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quinta-feira, 3 de outubro de 2019

De Jacinto (Parte 2)



- De todas as lendas mitológicas, a minha favorita sempre foi a de Apolo.

- Ah! A minha sempre foi a de Narciso!

- Faz sentido! E, mesmo te conhecendo do jeito que eu te conheço,  jamais teria adivinhado...

Eles se entreolharam, muito sérios, por um tempo e depois caíram na gargalhada.

***

As férias de verão estavam quase no fim e ele se preparava para voltar à sua vida normal. Havia decidido arrumar as coisas e colocá-las no porta-malas do carro, enquanto ainda era de manhã cedo, mas mudou de ideia, assim que abriu a porta.

Um lindo e ensolarado dia acabava de nascer e, embora inicialmente pretendesse deixar o local na hora do almoço, ele achou que seria melhor adiar a viagem para o final da tarde, para que pudesse relaxar e aproveitar seu último dia de paz, na praia.

O sol subia lentamente no céu. Logo estaria quente o suficiente.

Uma corrida rápida na praia seria boa para sentir-se livre e leve, antes de preparar sua mente e corpo para a semana seguinte e para as rotinas a que estava acostumado, incluindo as sessões de terapia. Ele tinha muitas coisas a conversar.

Mas não era o momento certo para pensar nos assuntos da semana. O que precisava, mesmo, era manter a cabeça tranquila até o fim daquele último dia, pelo menos.

Correu por alguns minutos pela praia e, quando voltou, olhou para o mar, que parecia convidá-lo, despiu-se e foi nadar. A água estava fria, mas o dia já estava razoavelmente quente. Ele pensou que era um homem de sorte, afinal.

Sorriu, quando pensou no amigo.

(- Nome engraçado!)

Eles se conheciam há algum tempo e ainda mantinham a mesma simpatia que tinham desde o início. Melhor dizendo: aquele sentimento ficara mais forte com o tempo e com a intimidade que eles compartilhavam. Além disso, havia um autêntico respeito que nutriam um pelo outro e isso fazia toda a diferença.

- Quanto tempo vais ficar na água ainda?

- Ahn? O quê?

- Vais congelar aí. Esta água está tão fria!

Ele não respondeu, mas percebeu que havia esquecido como a água estava fria, tão distraído que estava com seus próprios pensamentos. Sentiu seus músculos enrijarem. Era hora de sair do mar e voltar para casa.

***

- Tu sabes o que sinto a este respeito, não?

- Sim. E tu sabes que eu não sou bom em expressar meus sentimentos...

- O que tu vais fazer?

- Não posso fazer nada além do que já estou fazendo. Estou profundamente envolvido nisto, mas é o melhor que posso fazer... pelo menos por enquanto.

- Compreendo.

- Eu te desapontei, não foi?

- Na verdade, não. Eu tento manter meus dois pés, firmes, no chão.

- Nunca fiz promessas, porque sabia que não seria capaz de cumpri-las.

- Eu sei o que queres dizer. Foi só...

Ele parou no meio da frase. Ele quase disse e sabia que ter-se-ia arrependido logo depois, se o fizesse.

O outro homem simplesmente olhou para ele, com uma tristeza repentina nos olhos. Ele sabia exatamente como aquela frase poderia terminar. Infelizmente.

Ficaram em silêncio por um longo tempo. Foi um momento em que as palavras não significariam nada, porque ambos sabiam o idioma que seus corações falavam. Um silêncio caiu pesadamente entre eles.

Os dois evitaram olhar nos rostos e olhos um do outro. Suas lágrimas não lhes permitiam ver claramente, de qualquer maneira, mesmo que eles quisessem.

***

“I'll never forget what happened that day,
 The fear in your eyes, the cutting away
 You left to my world fine memories,
 But I've turned them into sworn enemies
 That day”... (Adam Evald; “That Day”)

(Nunca esquecerei o que aconteceu naquele dia,
 O medo em seus olhos, a separação
 Você deixou no meu mundo boas lembranças,
 Mas eu as transformei em inimigos jurados
 Naquele dia)...

