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sábado, 18 de julho de 2015

Homens do Mar (Parte 2)


- Estás bem? Sentes alguma dor?
O cenho franzido e o olhar vazio mostravam evidências que o rapaz estava bastante confuso e fazendo um enorme esforço para perceber o que se passava, naquele momento, no pequeno quarto de hospital, rodeado por pessoas, vestidas de branco e que ele desconhecia totalmente.
Havia, também, um homem mais maduro, vestido com roupas mais normais, a observar a cena toda, com olhos muito atentos, mas sem proferir nenhuma palavra. Tinha o rosto arredondado e amigável, barba castanho-avermelhada e os cabelos castanho-claros rareavam no topo da cabeça. Por alguma razão, que ele não conseguia explicar, sentiu uma simpatia imediata por aquele homem encostado contra a parede imaculadamente branca do quarto de hospital.
O médico acabara de testar todos os seus sinais vitais, auscultara-o e, agora, examinava-o com uma pequena lanterna. Já haviam feito todos os possíveis exames, incluindo raios X e ultrassons, para verificar a saúde dos órgãos. Fisicamente, o jovem estava bem. Restava-lhes saber se a batida na cabeça trouxera algum efeito colateral à sua capacidade mental e resposta cognitiva.
- Consegues compreender o que eu digo? Lembras de alguma coisa? Qualquer coisa: teu nome, de onde vens, quem tu és…
O rapaz não exibia qualquer alteração naquela expressão distante. Talvez estivesse, mesmo, fazendo uma tentativa descomunal para ajustar o cérebro e compreender a mensagem, expressa pelas palavras do médico, que acabara de examiná-lo, completamente e que insistia em saber qualquer coisa a seu respeito.
- Compreendes o que eu digo?
- Eu percebo as palavras, mas é tudo tão confuso…
A pressão, que era colocada nele, com aquelas perguntas, não parecia ajudar. Era melhor deixar o rapaz descansar um pouco. O médico chamou o homem mais velho para fora do quarto, com um sinal de cabeça.
***
- Foste encontrado por mim, na praia. Estavas completamente nu e com um ferimento bastante feio na cabeça. Já esperávamos que a memória fosse afetada por uma concussão. Consegues compreender bem o que eu digo?
O rapaz acenou que sim, com a cabeça.
- Por mais que eu tente, não consigo trazer nada à memória. A minha mente é só um branco completo...
O ferry seguia, em direção à ilha, em sua velocidade de cruzeiro, trazendo, junto consigo, aqueles dois homens tão diferentes, sentados lado a lado, cada qual com sua própria história e com seus complexos passados. Em cada cabeça, uma intenção diferente: tentar resgatar o que estava esquecido e tentar esquecer o que nunca deixava de ser relembrado…
***
O pescador havia sentido que tinha certa responsabilidade sobre o rapaz, por havê-lo encontrado e, em comum acordo com a administração do hospital, decidira trazê-lo consigo à ilha, para tentar ajudá-lo a recuperar a memória perdida.
Caminhavam pela praia, indo na direção do local onde fora encontrado, pelo pescador, depois da noite de tempestade. O rapaz diminuiu o passo e olhou para o homem, como se o conhecesse bem e disse:
- Por que te escondes nesta ilha, longe de tudo e de todos e nesta profissão que não é a tua?
- E como sabes disso?
- Não sei explicar. Apenas sinto. E também sinto que há muito mais a dizer, mas evitas…
- Não evito nada…
O homem mais velho franziu o cenho e evitou olhar diretamente para o jovem, que caminhava ao seu lado. Pensou consigo mesmo que não tinha que dar nenhuma satisfação ao outro, mas uma sensação estranha de que podia confiar no rapaz e abrir-se, passou por sua mente.
Mexer com o passado, depois de tanto tempo, não parecia-lhe uma boa coisa, entretanto. Alguns cadáveres não precisavam ser exumados. Melhor deixar seu passado onde ele ficava melhor: lá atrás e bem longe, nos tempos mais pretéritos possíveis. Quanto mais distante e intocado, melhor…
O rapaz voltou a olhar o homem, com atenção e sorriu, mais para si do que para ser percebido, ante aquela resposta, disparada, quase impacientemente e sem contato visual.
