- Estás bem? Sentes alguma dor?
O cenho franzido e o olhar vazio mostravam evidências
que o rapaz estava bastante confuso e fazendo um enorme esforço para perceber o
que se passava, naquele momento, no pequeno quarto de hospital, rodeado por
pessoas, vestidas de branco e que ele desconhecia totalmente.
Havia, também, um homem mais maduro, vestido com
roupas mais normais, a observar a cena toda, com olhos muito atentos, mas sem
proferir nenhuma palavra. Tinha o rosto arredondado e amigável, barba castanho-avermelhada
e os cabelos castanho-claros rareavam no topo da cabeça. Por alguma razão, que
ele não conseguia explicar, sentiu uma simpatia imediata por aquele homem
encostado contra a parede imaculadamente branca do quarto de hospital.
O médico acabara de testar todos os seus sinais
vitais, auscultara-o e, agora, examinava-o com uma pequena lanterna. Já haviam
feito todos os possíveis exames, incluindo raios X e ultrassons, para verificar
a saúde dos órgãos. Fisicamente, o jovem estava bem. Restava-lhes saber se a
batida na cabeça trouxera algum efeito colateral à sua capacidade mental e resposta
cognitiva.
- Consegues compreender o que eu digo? Lembras de alguma coisa? Qualquer
coisa: teu nome, de onde vens, quem tu és…
O rapaz não exibia qualquer alteração naquela
expressão distante. Talvez estivesse, mesmo, fazendo uma tentativa descomunal
para ajustar o cérebro e compreender a mensagem, expressa pelas palavras do
médico, que acabara de examiná-lo, completamente e que insistia em saber qualquer
coisa a seu respeito.
- Compreendes o que eu digo?
- Eu percebo as palavras, mas é tudo tão confuso…
A pressão, que era colocada nele, com aquelas
perguntas, não parecia ajudar. Era melhor deixar o rapaz descansar um pouco. O
médico chamou o homem mais velho para fora do quarto, com um sinal de cabeça.
***
- Foste encontrado por mim, na praia. Estavas completamente nu e com um ferimento
bastante feio na cabeça. Já esperávamos que a memória fosse afetada por uma
concussão. Consegues compreender bem o que eu digo?
O rapaz acenou que sim, com a cabeça.
- Por mais que eu tente, não consigo trazer nada à memória. A minha mente é
só um branco completo...
O ferry seguia, em direção à ilha, em sua velocidade
de cruzeiro, trazendo, junto consigo, aqueles dois homens tão diferentes,
sentados lado a lado, cada qual com sua própria história e com seus complexos passados.
Em cada cabeça, uma intenção diferente: tentar resgatar o que estava esquecido
e tentar esquecer o que nunca deixava de ser relembrado…
***
O pescador havia sentido que tinha certa
responsabilidade sobre o rapaz, por havê-lo encontrado e, em comum acordo com a
administração do hospital, decidira trazê-lo consigo à ilha, para tentar
ajudá-lo a recuperar a memória perdida.
Caminhavam pela praia, indo na direção do local onde
fora encontrado, pelo pescador, depois da noite de tempestade. O rapaz diminuiu
o passo e olhou para o homem, como se o conhecesse bem e disse:
- Por que te escondes nesta ilha, longe de tudo e de todos e nesta
profissão que não é a tua?
- E como sabes disso?
- Não sei explicar. Apenas sinto. E também sinto que há muito mais a dizer,
mas evitas…
- Não evito nada…
O homem mais velho franziu o cenho e evitou olhar
diretamente para o jovem, que caminhava ao seu lado. Pensou consigo mesmo que
não tinha que dar nenhuma satisfação ao outro, mas uma sensação estranha de que
podia confiar no rapaz e abrir-se, passou por sua mente.
Mexer com o passado, depois de tanto tempo, não
parecia-lhe uma boa coisa, entretanto. Alguns cadáveres não precisavam ser
exumados. Melhor deixar seu passado onde ele ficava melhor: lá atrás e bem
longe, nos tempos mais pretéritos possíveis. Quanto mais distante e intocado,
melhor…
O rapaz voltou a olhar o homem, com atenção e sorriu,
mais para si do que para ser percebido, ante aquela resposta, disparada, quase
impacientemente e sem contato visual.
- Eu tenho que respeitar-te, não somente pelo que fazes por mim, mas por
quereres manter teus segredos bem guardados. Se é assim que preferes, não há o
que se possa dizer. Espero que saibas o que fazes.