- Essa música de novo? Tu nunca te cansas de ouvir?

Ele ignorou a ironia.

- Por que tu vens aqui sempre que me vês sozinho?

- Eu sinto que tu precisas de mim.

- Como podes?

Ele sorriu. Isso significava que não responderia. O homem já estava tão acostumado com aquilo, que nem tentou discutir.

- Vou ver um terapeuta hoje.

- Isso é uma estupidez e um grande desperdício. Tu não precisas de um.

- É isso que tu achas? Tu és o motivo pelo qual eu preciso ver um.

- Besteira! Não precisas de ninguém, além de mim.

- Arrogância? Agora? Deves estar de brincadeira comigo.

Ele sorriu de novo.

- Vá, se quiseres. Acho que estás errado, de qualquer maneira. Eu sei que não me vais dar razão, até que percebas que, realmente, não precisas da ajuda de um estranho.

- Eu sei e tu sabes que eu sei.

- Brincando com as palavras agora? Isso é tão típico em ti.

O homem simplesmente sorriu de volta. Como sua contraparte, ele não queria... nem precisava... responder à aquela provocação.

***

O homem sentou-se na poltrona de couro castanho, no lado esquerdo da sala, e esperou. O terapeuta havia-lhe perguntado se aceitava uma chávena de café.

O zumbido da máquina serviu de música de fundo para os seus pensamentos. Ele tentava encontrar uma maneira de iniciar a conversa. Sabia como a terapia funcionava e precisava ir direto ao ponto, por vários motivos. Quanto mais rápido o fizesse, melhor seria para os resultados. Além disso, havia razões pecuniárias a serem levadas em consideração, também.

- Eu preciso de ajuda. Urgentemente! Não é fácil dizer isso, mas é o único jeito.

- Bem, isto já é um bom começo. De que tipo de ajuda estás a falar?

- Não quero vir com um diagnóstico pronto e dizer o que preciso fazer, mas haverás de concordar comigo que vou precisar tomar medicamentos, o mais rápido possível.

- E o que te leva a pensar em algo assim?

- Confesso que já passei por isso antes e não levei a sério. Agora vejo que realmente preciso, ou, então, vou entrar em uma viagem de ida até o fim, completamente fora de controlo. E eu não gosto e nem quero uma coisa destas. Pensei que conseguiria lidar com o problema sozinho e sair ileso, mas não posso. Eu, simplesmente, não consigo.

- Do que estás falando? Vá direto ao ponto, por favor.

- Eu ouço vozes na minha cabeça o tempo todo e vejo pessoas que não existem, na realidade.

- E como tu sabes que elas não existem?

- Porque eu já fui diagnosticado como esquizofrênico!

***


segunda-feira, 16 de setembro de 2019

De Jacinto (Parte 1)



O ar da manhã estava bastante fresco, quase frio, apesar de ainda estar na alta temporada de verão.

O homem passou as duas mãos pelos cabelos loiros bem tratados, tentando mantê-los minimamente arrumados, apesar da dificuldade em domá-los contra o vento que soprava do mar. Supondo que estivesse sozinho, ele tirou a camiseta, tênis e shorts e depois deu um jeito de amarrar o cabelo em um coque, no topo da cabeça. Atravessou as areias brancas, caminhando com confiança em direção às águas, tão límpidas e frescas, de cor verde-esmeralda e mergulhou onde as ondas quebravam...

Depois da corrida que havia feito ao longo da praia, como normalmente fazia, enquanto ficava na casa de verão, por um mês inteiro, na alta temporada, aquela sensação era refrescante e revigorante.

Alguns minutos depois, quando saiu do mar, percebeu que não estava sozinho, afinal. O homem olhou para onde havia deixado suas roupas e caminhou pela areia fina, naquela direção.

Não tentou esconder, nem cobrir seu corpo nu. Simplesmente pegou sua camiseta e esfregou pelo torso e ombros, com a intenção de secar-se um pouco e vestiu os shorts, novamente. Foi só então que falou, finalmente, enquanto juntava os calçados, já pronto a voltar para casa.