- Eu tenho que respeitar-te, não somente pelo que fazes por mim, mas por quereres manter teus segredos bem guardados. Se é assim que preferes, não há o que se possa dizer. Espero que saibas o que fazes.
- E sei… É este o lugar. Foi aqui que te encontrei. Queres ficar sozinho?
O rapaz olhou à volta. Embora constatasse que o lugar era calmo e de uma beleza natural praticamente intocada e quase selvagem, trazendo-lhe uma sensação de tranquilidade, não evocava-lhe nenhuma lembrança.
- Não sei. Este lugar não me diz nada. O facto de haver sido encontrado aqui, não significa que o acidente… ou incidente… tenha ocorrido aqui por perto, de qualquer jeito.
Ele tinha razão. Tanta coisa poderia ter acontecido: um acidente, um assalto, uma infeliz coincidência... O lugar poderia não ter relação nenhuma com o que realmente havia acontecido.
O homem olhou para o rapaz. Ele não parecia preocupado em descobrir de onde viera, para onde iria, quem havia sido, ou o que poderia vir a descobrir, quando recuperasse a memória. Aparentemente, a única coisa que importava, a ele, era estar vivo. Um passado do qual lembrar, era um peso desnecessário, que ele não carregava consigo. Aquilo parecia ser suficiente para um homem que tão pouco sabia sobre si mesmo.
Que sensação estranha! Ele fez uma viagem rápida dentro de si e pensou em como eram tão diferentes. Não ter um passado parecia ser bem mais fácil que esforçar-se para esconder-se do seu...
Estavam os dois de pé, lado a lado, a olhar o horizonte, cada qual absorto em seus próprios pensamentos... Tão próximos e tão distantes, ao mesmo tempo. O rapaz fechou os olhos e sentiu o vento a mexer com seus cabelos claros, a tocar sua pálida pele, a trazer os aromas agradáveis do salitre e das algas e a encher-lhe de vida.
Vida. Que conceito estranhamente forte e frágil, ao mesmo tempo. Era uma realidade, ou uma ilusão que nós sempre carregamos? Quão imprevisível pode ser o viver? Quão despropositado é manter-se fisicamente sadio e mentalmente são? Por que aqueles pensamentos enchiam-lhe a cabeça, como o ar enchia-lhe o peito? Por que ele sentia-se bem naquele lugar, sabendo que nada ali era-lhe caro? Por que tantas perguntas e nenhuma resposta? Ele suspirou, inspirando o ar do oceano, naquele lugar que passara a ser seu tudo: seu presente e seu futuro… e, talvez, seu único refúgio, até aquele momento…
- Vamos voltar? Estou com fome. Vou preparar alguma coisa para comermos. Se quiseres ficar mais um pouco, é contigo...
- Eu gostaria de ficar só um pouco mais, se não for incômodo... Gosto desta paz e desta sensação de silêncio na alma.
- Não é problema, claro. Até já.
***
O homem mais velho levantou-se e retirou os pratos da mesa. Haviam jantado, sem trocarem muitas palavras. Apreciavam a companhia um do outro, mas eram, ambos, económicos nas conversas, já que os assuntos ainda tenderiam a girar numa esfera muito restrita de assuntos, que eram evitados, na sua maioria, pelos dois.
O rapaz recolheu o restante da louça e os talheres e pousou-os na pia, com cuidado. Virou-se, caminhou até a porta que dava para a varanda e saiu, debruçando-se sobre o pequeno parapeito, a olhar o vazio da escuridão, ouvindo, não muito longe, a cantiga suave e monótona do mar. O ar estava um tanto frio, mas ele não se importava. Gostava do frio quase ameno do outono e dos sons típicos da noite da ilha.
O outro homem ficou a observar, de dentro da casa, aquele indivíduo tão mais jovem que ele, com tanta vida ainda pela frente e nenhuma memória a reviver. Pelo menos, pensou, não havia como sentir qualquer tipo de nostalgia…
Quantos planos deveriam ter sido feitos em algum ponto de sua curta vida e, agora, estavam abandonados, sem conclusão? Quantas possibilidades ainda iriam abrir-se, para ele, no futuro? Provavelmente, muitas delas viriam a ser encaradas como se nunca houvessem sido planejadas, mesmo já havendo sido... Uma página… ou muitas, todas ainda em branco e com tanto ainda a ser escrito pelas mãos do destino. Era como se as páginas anteriores houvessem sido estranhamente arrancadas daquele livro, deixando-o como novo e pronto a ser reusado. Só restava-lhe recomeçar daquele ponto e reescrever novas histórias...
