado.
- Por isso estás levantado tão cedo?
- Já não é tão cedo assim. É quase hora de sairmos para o mar. Já preparei o café…
- Também tive um sonho pouco comum. Acho que ficamos impressionados pelo relatório que o médico nos trouxe…
- Provavelmente…
- Queres falar sobre isso?
- Não. Não, ainda…
***
Quando voltaram da lida matutina, numa ensolarada quinta-feira, algumas semanas depois, notaram um movimento diferente na rotina do cais. Havia um burburinho maior que nos dias normais. A matrona vinha pelo madeirame, com seus passos pesados e sua face rosada, castigada pelo sol e vento do inverno. Ao aproximar-se dos dois, disse-lhes, meio ofegante:
- Ainda bem que chegaram. O doutor quer vê-los imediatamente.
- Aconteceu alguma coisa?
- O doutor disse para trazê-los com urgência. Não me perguntem mais do que eu sei…
Mas eles já a conheciam e perceberam que ela evitava olhar-lhes diretamente. Escondia algo, com certeza, mas havia sido instruída para não dizer-lhes nada, além do necessário. Os dois homens trocaram olhares preocupados e apressaram o passo, atrás da esbaforida mulher, na direção do consultório, no pequeno Posto de Saúde da ilhota.
Quando chegaram, foram recebidos pelo médico, que estava acompanhado de um desconhecido, vestido de maneira muito formal para a rotina insular. O visitante cumprimentou-os com um firme aperto de mãos e, concentrando sua atenção no rapaz, perguntou-lhe:
- Sabes quem eu sou?
- Não. Não sei. Deveria?
O homem sorriu, de uma maneira estranha. O rapaz e o pescador tentaram esconder a preocupação que passou-lhes pelas faces, quando entreolharam-se.
O estranho limpou a garganta, com um típico ‘hahn-hahn’ e começou a falar…

 ***

sábado, 18 de julho de 2015

Homens do Mar (Parte 2)


