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quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Nenhum Dia Como Hoje (Um Pacto. Impacto)



- Não devias sair com este tempo!

Ele riu. Esperava uma acolhida menos racional, mas alguém tinha que manter os dois pés firmes ao chão.

- Achei que…

- Está mesmo horrível! Não para de chover!

- Lá fora. Aqui dentro, não. Ou talvez… Mas eu gosto da chuva…

Daquela vez não sorriu.

- Aconteceu alguma coisa?

- Ainda não!

- Como assim?

***

Abriu os olhos, devagar. O quarto ainda estava escuro. Os estores estavam baixados, até o nível do chão. Levantou-se e foi até o interruptor. O som do motor a mover as finas lâminas, que subiam lentamente e permitiam alguma luz entrar pelo aposento, pareceu-lhe mais alto que de costume. A luz do sol feriu-lhe os olhos.

Teria bebido vinho demais? A cabeça ainda parecia às voltas. Nem tudo que lembrava estava tão claro.

Código secreto de batidas na porta. O coração batendo rápido sob a promessa de um amor secreto. Amantes secretos, a compartilhar o ato de fazer amor, como se fossem os últimos amantes vivos do planeta e a criar inevitáveis novas memórias, que nunca seriam partilhadas com mais ninguém.

Quão injusto e inexorável. Quão triste e, ao mesmo tempo, quão indescritivelmente agradável e satisfatório.

Olhou para o quarto e notou que a cama estava toda desalinhada. Não gostou nada do que viu. Pequenas manchas rubras ainda maculavam o tecido branco. Havia de arrumar aquela bagunça toda, imediatamente.

Sacudiu a cabeça e pôs mãos à obra, sem pensar muito mais. Arrancou os lençóis e apressou-se a colocá-los no cesto de roupas a lavar.

Havia de deixar a cama impecável, com os lençóis limpos; aqueles brancos, de linho, com papoulas vermelhas, pintadas à mão.

***

Gaivotas. Invejava aqueles pássaros. Ele gostava daquelas de corpo branco, de asas cinzentas, enormes, com as pontas negras. Eram assustadoras, às vezes, quando davam aqueles rasantes, por sobre a sua cabeça, já tão atormentada por uma série de ideias estranhas.

Talvez chegasse a ser como elas, quando… Tentou desviar o pensamento…

O céu, cheio de nuvens pesadamente cinzentas, anunciava tempestade. Mais uma. Nenhuma tão grande quanto a que se desencadeava dentro de si, entretanto. Desejou, mesmo sem esperanças, que daquela vez fosse mais fácil.  

O odor iodado do mar preencheu-lhe as narinas. Ele sentiu o vento soprar mais forte, contra seu corpo. Faltava pouco… e, no entanto, tanto…

***

- Prometes que entendes?

- Não. Jamais vou entender.

- Naquele dia, da tempestade… sabes?

- O que tem?

- Lembras?

- Do quê?

- De tudo. Do pacto.

- Estávamos bêbados. Maldito vinho! Aquilo foi loucura.

- Não foi... ou, talvez, tenha sido, mas… foi um pacto… de sangue…

- Tu não vais levar isto adiante, vais?

Ele olhou para aquela face tão amada, agora demonstrando grande preocupação e considerou se devia contar mais que a verdade conhecida. Não conseguiu manter, firme, sua mirada. Baixou os olhos, como se voltasse para dentro de si, mais uma vez, depois de tantas outras, naqueles últimos dias.

- Vou… eventualmente…

***

As gaivotas. Tão brancas e tão soltas, a planar, com suas enormes asas, sustentadas pelo vento, que soprava contra seu corpo e o penhasco, celebravam, à sua maneira, a liberdade de voar.

Abriu os braços. Sentiu-se leve, como nunca antes. O mar, lá em baixo, rugia, como um dragão… paciente, mas impiedoso.

Um trovão ecoou à distância. Tempestade à vista… mas já não tinha importância.

***

Observava, à janela, de um ponto específico da cidade, um raio a riscar o céu, seguido de um inevitável trovão.

Contemplou a pequena cicatriz, deixada, no pulso, pela curta e afiada lâmina do canivete, que apareceu-lhe, quase de brincadeira, na mão trêmula, numa noite de chuva pesada, como seria aquela que se aproximava.

Estremeceu, ao lembrar-se, com tristeza, do pacto… Que estupidez! Nunca devia ter concordado com aquilo. Aquele desconforto tinha razão de ser.

Era uma crueldade não saber o dia exato, não conseguir ajudar, não poder interferir. Mas um pacto é, sempre, um pacto. Sentiu, então, que o facto estava prestes a ser consumado. O coração sentia, antes de a mente processar.