O pescador pensou em si mesmo e como gostaria de poder ter uma oportunidade, também, de reescrever sua vida. Riu de si mesmo, ao pensar que ali, na mesma casa, estavam dois seres tão opostos e com objetivos tão díspares, em relação ao passado e, mesmo assim, com tanto futuro pela frente.
Entrou na varanda com uma caneca de café quente nas mãos e ofereceu ao outro, que aceitou, sorrindo. Debruçou-se no parapeito, ao lado do rapaz. Ficaram os dois a olhar para a grande escuridão aberta à frente deles, a ouvir o monótono marulhar do oceano a acariciar a ilha, cada qual a deixar seus próprios pensamentos voarem com o vento da noite.
- Tu já pagaste pelo teu erro. Já podias ter-te perdoado e tocado a vida adiante.
- Como podes saber se já paguei? Como podes dizer-me para levar a vida adiante? Já não estou vivendo uma outra vida?
- Não é o que os teus olhos dizem... Eles tem sempre um distanciamento tão grande e uma tristeza tão tocante...
O homem fechou-se, em sua casca. Não queria reviver sua angústia e seu sentimento de culpa. Sim, ele já havia pago a sua dolorosa pena.
Uma cirurgia, em que a paciente não sobrevivera à intervenção, era motivo grave suficiente, para ficar vivo na memória, por muito tempo. Sim, ele havia operado embriagado, mas que outra opção tivera? De todas as formas, fora julgado e condenado. O veredito fora homicídio culposo, com pena de prisão por três anos. O crime foi considerado inafiançável, devido ao grau de negligência e culminara com a perda da licença e do direito de exercer a profissão de médico, definitivamente. A sentença havia sido devidamente cumprida, na sua totalidade, apesar das tentativas de redução, feitas por um advogado caro e conhecido pela sua competência.
Entre sentimentos de culpa e uma indignação muito grande, ele havia enterrado tudo e recomeçado, naquela ilha, longe de todos aqueles com os quais conviveu e que o abandonaram, completamente, enquanto cumpria a pena na penitenciária. Ali, era um completo desconhecido e seu passado não interessava a ninguém. O que ele gostava, naquela comunidade, era que podia ter sua vida e ninguém parecia interessado em saber mais que ele quisesse mostrar ou, de alguma forma, julgá-lo. Ele também não tinha interesse em saber das vidas dos outros. Não tinha tempo, nem vontade para aquilo.
Mas, ao rapaz sem passado, ele alimentava um genuíno interesse. Sentia que devia ajudar aquela criatura a encontrar-se e tocar sua vida adiante, também. Por algum motivo, ele sentia-se responsável pelo rapaz, pelo menos até que recuperasse a memória.
***
 O médico veio, como habitualmente, numa pálida quinta-feira e chamou os dois ao consultório. Examinou o rapaz, rotineiramente, perguntou como se sentia e pediu para sentar-se. Pela forma como começou a conversa, parecia que ia fazer uma declaração séria. Pegou um envelope pardo de dentro da maleta, pigarreou e disse:
- Recebemos um relatório da Polícia. Acredito que vocês vão achar interessante…
Entregou o envelope ao rapaz e esperou, para ver sua reação. O rapaz abriu, leu e entregou ao pescador, para que o lesse também. O médico reconheceu naquele ato, uma prova de confiança. O homem folheou as poucas páginas e devolveu o relatório ao seu legítimo dono.
- Faz sentido. Achas que ajuda?
- Não sei, ainda. Por enquanto, não há nada que eu possa dizer. Não é tão fácil ler isto e achar que minha memória é logo restituída. Parece que não funciona assim, afinal, por mais que me esforce para tal.
O médico terminou a consulta e dispensou a si mesmo do trabalho, já que não havia mais ninguém a ser atendido naquele dia. Convidou os dois a acompanharem-no até o Café, para conversarem um pouco mais relaxadamente. O médico sabia que as cabeças dos dois… e a dele também… estavam a trabalhar ferventemente. 