- E sei… É este o lugar. Foi aqui que te encontrei. Queres ficar sozinho?
O rapaz olhou à volta. Embora constatasse que o lugar
era calmo e de uma beleza natural praticamente intocada e quase selvagem,
trazendo-lhe uma sensação de tranquilidade, não evocava-lhe nenhuma lembrança.
- Não sei. Este lugar não me diz nada. O facto de haver sido encontrado
aqui, não significa que o acidente… ou incidente… tenha ocorrido aqui por
perto, de qualquer jeito.
Ele tinha razão. Tanta coisa poderia ter acontecido: um
acidente, um assalto, uma infeliz coincidência... O lugar poderia não ter
relação nenhuma com o que realmente havia acontecido.
O homem olhou para o rapaz. Ele não parecia preocupado
em descobrir de onde viera, para onde iria, quem havia sido, ou o que poderia
vir a descobrir, quando recuperasse a memória. Aparentemente, a única coisa que
importava, a ele, era estar vivo. Um passado do qual lembrar, era um peso
desnecessário, que ele não carregava consigo. Aquilo parecia ser suficiente
para um homem que tão pouco sabia sobre si mesmo.
Que sensação estranha! Ele fez uma viagem rápida
dentro de si e pensou em como eram tão diferentes. Não ter um passado parecia
ser bem mais fácil que esforçar-se para esconder-se do seu...
Estavam os dois de pé, lado a lado, a olhar o
horizonte, cada qual absorto em seus próprios pensamentos... Tão próximos e tão
distantes, ao mesmo tempo. O rapaz fechou os olhos e sentiu o vento a mexer com
seus cabelos claros, a tocar sua pálida pele, a trazer os aromas agradáveis do
salitre e das algas e a encher-lhe de vida.
Vida. Que conceito estranhamente forte e frágil, ao
mesmo tempo. Era uma realidade, ou uma ilusão que nós sempre carregamos? Quão
imprevisível pode ser o viver? Quão despropositado é manter-se fisicamente
sadio e mentalmente são? Por que aqueles pensamentos enchiam-lhe a cabeça, como
o ar enchia-lhe o peito? Por que ele sentia-se bem naquele lugar, sabendo que
nada ali era-lhe caro? Por que tantas perguntas e nenhuma resposta? Ele
suspirou, inspirando o ar do oceano, naquele lugar que passara a ser seu tudo:
seu presente e seu futuro… e, talvez, seu único refúgio, até aquele momento…
- Vamos voltar? Estou com fome. Vou preparar alguma coisa para comermos. Se
quiseres ficar mais um pouco, é contigo...
- Eu gostaria de ficar só um pouco mais, se não for incômodo... Gosto desta
paz e desta sensação de silêncio na alma.
- Não é problema, claro. Até já.
***
O homem mais velho levantou-se e retirou os pratos da
mesa. Haviam jantado, sem trocarem muitas palavras. Apreciavam a companhia um
do outro, mas eram, ambos, económicos nas conversas, já que os assuntos ainda tenderiam
a girar numa esfera muito restrita de assuntos, que eram evitados, na sua
maioria, pelos dois.
O rapaz recolheu o restante da louça e os talheres e pousou-os
na pia, com cuidado. Virou-se, caminhou até a porta que dava para a varanda e
saiu, debruçando-se sobre o pequeno parapeito, a olhar o vazio da escuridão,
ouvindo, não muito longe, a cantiga suave e monótona do mar. O ar estava um
tanto frio, mas ele não se importava. Gostava do frio quase ameno do outono e
dos sons típicos da noite da ilha.
O outro homem ficou a observar, de dentro da casa, aquele
indivíduo tão mais jovem que ele, com tanta vida ainda pela frente e nenhuma
memória a reviver. Pelo menos, pensou, não havia como sentir qualquer tipo de
nostalgia…
Quantos planos deveriam ter sido feitos em algum ponto
de sua curta vida e, agora, estavam abandonados, sem conclusão? Quantas
possibilidades ainda iriam abrir-se, para ele, no futuro? Provavelmente, muitas
delas viriam a ser encaradas como se nunca houvessem sido planejadas, mesmo já
havendo sido... Uma página… ou muitas, todas ainda em branco e com tanto ainda
a ser escrito pelas mãos do destino. Era como se as páginas anteriores houvessem
sido estranhamente arrancadas daquele livro, deixando-o como novo e pronto a
ser reusado. Só restava-lhe recomeçar daquele ponto e reescrever novas
histórias...