***

“Demons are back, demons are back once again,
Fighting them off, I’m fighting them off once again,
It's hard for me, but I'm trying”… (Adam Evald; “That Day”)

(Demônios estão de volta, os demônios estão de volta, mais uma vez,
Lutando contra eles, estou lutando contra eles, mais uma vez,
É difícil para mim, mas estou tentando”)… (Adam Evald;“ That Day ”)

- A história deste videoclipe é muito triste.

- É, mas eu gosto da música... muito...

- Uma música melancólica. Eu me pergunto o que aconteceu com eles. Por que ela foi embora?

- Precisas, realmente, saber? Quando o amor acaba, acaba...

- Mas duas pessoas tão bonitas... A cultura popular nos diz que suas vidas deveriam ser perfeitas.

- Nenhuma vida é perfeita... infelizmente.

- Mas toda publicidade é baseada na crença de que é possível. E nós acreditamos nisso.

- Tu ainda acreditas neste tipo de conto de fadas? Faz muito tempo que eu não acredito em qualquer relacionamento perfeito.

- Mas funciona!

Ele pensou naquilo por um par de segundos.

- Pode funcionar... talvez... por um tempo...

Levantou-se e saiu da sala, em direção à varanda. A noite estava agradável e tranquila. Podia-se ouvir o oceano rugindo, à distância, como se a convidar à uma conversa.

Ele, então, decidiu dar um passeio. Precisava pensar, respirar um pouco de ar fresco e se deixar levar pela noite de verão e pela brisa do mar... em seu mundo íntimo e privado.

***

- Sabes muito bem que não funciona assim. Não é apenas a minha vontade que conta nesta situação. Eu não posso machucar pessoas que não têm nada a ver com isto.

- Vais ter que, eventualmente, machucar algumas, mesmo sem querer, neste processo.

- Espero que não.

- O que vais fazer, então? O que tu queres fazer, afinal?

- Eu não sei. Eu tentei chegar a algum lugar e tudo que eu consegui foi chegar a um beco sem saída.

- Vais ter que encontrar um caminho. Ou então vais ficar louco.

- Não me pressiones deste jeito.

- É meu trabalho empurrar-te para fora desta zona de conforto. Tu te estás acostumando demais à dor e à culpa... e à tristeza... Para além daqueles momentos de fuga, uma vez por semana, mais ou menos, não parece sobrar muito a que se apegar.

- É fácil dizer este tipo de coisas, quando se tem muito menos a perder.

Ele sorriu. Sabia do que o outro homem estava falando e sabia, também, que não era tão fácil quanto ele dizia, mas era o que poderia fazer, para ajudar.

- Nós precisamos ir. Já tenho outro paciente à espera.

A sessão de terapia havia terminado. O homem sentiu-se quase aliviado. Às vezes, aquelas reuniões eram bastante difíceis e muito stressantes, mesmo.

Quando saiu do consultório do analista, sentia-se cansado e triste... Havia muitas coisas em que pensar até o próximo encontro.

***

O ciúme é uma coisa muito perigosa. Pode embaçar o discernimento. E, às vezes, pode levar a coisas que faz-se sem pensar: atos arriscados e com a cabeça quente.

- Zéfiro?

- Sim. É o tal. Eu o conheço.

- Mas é um nome horrível! Quem ainda dá nomes destes aos filhos?

Ele riu. Estavam jogando o disco no campo perto do lago grande do parque da cidade. Alguns cisnes nadavam nas águas calmas, ali perto e eles pareciam estar em um mundo todo próprio.

Ele viu o homem vindo na direção de onde eles estavam. Havia um sorriso estranho no seu rosto, como se ele estivesse vindo com alguma intenção.

Por alguma estranha e intrigante razão, assim que o homem se aproximou, um vento inesperado começou a soprar e os cisnes ficaram inquietos e barulhentos, abrindo suas asas e esticando seus longos pescoços à frente.

- Zéfiro, não é?