O café era, na verdade e apenas, um pretexto subtil para discutirem o que haviam acabado de ler e, além do mais, ele ainda tinha algum tempo, antes de voltar para o continente.

***

domingo, 5 de julho de 2015

Homens do Mar (Parte 1)


O homem olhava para fora da janela, segurando uma caneca de café preto e forte, com suas mãos calejadas pelo trabalho duro, a observar o tempo lá fora. Uma chuva, fina e fria, caía sem parar. Havia dias que o tempo não mudava e o trabalho não podia ser deixado de lado, por tanto tempo. Era uma questão de sobrevivência.

O homem vestiu seu casaco de inverno, embora fosse começo de Outono, tomou seu café quente e saiu, ainda muito cedo na madrugada. O vento e a chuva castigavam a pele massacrada pelo tempo, fazendo-o caminhar curvado e de cabeça baixa, pela orla, na direção do pequeno cais. Sabia que tinha de enfrentar o mar. Sua subsistência dependia apenas daquele trabalho e daquela vida não muito fácil.

Ele já não pensava muito, nem amaldiçoava o tempo ou a chuva. Não reclamava, tampouco. Estava acostumado àquela rotina, a aquele trabalho, à sua solidão e à simplicidade de sua vidinha aparentemente descomplicada, mas bastante dura. Mas sentia que não tinha grandes motivos para reclamar... e não o fazia...

No pequeno cais, o velho barco, seu camarada de todos os dias, oscilava, embalado pelas cristas das ondas. Ele suspirou e caminhou, com passos firmes e decididos, pelo corredor de madeira pesada e escura, carcomida, de tanto ser pisada. Olhou as outras embarcações, todas firmemente amarradas ao embarcadouro, aprumou o capucho do casaco e saltou para dentro da sua.

O velho companheiro rangeu, quando ele pisou no convés, como se estivesse a saudar o homem. Poucos minutos depois, o barulho do motor foi-se distanciando da costa, tornando-se, apenas, mais um monótono murmúrio na praia, enquanto a silhueta do pequeno barco de pesca desaparecia, em meio à bruma e à chuva da madrugada, solitária e incógnita, como seu rijo dono.

***

Uma noite daquelas, cerca de uma semana depois, o tempo mudou... para pior. A chuva caía sem piedade e os trovões, que seguiam os relâmpagos, que  riscavam um céu negro como o petróleo, soavam como os tímpanos de uma orquestra, a tocar uma sinfonia enlouquecida. Ele sorriu, ao ver o céu iluminar-se, como se fossem fogos de artifício. Gostava das tempestades e, sabia, a trovoada, quase sempre, era sinal de mudança.

Na manhã seguinte, o homem saiu de casa, muito cedo, como de costume, para recolher a rede, que estava a meio mar. Ao invés de caminhar pela calçada, para chegar ao cais, resolveu ir pela praia, já que o tempo estava melhor, embora ainda nublado.

A praia estava coberta com muitas algas, como era comum, depois das fortes tempestades. 
Ele gostava de caminhar pela praia, o que era, para ele, tanto um exercício físico, quanto mental. Gostava da areia fofa e limpa; do cheiro iodado do mar; do som das ondas, naquele vai-e-vem contínuo; da brincadeira das águas, a tentar molhar-lhe os pés, cada vez que ele se distraía; da visão das gaivotas a entreter-se com seus voos branquinhos, contra o azul acinzentado do céu e com seus mergulhos dramáticos, no verde esmeralda do oceano...

Àquela hora da manhã, enquanto a vila estava ainda adormecida, longe dos barulhos ordinários do dia-a-dia, longe dos olhares dos transeuntes, enquanto o murmúrio do mar se misturava com os gritos angustiantes das aves, ele sentia-se como se fizesse parte daquela paisagem.

Uma lufada de vento fê-lo estremecer e ajeitar o casaco contra o corpo. O inverno ia ser rigoroso. Mal começara o outono e já sentia-se os efeitos do frio e da humidade, a incomodar os nervos dos mais sensíveis.

Mas ele gostava do frio e do vento. Gostava do mar e da solidão da sua profissão. Às vezes tinha a impressão que perdia a capacidade de comunicar-se e, para o bem da verdade, pouco importava-se com aquilo. Era, agora, um homem do mar, não um orador. Nem era, tampouco, um homem de muitas palavras.