Mais um raio. Aquele caiu perto, pelo som do trovejar, que se seguiu, quase que imediatamente.

***

Coragem, agora. Não pode ser tão difícil…

Deu um passo à frente… e outro… até o chão dissolver-se em éter e seu corpo mergulhar no vazio.

Ele saboreou a vitória. A guerra estava no fim. Vencia ele, antes que aquela maldita doença o fizesse, ou o tornasse inválido, de vez. 

Ele odiaria tornar-se um peso, para quem quer que fosse.

Já não haveria outro dia como aquele.

***


quinta-feira, 25 de julho de 2019

Voltar para Casa (Parte 1)



Quando eu saí pela porta da frente, com a cabeça tão distraída com um milhão e meio de pequenos problemas, quase esbarrei no homem que vinha passando pela calçada. Ele me olhou por menos de um segundo, como se me estivesse amaldiçoando ou me quisesse matar, mas não disse nada. Eu também não disse nada além de murmurar um envergonhado “desculpe” e continuei o meu caminho.

Havia algo de familiar naquele homem. Seu rosto pálido e a barba loira quase ruiva chamaram minha atenção, por algum motivo. Ele era um jovem alto, talvez por volta dos trinta e poucos anos, o cabelo loiro ficando ralo no alto da cabeça, um corpo bonito, sem ser atlético, mas muito longe de estar acima do peso.

Estava muito ocupado com seu telefone, por isso não me deu mais atenção que eu merecia: não mais que uns poucos milissegundos.

Havia uma parada de ônibus bem em frente ao prédio e foi ali que ele ficou.

Se eu não estivesse quase na hora de um compromisso importante, arranjaria uma desculpa qualquer para voltar e olhar para ele, apenas uma vez mais e um pouco mais longamente que eu consegui naquele curto espaço de tempo. Mas havia o compromisso e eu não costumava atrasar-me...

***

- Tenho vontade de chorar.

- Por quê?

- Não tenho certeza…

- Então quem poderia ter?

Ele me olhou, como se eu estivesse dizendo o maior absurdo de todos. Tentei segurar minhas lágrimas, mas não consegui. Meu coração estava, por algum motivo, tão pesado, que eu perdia o controlo das minhas emoções. Ele não disse mais nada. Ele me conhecia muito bem.

- Levas-me para casa? Por favor?

- Para casa? "Lar é onde teu coração está"…

- Tu sempre dizes isso.

- Eu sei... Digo, porque sei que tu gostas.

- E gosto. Mas hoje eu só preciso de um abrigo… e de um abraço apertado.

E ele me abraçou. Eu deixei cair todas as minha defesas e chorei desatinadamente.

***

- Vais-me dizer o que está acontecendo?

- Não sei se consigo.

Ele ficou de frente para mim e olhou-me nos olhos. Como eu poderia explicar que o que eu estava sentindo era, realmente, inexplicável? Será que ele alguma vez entenderia que às vezes meu próprio passado me assombrava sobremaneira?

- Queres ficar só? Por algum tempo?

- Não, não mesmo.

- Então vem comigo.

- Para onde?

- Para a praia. Eu sei como o mar te faz sentir bem. Acho que é disto que precisas agora.

Sorri e segui o homem, que nem esperou pela minha resposta. Ele tinha tanta certeza que eu o seguiria, que apenas assumiu que era a coisa mais certa a fazer... E então nós fomos até a praia, quase completamente longe da maioria das pessoas, para recarregar nossas baterias... ou melhor dizendo: para tentar recarregar as minhas baterias.

Caminhamos a certa distância ao longo da praia, com os pés nas águas frias. O ar estava fresco e, à medida que o tempo passava, a temperatura baixava lentamente. Era final de tarde.

Nós nos debruçamos sobre o parapeito do píer por um tempo, em silêncio, apenas observando o sol se pôr, apreciando a paisagem e absorvidos por nossos pensamentos mais íntimos. Minha mente vagou no tempo.

Lá estava eu, há muitos anos atrás, a observar, por um longo tempo, aquele movimento das ondas que iam e vinham, continuamente, acabar na areia branca da praia, em uma explosão de som e espuma. Minha mente estava em outro lugar, tão distante dali.

***

O tempo passou tão rápido. Eu via algumas pessoas a caminhar pela praia, distraidamente, enquanto os pescadores lançavam suas linhas ao mar, todos ocupados com suas próprias vidas e agindo como se eu fosse apenas parte de todo o cenário, como a areia, as rochas e o mar. Na verdade, para eles, eu era apenas aquilo: parte da paisagem. Olhei em volta e decidi que deveria ir para casa antes que escurecesse.