- Estás bem? Sentes alguma dor?
O cenho franzido e o olhar vazio mostravam evidências que o rapaz estava bastante confuso e fazendo um enorme esforço para perceber o que se passava, naquele momento, no pequeno quarto de hospital, rodeado por pessoas, vestidas de branco e que ele desconhecia totalmente.
Havia, também, um homem mais maduro, vestido com roupas mais normais, a observar a cena toda, com olhos muito atentos, mas sem proferir nenhuma palavra. Tinha o rosto arredondado e amigável, barba castanho-avermelhada e os cabelos castanho-claros rareavam no topo da cabeça. Por alguma razão, que ele não conseguia explicar, sentiu uma simpatia imediata por aquele homem encostado contra a parede imaculadamente branca do quarto de hospital.
O médico acabara de testar todos os seus sinais vitais, auscultara-o e, agora, examinava-o com uma pequena lanterna. Já haviam feito todos os possíveis exames, incluindo raios X e ultrassons, para verificar a saúde dos órgãos. Fisicamente, o jovem estava bem. Restava-lhes saber se a batida na cabeça trouxera algum efeito colateral à sua capacidade mental e resposta cognitiva.
- Consegues compreender o que eu digo? Lembras de alguma coisa? Qualquer coisa: teu nome, de onde vens, quem tu és…
O rapaz não exibia qualquer alteração naquela expressão distante. Talvez estivesse, mesmo, fazendo uma tentativa descomunal para ajustar o cérebro e compreender a mensagem, expressa pelas palavras do médico, que acabara de examiná-lo, completamente e que insistia em saber qualquer coisa a seu respeito.
- Compreendes o que eu digo?
- Eu percebo as palavras, mas é tudo tão confuso…
A pressão, que era colocada nele, com aquelas perguntas, não parecia ajudar. Era melhor deixar o rapaz descansar um pouco. O médico chamou o homem mais velho para fora do quarto, com um sinal de cabeça.
***
- Foste encontrado por mim, na praia. Estavas completamente nu e com um ferimento bastante feio na cabeça. Já esperávamos que a memória fosse afetada por uma concussão. Consegues compreender bem o que eu digo?
O rapaz acenou que sim, com a cabeça.
- Por mais que eu tente, não consigo trazer nada à memória. A minha mente é só um branco completo...
O ferry seguia, em direção à ilha, em sua velocidade de cruzeiro, trazendo, junto consigo, aqueles dois homens tão diferentes, sentados lado a lado, cada qual com sua própria história e com seus complexos passados. Em cada cabeça, uma intenção diferente: tentar resgatar o que estava esquecido e tentar esquecer o que nunca deixava de ser relembrado…
***
O pescador havia sentido que tinha certa responsabilidade sobre o rapaz, por havê-lo encontrado e, em comum acordo com a administração do hospital, decidira trazê-lo consigo à ilha, para tentar ajudá-lo a recuperar a memória perdida.
Caminhavam pela praia, indo na direção do local onde fora encontrado, pelo pescador, depois da noite de tempestade. O rapaz diminuiu o passo e olhou para o homem, como se o conhecesse bem e disse:
- Por que te escondes nesta ilha, longe de tudo e de todos e nesta profissão que não é a tua?
- E como sabes disso?
- Não sei explicar. Apenas sinto. E também sinto que há muito mais a dizer, mas evitas…
- Não evito nada…
O homem mais velho franziu o cenho e evitou olhar diretamente para o jovem, que caminhava ao seu lado. Pensou consigo mesmo que não tinha que dar nenhuma satisfação ao outro, mas uma sensação estranha de que podia confiar no rapaz e abrir-se, passou por sua mente.
Mexer com o passado, depois de tanto tempo, não parecia-lhe uma boa coisa, entretanto. Alguns cadáveres não precisavam ser exumados. Melhor deixar seu passado onde ele ficava melhor: lá atrás e bem longe, nos tempos mais pretéritos possíveis. Quanto mais distante e intocado, melhor…
O rapaz voltou a olhar o homem, com atenção e sorriu, mais para si do que para ser percebido, ante aquela resposta, disparada, quase impacientemente e sem contato visual.
- Eu tenho que respeitar-te, não somente pelo que fazes por mim, mas por quereres manter teus segredos bem guardados. Se é assim que preferes, não há o que se possa dizer. Espero que saibas o que fazes.
- E sei… É este o lugar. Foi aqui que te encontrei. Queres ficar sozinho?
O rapaz olhou à volta. Embora constatasse que o lugar era calmo e de uma beleza natural praticamente intocada e quase selvagem, trazendo-lhe uma sensação de tranquilidade, não evocava-lhe nenhuma lembrança.
- Não sei. Este lugar não me diz nada. O facto de haver sido encontrado aqui, não significa que o acidente… ou incidente… tenha ocorrido aqui por perto, de qualquer jeito.
Ele tinha razão. Tanta coisa poderia ter acontecido: um acidente, um assalto, uma infeliz coincidência... O lugar poderia não ter relação nenhuma com o que realmente havia acontecido.
O homem olhou para o rapaz. Ele não parecia preocupado em descobrir de onde viera, para onde iria, quem havia sido, ou o que poderia vir a descobrir, quando recuperasse a memória. Aparentemente, a única coisa que importava, a ele, era estar vivo. Um passado do qual lembrar, era um peso desnecessário, que ele não carregava consigo. Aquilo parecia ser suficiente para um homem que tão pouco sabia sobre si mesmo.
Que sensação estranha! Ele fez uma viagem rápida dentro de si e pensou em como eram tão diferentes. Não ter um passado parecia ser bem mais fácil que esforçar-se para esconder-se do seu...
Estavam os dois de pé, lado a lado, a olhar o horizonte, cada qual absorto em seus próprios pensamentos... Tão próximos e tão distantes, ao mesmo tempo. O rapaz fechou os olhos e sentiu o vento a mexer com seus cabelos claros, a tocar sua pálida pele, a trazer os aromas agradáveis do salitre e das algas e a encher-lhe de vida.
Vida. Que conceito estranhamente forte e frágil, ao mesmo tempo. Era uma realidade, ou uma ilusão que nós sempre carregamos? Quão imprevisível pode ser o viver? Quão despropositado é manter-se fisicamente sadio e mentalmente são? Por que aqueles pensamentos enchiam-lhe a cabeça, como o ar enchia-lhe o peito? Por que ele sentia-se bem naquele lugar, sabendo que nada ali era-lhe caro? Por que tantas perguntas e nenhuma resposta? Ele suspirou, inspirando o ar do oceano, naquele lugar que passara a ser seu tudo: seu presente e seu futuro… e, talvez, seu único refúgio, até aquele momento…