O pescador pensou em si mesmo e como gostaria de poder
ter uma oportunidade, também, de reescrever sua vida. Riu de si mesmo, ao
pensar que ali, na mesma casa, estavam dois seres tão opostos e com objetivos
tão díspares, em relação ao passado e, mesmo assim, com tanto futuro pela
frente.
Entrou na varanda com uma caneca de café quente nas
mãos e ofereceu ao outro, que aceitou, sorrindo. Debruçou-se no parapeito, ao
lado do rapaz. Ficaram os dois a olhar para a grande escuridão aberta à frente
deles, a ouvir o monótono marulhar do oceano a acariciar a ilha, cada qual a
deixar seus próprios pensamentos voarem com o vento da noite.
- Tu já pagaste pelo teu erro. Já podias ter-te perdoado e tocado a vida adiante.
- Como podes saber se já paguei? Como podes dizer-me para levar a vida
adiante? Já não estou vivendo uma outra vida?
- Não é o que os teus olhos dizem... Eles tem sempre um distanciamento tão
grande e uma tristeza tão tocante...
O homem fechou-se, em sua casca. Não queria reviver
sua angústia e seu sentimento de culpa. Sim, ele já havia pago a sua dolorosa pena.
Uma cirurgia, em que a paciente não sobrevivera à intervenção,
era motivo grave suficiente, para ficar vivo na memória, por muito tempo. Sim, ele
havia operado embriagado, mas que outra opção tivera? De todas as formas, fora
julgado e condenado. O veredito fora homicídio culposo, com pena de prisão por três
anos. O crime foi considerado inafiançável, devido ao grau de negligência e culminara com a perda da licença e do direito de exercer a profissão de médico,
definitivamente. A sentença havia sido devidamente cumprida, na sua totalidade,
apesar das tentativas de redução, feitas por um advogado caro e conhecido pela sua
competência.
Entre sentimentos de culpa e uma indignação muito
grande, ele havia enterrado tudo e recomeçado, naquela ilha, longe de todos aqueles com os quais conviveu e que o abandonaram, completamente, enquanto
cumpria a pena na penitenciária. Ali, era um completo desconhecido e seu
passado não interessava a ninguém. O que ele gostava, naquela comunidade, era
que podia ter sua vida e ninguém parecia interessado em saber mais que ele
quisesse mostrar ou, de alguma forma, julgá-lo. Ele também não tinha interesse
em saber das vidas dos outros. Não tinha tempo, nem vontade para aquilo.
Mas, ao rapaz sem passado, ele alimentava um genuíno interesse.
Sentia que devia ajudar aquela criatura a encontrar-se e tocar sua vida
adiante, também. Por algum motivo, ele sentia-se responsável pelo rapaz, pelo
menos até que recuperasse a memória.
***
O médico veio, como habitualmente, numa pálida
quinta-feira e chamou os dois ao consultório. Examinou o rapaz, rotineiramente,
perguntou como se sentia e pediu para sentar-se. Pela forma como começou a
conversa, parecia que ia fazer uma declaração séria. Pegou um envelope pardo de
dentro da maleta, pigarreou e disse:
- Recebemos um relatório da Polícia. Acredito que vocês vão achar
interessante…
Entregou o envelope ao rapaz e esperou, para ver sua
reação. O rapaz abriu, leu e entregou ao pescador, para que o lesse também. O
médico reconheceu naquele ato, uma prova de confiança. O homem folheou as
poucas páginas e devolveu o relatório ao seu legítimo dono.
- Faz sentido. Achas que ajuda?
- Não sei, ainda. Por enquanto, não há nada que eu possa dizer. Não é tão
fácil ler isto e achar que minha memória é logo restituída. Parece que não
funciona assim, afinal, por mais que me esforce para tal.
O médico terminou a consulta e dispensou a si mesmo do
trabalho, já que não havia mais ninguém a ser atendido naquele dia. Convidou os
dois a acompanharem-no até o Café, para conversarem um pouco mais relaxadamente.
O médico sabia que as cabeças dos dois… e a dele também… estavam a trabalhar
ferventemente.
O café era, na verdade e apenas, um pretexto subtil para discutirem o que haviam acabado de ler e, além do mais, ele ainda tinha algum tempo, antes de voltar para o continente.
O café era, na verdade e apenas, um pretexto subtil para discutirem o que haviam acabado de ler e, além do mais, ele ainda tinha algum tempo, antes de voltar para o continente.
***