Algumas gaivotas ainda tentavam pegar alguns peixes, diretamente do mar ou de alguns pescadores mais descuidados. Um daqueles grandes pássaros, de repente, mergulhou no ar, quase me atingindo na cabeça, enquanto eu passava, brincando com meus pés nas águas frescas. Eu me abaixei o mais rápido que pude, mas perdi o equilíbrio. Fechei os olhos enquanto caía, na certeza de que ia terminar meu dia com as roupas todas encharcadas.

Por alguma razão inesperada, não aconteceu nem uma coisa, nem outra: nem eu caí, nem me molhei. Meu corpo ficou a meio caminho entre o ar e o mar.

- O que aconteceu?

- Eu vi que ias cair e vim em teu auxílio.

- Hã?

O homem, um loiro alto e bonito, segurava-me com as duas mãos. Senti suas pernas fortes entre as minhas e seus braços musculosos ao redor do meu corpo. Eu recuperei meu equilíbrio e ele aliviou o abraço.

- Eu sinto muito.

- Oh, não se preocupe. Eu já estava-me vendo indo para casa num estado lastimável. Agradeço mesmo… de coração!

Ele sorriu. Eu olhei para aqueles olhos. E eram tão azuis.

- Oh meu Deus!

- O que foi?

- Nada. Eu sinto muito.

- Está tudo bem?

- Eu estou bem. Não se preocupe. Desculpe se eu perturbei a tua pescaria.

- Sem problemas. Eu estava apenas passando alguns momentos sozinho, depois de um dia longo no escritório.

- Tens horas?

- Eu tenho… algumas… talvez… para que?

Eu ri.

- Eu quis dizer: que horas são agora?

- Quase oito da noite.

- Oh. Tão tarde. Não havia percebido que era tão tarde. Tenho que ir.

Ele segurou minha mão. Eu fiquei sem palavras. Por alguma razão, senti um calafrio na espinha.

- Não vá… ainda… Vamos tomar um café? Um dia? Hoje? Agora?

- Erm... eu... não... sei...

- Bem, então apenas diga que sim!

***

Eu senti seus braços em volta da minha cintura. Ele me puxou para perto dele e beijou meu rosto, de uma maneira muito espontânea. Por alguma razão, pensei que ele estivesse se lembrando da mesma ocasião que eu. Nossas mentes podem ser engraçadas, às vezes. Eu sorri e beijei aquele rosto amigo.

***

Decidimos jantar juntos em um restaurante chique, no centro da cidade. Ficava quase no alto da rua, em uma casa antiga, restaurada e modernizada para atender às necessidades de uma clientela ansiosa pela nova moda de alimentação vegan e vegetariana.

As paredes eram cobertas por decorações em gesso, onde folhas e frutos de videiras brancas em fundo azul, subiam do chão até o teto da sala dos fundos. O chão de madeira parecia ainda ser o original. As portas de duas folhas davam vista para um pátio iluminado por postes de luz, cuidadosamente escolhidos, em estilo do início do século passado. Uma grande buganvília fúcsia, um tom forte de cor-de-rosa quase púrpura, coloria o lado direito do jardim, perto de uma linha de móveis de ferro fundido, pintados de branco e provavelmente usados ​​em dias ensolarados, ou no começo das noites de verão.

O risoto de cogumelos havia sido primorosamente preparado e cuidadosamente decorado, sendo servido com exuberância exagerada. Eu detetei um toque de balsâmico no sabor daquele prato extravagante. Não havia saboreado nada parecido antes. Um vinho branco frutado, bem fresco, foi escolhido para acompanhar o prato e nós compartilhamos uma sobremesa delicada, chamada “Decadência de Chocolate”, seguida de café preto.

Pagamos a conta e descemos os degraus da escadaria na entrada, que dava para a larga rua. O vento soprava mais fresco e achamos que a noite estava agradável para um passeio a dois. Nós apreciávamos caminhar lado a lado, sem falar muito. A vida pode ser tão simples e boa ao mesmo tempo.

Pensei em gatos vivendo suas vidas simples, com prazeres simples e desejando não muito mais que aquilo. Mas nós somos apenas humanos, vivendo como humanos, da melhor maneira que conseguimos. Para que desejar mais que um bom prato, uma cama quente e um abraço?

O ribombar de um trovão, muito perto, fez-me estremecer um pouco.

- Tens medo?

- Não, não mesmo.

- Boa. Então precisamos ir mais rápido. Parece que vai chover muito em breve.

Antes mesmo de alcançarmos o estacionamento, a chuva caía pesada e fria sobre nossos corpos quentes. Quando chegamos ao carro, estávamos muito encharcados e quase congelando. Liguei o aquecedor e me livrei da camisa e dos sapatos molhados, antes que começasse a espirrar.

Foi então que nós o vimos, de pé, em frente ao portão, tendo a chuva pesada servindo de pano de fundo à sua silhueta...

***