Na verdade, naquela fase de sua vida, preferia os animais aos homens. Aqueles eram muito mais verdadeiros e puros, sem intenções escondidas por trás de suas ações. Instintos e afeições eram diretos e sem falsas intenções. Eram transparentes, como ele já havia sido uma vez… há muito tempo atrás…

O vento batia de frente, como se abraçasse seu corpo já não tão jovem, porém, robusto o suficiente. Ele sabia que ainda tinha muitas forças e haveria de viver longamente, mas não sentia saudades de outros tempos. Ao que lembrasse, não foram tempos que merecessem suas saudades, ou mesmo quaisquer memórias a reviver.
Já não lembrava se havia sido feliz… Talvez houvesse, enganosamente, pensado sê-lo, por um período muito breve de sua vida… a vida que costumava brincar com ele, tantas e tantas vezes… em ocasiões que ele tentava não lembrar, mas que voltavam vívidas, como filmes reciclados, carregados de emoções e que insistiam em manter-se sempre vivas na memória. Ocasiões que trouxeram sua carga de dor, deixando cicatrizes, que eram sempre tocadas, sempre acariciadas e nunca apagadas.
Ele apressou o passo. Não podia deixar o passado interferir no seu presente. Sacudiu a cabeça como quem tenta livrar-se de um pensamento inconveniente e cobriu-a com o capucho do casaco surrado. Tinha que recolher a rede…
Seus pensamentos foram interrompidos por um movimento um tanto inesperado, alguns metros à frente. Um grupo de aves marinhas parecia entretido, em algazarra, com algo que destacava-se no meio de um monte de algas. A princípio ele pensou ser algum animal morto ou apenas restos de peixes, o que não seria surpreendente, mas ao aproximar-se, viu que era algo bem maior, que simples comida para pássaros. Ele apressou-se a afastar os animais, que insistiam em manter-se por perto, como curiosos transeuntes, ao testemunhar um acidente.  
Um corpo, muito pálido, jazia imóvel, na areia da praia, parcialmente coberto pelas algas marinhas. O mar lambia-lhe os pés e as pernas, insistentemente. Ele ajoelhou-se, para examinar o corpo. Como estava de costas, teve que ser virado, para poder ser reconhecido. Esperava ver o rosto todo destruído pelos peixes ou caranguejos e aves, mas ao invés disso, estava em perfeito estado, assim como todo o resto do corpo. Ao tocar na pele, não sentiu o ‘rigor mortis’, nem a temperatura de um cadáver. Ao contrário, estava com temperatura apenas um pouco abaixo do normal, o que poderia ser esperado de uma pessoa que estivesse exposta ao frio do vento e do mar, naquelas condições e em estado de completa nudez. Ele chegou perto do rosto, para tentar perceber se o jovem ainda respirava, ou detetar algum movimento, que fosse, de alguma forma, minimamente percetível. A fraca respiração quase não era notada. O peito mal movia com a entrada de ar nos pulmões, mas o homem estava, com certeza, vivo. 
Ele cobriu o corpo com seu casaco, tomou-o nos braços e levou-o dali. A recolha da rede tinha que esperar.
***
A ilha possuía apenas um pequeno povoado, que tinha um único Posto de Saúde, visitado por um médico, uma vez por semana. O hospital mais próximo ficava no continente, a mais de trezentos quilômetros de distância. Havia uma enfermaria, com medicamentos básicos e primeiros socorros, controlado por uma matrona de humor instável, mas de bom coração. Por saber que o médico viria, já no dia seguinte, ele levou o rapaz para sua casa. Vivia praticamente sozinho, a não ser por um gato gordo, malhado de cinzento e branco, que servia-lhe de diversão e companhia. Tinha tempo para olhar pelo paciente, até, pelo menos, o doutor  examiná-lo, quando chegasse à ilha, algumas horas mais tarde.