- Isso mesmo!

Os dois amigos se aproximaram do recém-chegado e o cumprimentaram. O homem sorriu e se inclinou para frente, pegou o disco do chão e o entregou ao homem loiro.

- Posso entrar no jogo?

- Claro. Seja bem-vindo.

- (Aquele sorriso de novo... O que significa, afinal?)

***

- Como assim, "voltaram"?

- Voltaram... como aqui e agora, mais uma vez.

- Eu pensei que já havia acabado.

- Eu também, mas parece que não.

- Tens certeza disto?

- Tenho, sim.

- O que vais fazer, então?

- Ainda não sei... mas preciso fazer alguma coisa... e rápido!

- Mesmo… é melhor pensar em algo!

- Eu sei. Este não é o momento perfeito... e eu pensei que estava... Quero dizer, ainda há muitas coisas para resolver e, então, agora, isso!

- Coragem! Embora saibas que vais precisar de bem mais do que um simples esforço, agora!

- Eu sei…

Por alguma razão, sua mente voltou no tempo, quando tudo começou...

- Oh! Deus!

***


quinta-feira, 25 de julho de 2019

Voltar para Casa (Parte 1)



Quando eu saí pela porta da frente, com a cabeça tão distraída com um milhão e meio de pequenos problemas, quase esbarrei no homem que vinha passando pela calçada. Ele me olhou por menos de um segundo, como se me estivesse amaldiçoando ou me quisesse matar, mas não disse nada. Eu também não disse nada além de murmurar um envergonhado “desculpe” e continuei o meu caminho.

Havia algo de familiar naquele homem. Seu rosto pálido e a barba loira quase ruiva chamaram minha atenção, por algum motivo. Ele era um jovem alto, talvez por volta dos trinta e poucos anos, o cabelo loiro ficando ralo no alto da cabeça, um corpo bonito, sem ser atlético, mas muito longe de estar acima do peso.

Estava muito ocupado com seu telefone, por isso não me deu mais atenção que eu merecia: não mais que uns poucos milissegundos.

Havia uma parada de ônibus bem em frente ao prédio e foi ali que ele ficou.

Se eu não estivesse quase na hora de um compromisso importante, arranjaria uma desculpa qualquer para voltar e olhar para ele, apenas uma vez mais e um pouco mais longamente que eu consegui naquele curto espaço de tempo. Mas havia o compromisso e eu não costumava atrasar-me...

***

- Tenho vontade de chorar.

- Por quê?

- Não tenho certeza…

- Então quem poderia ter?

Ele me olhou, como se eu estivesse dizendo o maior absurdo de todos. Tentei segurar minhas lágrimas, mas não consegui. Meu coração estava, por algum motivo, tão pesado, que eu perdia o controlo das minhas emoções. Ele não disse mais nada. Ele me conhecia muito bem.

- Levas-me para casa? Por favor?

- Para casa? "Lar é onde teu coração está"…

- Tu sempre dizes isso.

- Eu sei... Digo, porque sei que tu gostas.

- E gosto. Mas hoje eu só preciso de um abrigo… e de um abraço apertado.

E ele me abraçou. Eu deixei cair todas as minha defesas e chorei desatinadamente.

***

- Vais-me dizer o que está acontecendo?

- Não sei se consigo.

Ele ficou de frente para mim e olhou-me nos olhos. Como eu poderia explicar que o que eu estava sentindo era, realmente, inexplicável? Será que ele alguma vez entenderia que às vezes meu próprio passado me assombrava sobremaneira?

- Queres ficar só? Por algum tempo?

- Não, não mesmo.

- Então vem comigo.

- Para onde?

- Para a praia. Eu sei como o mar te faz sentir bem. Acho que é disto que precisas agora.

Sorri e segui o homem, que nem esperou pela minha resposta. Ele tinha tanta certeza que eu o seguiria, que apenas assumiu que era a coisa mais certa a fazer... E então nós fomos até a praia, quase completamente longe da maioria das pessoas, para recarregar nossas baterias... ou melhor dizendo: para tentar recarregar as minhas baterias.