- Vamos voltar? Estou com fome. Vou preparar alguma coisa para comermos. Se quiseres ficar mais um pouco, é contigo...
- Eu gostaria de ficar só um pouco mais, se não for incômodo... Gosto desta paz e desta sensação de silêncio na alma.
- Não é problema, claro. Até já.
***
O homem mais velho levantou-se e retirou os pratos da mesa. Haviam jantado, sem trocarem muitas palavras. Apreciavam a companhia um do outro, mas eram, ambos, económicos nas conversas, já que os assuntos ainda tenderiam a girar numa esfera muito restrita de assuntos, que eram evitados, na sua maioria, pelos dois.
O rapaz recolheu o restante da louça e os talheres e pousou-os na pia, com cuidado. Virou-se, caminhou até a porta que dava para a varanda e saiu, debruçando-se sobre o pequeno parapeito, a olhar o vazio da escuridão, ouvindo, não muito longe, a cantiga suave e monótona do mar. O ar estava um tanto frio, mas ele não se importava. Gostava do frio quase ameno do outono e dos sons típicos da noite da ilha.
O outro homem ficou a observar, de dentro da casa, aquele indivíduo tão mais jovem que ele, com tanta vida ainda pela frente e nenhuma memória a reviver. Pelo menos, pensou, não havia como sentir qualquer tipo de nostalgia…
Quantos planos deveriam ter sido feitos em algum ponto de sua curta vida e, agora, estavam abandonados, sem conclusão? Quantas possibilidades ainda iriam abrir-se, para ele, no futuro? Provavelmente, muitas delas viriam a ser encaradas como se nunca houvessem sido planejadas, mesmo já havendo sido... Uma página… ou muitas, todas ainda em branco e com tanto ainda a ser escrito pelas mãos do destino. Era como se as páginas anteriores houvessem sido estranhamente arrancadas daquele livro, deixando-o como novo e pronto a ser reusado. Só restava-lhe recomeçar daquele ponto e reescrever novas histórias...
O pescador pensou em si mesmo e como gostaria de poder ter uma oportunidade, também, de reescrever sua vida. Riu de si mesmo, ao pensar que ali, na mesma casa, estavam dois seres tão opostos e com objetivos tão díspares, em relação ao passado e, mesmo assim, com tanto futuro pela frente.
Entrou na varanda com uma caneca de café quente nas mãos e ofereceu ao outro, que aceitou, sorrindo. Debruçou-se no parapeito, ao lado do rapaz. Ficaram os dois a olhar para a grande escuridão aberta à frente deles, a ouvir o monótono marulhar do oceano a acariciar a ilha, cada qual a deixar seus próprios pensamentos voarem com o vento da noite.
- Tu já pagaste pelo teu erro. Já podias ter-te perdoado e tocado a vida adiante.
- Como podes saber se já paguei? Como podes dizer-me para levar a vida adiante? Já não estou vivendo uma outra vida?
- Não é o que os teus olhos dizem... Eles tem sempre um distanciamento tão grande e uma tristeza tão tocante...
O homem fechou-se, em sua casca. Não queria reviver sua angústia e seu sentimento de culpa. Sim, ele já havia pago a sua dolorosa pena.
Uma cirurgia, em que a paciente não sobrevivera à intervenção, era motivo grave suficiente, para ficar vivo na memória, por muito tempo. Sim, ele havia operado embriagado, mas que outra opção tivera? De todas as formas, fora julgado e condenado. O veredito fora homicídio culposo, com pena de prisão por três anos. O crime foi considerado inafiançável, devido ao grau de negligência e culminara com a perda da licença e do direito de exercer a profissão de médico, definitivamente. A sentença havia sido devidamente cumprida, na sua totalidade, apesar das tentativas de redução, feitas por um advogado caro e conhecido pela sua competência.
Entre sentimentos de culpa e uma indignação muito grande, ele havia enterrado tudo e recomeçado, naquela ilha, longe de todos aqueles com os quais conviveu e que o abandonaram, completamente, enquanto cumpria a pena na penitenciária. Ali, era um completo desconhecido e seu passado não interessava a ninguém. O que ele gostava, naquela comunidade, era que podia ter sua vida e ninguém parecia interessado em saber mais que ele quisesse mostrar ou, de alguma forma, julgá-lo. Ele também não tinha interesse em saber das vidas dos outros. Não tinha tempo, nem vontade para aquilo.
Mas, ao rapaz sem passado, ele alimentava um genuíno interesse. Sentia que devia ajudar aquela criatura a encontrar-se e tocar sua vida adiante, também. Por algum motivo, ele sentia-se responsável pelo rapaz, pelo menos até que recuperasse a memória.
***
 O médico veio, como habitualmente, numa pálida quinta-feira e chamou os dois ao consultório. Examinou o rapaz, rotineiramente, perguntou como se sentia e pediu para sentar-se. Pela forma como começou a conversa, parecia que ia fazer uma declaração séria. Pegou um envelope pardo de dentro da maleta, pigarreou e disse:
- Recebemos um relatório da Polícia. Acredito que vocês vão achar interessante…
Entregou o envelope ao rapaz e esperou, para ver sua reação. O rapaz abriu, leu e entregou ao pescador, para que o lesse também. O médico reconheceu naquele ato, uma prova de confiança. O homem folheou as poucas páginas e devolveu o relatório ao seu legítimo dono.
- Faz sentido. Achas que ajuda?
- Não sei, ainda. Por enquanto, não há nada que eu possa dizer. Não é tão fácil ler isto e achar que minha memória é logo restituída. Parece que não funciona assim, afinal, por mais que me esforce para tal.
O médico terminou a consulta e dispensou a si mesmo do trabalho, já que não havia mais ninguém a ser atendido naquele dia. Convidou os dois a acompanharem-no até o Café, para conversarem um pouco mais relaxadamente. O médico sabia que as cabeças dos dois… e a dele também… estavam a trabalhar ferventemente. 

O café era, na verdade e apenas, um pretexto subtil para discutirem o que haviam acabado de ler e, além do mais, ele ainda tinha algum tempo, antes de voltar para o continente.

***