Já em casa, tratou de lavar o corpo desacordado do jovem homem e verificar se havia algum sinal de ferimentos. Havia um corte razoavelmente grande na cabeça que, embora já não sangrasse, devia ter vertido bastante sangue, quando feito. Ou havia sido vítima de um assalto ou de um infeliz acidente. Por qual razão estava despido, também era um mistério. Ele foi até o armário e selecionou uma camisa e um par de calças para vesti-lo e arranjou um cobertor e uma colcha para cobri-lo, no sofá da sala de sua casa, de tão poucos cómodos. Ao voltar-se para fechar o armário, seus olhos foram atraídos por uma velha maleta de couro, deixada de propósito, no fundo, para cair no esquecimento, por trás dos casacos mais pesados e longos. Ele levou a mão à maleta e puxou-a para fora.
O coração do jovem batia normalmente, mas a tensão arterial estava bem baixa. Fazia tempo que ele não usava seus velhos instrumentos de medicina. Ele suturou o corte e fez um curativo na cabeça do rapaz, de modo a promover o início da cicatrização, pelo menos até ser examinado pelo médico. Suas mãos já não tinham a destreza de antes e os calos e a textura da pele não facilitaram seu trabalho, mas ele trabalhou como um verdadeiro profissional da saúde. O rapaz precisava ser hidratado. Ele tinha que dar um jeito de arranjar soro e ministrar imediatamente. Só de pensar que tinha de ir ao posto de saúde, ele sentia um desconforto no estômago. Mas não podia pensar em si… não naquela hora…
***
No dia seguinte, com a presença do médico, ele sentia-se mais à vontade. Não tinha tido muita dificuldade em conseguir o soro e a própria matrona ofereceu-se para ir até sua casa, tratar de introduzir a intravenosa. Era mais por curiosidade que por eficiência, mas ele aceitou, para não ter que dar muitas explicações.
Além do corte, que já havia sido tratado, não havia muito o que fazer, a não ser continuar a hidratar e esperar que o rapaz reagisse. Havia o perigo de uma concussão, por isso o médico decidiu que deveria mover o rapaz para o hospital no continente. Precisava de um responsável, caso o doente acordasse. E a polícia teria que ser informada, com urgência…
***
Ele ficava pouco à vontade na cidade. Menos ainda no hospital. A polícia havia sido chamada e iniciara uma investigação. Não encontraram nenhum registo de desaparecimento. Tiraram as impressões digitais e tentaram reconhecimento de face, mas não conseguiram chegar a nada. Enviaram uma foto dele para várias delegacias do país, para tentar, através da distribuição da mesma, descobrir quem era o acidentado. Também não conseguiram nada, verificando se tinha registo criminal. A identidade do rapaz era completamente desconhecida.
***
- Os sinais vitais estão normais, mas algo o impede de acordar… Temos que ter paciência…
Uma semana havia passado, sem grandes mudanças no quadro clínico. O homem decidiu voltar para a ilha, já que, embora tivesse melhorado o estado físico, o rapaz não havia acordado do estado de coma. Avisou ao médico e ao pessoal do hospital que iria para a pensão, onde estava hospedado e, na manhã seguinte, tomaria o barco, de volta para casa e à sua vida de pescador. Dali para diante, o caso era somente com a polícia.
Antes de ir-se, decidiu passar no quarto, para “despedir-se” daquele que nem chegou a conhecer, mas que mexera com sua rotina de vida, por alguns dias.
O rapaz jazia ainda desacordado, muito pálido e sereno, como se, apenas, dormisse. Seu estado era estável, mas ainda sem consciência. Ele aproximou-se e tocou na mão do outro, com uma terna afeição de pai.
- Nossas vidas separam-se aqui, meu rapaz. Pena que não tivemos oportunidade de nos conhecer. Eu gostaria de ter ouvido a tua história.
O rapaz parecia dormir um sono profundo. O pescador virou-se e saiu do quarto. Ao passar pela receção, saudou a enfermeira e despediu-se.
Quando já ia cruzando a porta, ouviu que uma campainha tocou e foi como se aquilo desencadeasse o maior rebuliço da história do hospital. Houve um alvoroço tão grande dentro do recinto, que ele não sabia se corria ou se escondia-se. A enfermeira disse-lhe, em meio à uma agitação, que ele não conseguiu perceber, a princípio:
- Acho melhor não ir-se embora, ainda. O alarme vem do quarto de onde o senhor acabou de sair.
Ele parou e voltou-se, apressando o passo, para chegar ao quarto, junto com os especialistas.