Caminhamos a certa distância ao longo da praia, com os pés nas águas frias. O ar estava fresco e, à medida que o tempo passava, a temperatura baixava lentamente. Era final de tarde.

Nós nos debruçamos sobre o parapeito do píer por um tempo, em silêncio, apenas observando o sol se pôr, apreciando a paisagem e absorvidos por nossos pensamentos mais íntimos. Minha mente vagou no tempo.

Lá estava eu, há muitos anos atrás, a observar, por um longo tempo, aquele movimento das ondas que iam e vinham, continuamente, acabar na areia branca da praia, em uma explosão de som e espuma. Minha mente estava em outro lugar, tão distante dali.

***

O tempo passou tão rápido. Eu via algumas pessoas a caminhar pela praia, distraidamente, enquanto os pescadores lançavam suas linhas ao mar, todos ocupados com suas próprias vidas e agindo como se eu fosse apenas parte de todo o cenário, como a areia, as rochas e o mar. Na verdade, para eles, eu era apenas aquilo: parte da paisagem. Olhei em volta e decidi que deveria ir para casa antes que escurecesse.

Algumas gaivotas ainda tentavam pegar alguns peixes, diretamente do mar ou de alguns pescadores mais descuidados. Um daqueles grandes pássaros, de repente, mergulhou no ar, quase me atingindo na cabeça, enquanto eu passava, brincando com meus pés nas águas frescas. Eu me abaixei o mais rápido que pude, mas perdi o equilíbrio. Fechei os olhos enquanto caía, na certeza de que ia terminar meu dia com as roupas todas encharcadas.

Por alguma razão inesperada, não aconteceu nem uma coisa, nem outra: nem eu caí, nem me molhei. Meu corpo ficou a meio caminho entre o ar e o mar.

- O que aconteceu?

- Eu vi que ias cair e vim em teu auxílio.

- Hã?

O homem, um loiro alto e bonito, segurava-me com as duas mãos. Senti suas pernas fortes entre as minhas e seus braços musculosos ao redor do meu corpo. Eu recuperei meu equilíbrio e ele aliviou o abraço.

- Eu sinto muito.

- Oh, não se preocupe. Eu já estava-me vendo indo para casa num estado lastimável. Agradeço mesmo… de coração!

Ele sorriu. Eu olhei para aqueles olhos. E eram tão azuis.

- Oh meu Deus!

- O que foi?

- Nada. Eu sinto muito.

- Está tudo bem?

- Eu estou bem. Não se preocupe. Desculpe se eu perturbei a tua pescaria.

- Sem problemas. Eu estava apenas passando alguns momentos sozinho, depois de um dia longo no escritório.

- Tens horas?

- Eu tenho… algumas… talvez… para que?

Eu ri.

- Eu quis dizer: que horas são agora?

- Quase oito da noite.

- Oh. Tão tarde. Não havia percebido que era tão tarde. Tenho que ir.

Ele segurou minha mão. Eu fiquei sem palavras. Por alguma razão, senti um calafrio na espinha.

- Não vá… ainda… Vamos tomar um café? Um dia? Hoje? Agora?

- Erm... eu... não... sei...

- Bem, então apenas diga que sim!

***

Eu senti seus braços em volta da minha cintura. Ele me puxou para perto dele e beijou meu rosto, de uma maneira muito espontânea. Por alguma razão, pensei que ele estivesse se lembrando da mesma ocasião que eu. Nossas mentes podem ser engraçadas, às vezes. Eu sorri e beijei aquele rosto amigo.

***

Decidimos jantar juntos em um restaurante chique, no centro da cidade. Ficava quase no alto da rua, em uma casa antiga, restaurada e modernizada para atender às necessidades de uma clientela ansiosa pela nova moda de alimentação vegan e vegetariana.

As paredes eram cobertas por decorações em gesso, onde folhas e frutos de videiras brancas em fundo azul, subiam do chão até o teto da sala dos fundos. O chão de madeira parecia ainda ser o original. As portas de duas folhas davam vista para um pátio iluminado por postes de luz, cuidadosamente escolhidos, em estilo do início do século passado. Uma grande buganvília fúcsia, um tom forte de cor-de-rosa quase púrpura, coloria o lado direito do jardim, perto de uma linha de móveis de ferro fundido, pintados de branco e provavelmente usados ​​em dias ensolarados, ou no começo das noites de verão.

O risoto de cogumelos havia sido primorosamente preparado e cuidadosamente decorado, sendo servido com exuberância exagerada. Eu detetei um toque de balsâmico no sabor daquele prato extravagante. Não havia saboreado nada parecido antes. Um vinho branco frutado, bem fresco, foi escolhido para acompanhar o prato e nós compartilhamos uma sobremesa delicada, chamada “Decadência de Chocolate”, seguida de café preto.

Pagamos a conta e descemos os degraus da escadaria na entrada, que dava para a larga rua. O vento soprava mais fresco e achamos que a noite estava agradável para um passeio a dois. Nós apreciávamos caminhar lado a lado, sem falar muito. A vida pode ser tão simples e boa ao mesmo tempo.

Pensei em gatos vivendo suas vidas simples, com prazeres simples e desejando não muito mais que aquilo. Mas nós somos apenas humanos, vivendo como humanos, da melhor maneira que conseguimos. Para que desejar mais que um bom prato, uma cama quente e um abraço?

O ribombar de um trovão, muito perto, fez-me estremecer um pouco.

- Tens medo?

- Não, não mesmo.

- Boa. Então precisamos ir mais rápido. Parece que vai chover muito em breve.

Antes mesmo de alcançarmos o estacionamento, a chuva caía pesada e fria sobre nossos corpos quentes. Quando chegamos ao carro, estávamos muito encharcados e quase congelando. Liguei o aquecedor e me livrei da camisa e dos sapatos molhados, antes que começasse a espirrar.

Foi então que nós o vimos, de pé, em frente ao portão, tendo a chuva pesada servindo de pano de fundo à sua silhueta...

***

terça-feira, 9 de abril de 2019

Uma Noite A Mais (Epílogo)



Nós ouvimos a campainha da porta tocar. Minha filha levantou-se e foi atender, não sem antes verificar quem era, pelo olho mágico.

- Posso entrar?

- Claro.

Eu me virei, sem dizer nada, ao reconhecer a voz.

- Podemos conversar uns minutos? Prometo que tentarei ser breve.

Ela pegou as coisas dela, meio às pressas, e disse:

- Eu tenho que ir ao supermercado comprar umas coisinhas e já volto. Fiquem à vontade!

Aquela saída estratégica era sua forma de tentar deixar-nos a sós, para resolvermos nossas pendências, ou colocar a conversa em dia, embora eu soubesse que não ia ser nada fácil.

Eu esperei que ele chegasse mais perto, sem sorrir. Ele parecia pouco à vontade e muito sério, também.

- Sente-se.

Ele sentou-se na ponta do assento da poltrona, de frente para mim. Esfregou as mãos e começou a falar, com a voz muito baixa.

- Eu sei que tenho sido um idiota…

***

Ele me olhou com aqueles seus olhos claros. Não consegui fitá-los por muito tempo. Tinha verdadeiro receio do que eu sentia. Minha cabeça ainda estava confusa com o que havia acabado de ouvir.

- Não vais dizer mais nada?

- Não sei o que dizer. Não esperava ouvir isto, desta forma.

- Mas é o que eu sinto. Sei que tu deves achar que eu tenho de ter certeza, antes de me jogar de cabeça, mas acredito no que eu sinto, apesar das minhas inseguranças. Nunca pensei que fosse acontecer algo assim comigo, mas prefiro tentar e falhar, se for o caso, do que nunca tentar... E eu quero tentar…

- Isso não vai ser nada fácil.

- Eu sei. Nunca é. Mas não diz respeito a mais ninguém, além de nós. Não temos que dar satisfação a ninguém.

- Eu não sei o que dizer. É uma coisa muito nova. Nem sei como reagir.

- Nem eu. Mas podemos tentar juntos. Não temos nada a perder…

Ele levantou-se e tomou minhas mãos nas suas. Eu tentei baixar o olhar, mas o peso daqueles olhos fixos nos meus, me impediu. Ele passou os braços em torno da minha cintura e puxou-me para mais perto dele, abraçando-me, sem preocupação. Eu não pensei muito. Aconcheguei minha cabeça no seu peito e tentei deixar-me levar. Mal sabia eu que aquele envolvimento ia ser mais profundo que um simples abraço.

***

- Já se passaram tantos anos, por que agora?

- Eu pensei que conseguia ficar longe, mas vejo que não. Nunca consegui deixar de pensar em vocês.

- O que aconteceu com a tua “nova vida”?

Ele percebeu a ironia na pronúncia da expressão que usara, quando nos disse que ia partir de volta para a terra natal e tratar dos negócios da família. Pareceu-me uma desculpa tão fraca, mas ele disse que tinha feito uma promessa e que ia assumir as atividades, se o pai viesse a faltar. Claro que ele sabia que eu não o acompanharia, mas sempre haveria um jeito de contornar certas coisas. Mas ele preferiu manter-se à distância e fomos perdendo contacto, pouco a pouco, como seria natural, em situações similares.

Injusto, pouco comprometido, egoísta e sem consideração, foram apenas alguns dos adjetivos que eu usei, na época, mas desconfiava que havia muito mais por trás daquela decisão. Ele tinha medo de compromissos mais sérios, pelo que eu pude perceber. E a nossa relação estava a ficar séria demais.

Enfim, eu e minha filha continuamos nossas vidas, como não poderia deixar de ser, por um longo tempo e sem ele. Ela cresceu, estudou, tornou-se uma pessoa responsável e muito centrada. Evitávamos falar sobre o passado. Ela era apenas uma criança, mas lembrava do que havia entre nós e sentia falta do carinho dele, também.

- Estou sozinho, agora. Já não pertenço a nenhum lugar.

- Sei. E o que isso muda?

- Não muda… mas pensei muito… em tudo. Tive tempo de sobra para isso…

- E não pertences a ninguém?

- Nunca pertenci a ninguém. Tu sabes disso. E não houve mais ninguém na minha vida, depois de ti. Estava muito ocupado com o trabalho, mas sempre pensava em nós, em ti, em vocês dois.

Eu olhei para ele, meio sem acreditar. Um homem daqueles, sem ninguém e por aquele tempo todo? Impossível. Mas resolvi não discutir. Não era pertinente, ou melhor: já não era relevante.

- Por quanto tempo ficarás por cá?

Eu nem sabia se devia ter feito aquela pergunta. Tinha medo do que ele ia responder.

- Não sei.

Resposta perfeita, já que era o mesmo que resposta nenhuma. Como de costume, em ocasiões parecidas, ele respondia, sem responder.

- Sei. Afinal o que vieste fazer? Matar as saudades?

- Também, mas não só…

- Ah. Não só…

Desviei o olhar.

- Olha para mim.

Eu quis fugir, mas não consegui.

- O que tu queres, afinal?

- Uma outra hipótese. Sei que eu fiz uma grande burrada, indo embora, do jeito que fui, mas eu pensei muito e eu quero que dê certo… mais certo… desta vez. 

Minha vontade era bater nele, com força. Eu estava cansado, triste, com um pouco de raiva, pelo que havíamos passado e ainda não sabia o que pensar. Só sabia que não sabia de mais nada.

Ele levantou-se. Puxou-me pela mão, dizendo:

- Vem comigo!

- O quê? Para onde?

- Vem comigo!

- E a menina?

- Escreva um bilhete. Ela é grandinha e vai entender. Não devemos demorar, de todo jeito.

***

- Eu adoro este lugar!

- Eu também, mas não viemos cá, para ver o mar, ou viemos?

- Viemos, sim.

Eu olhei para ele, tentando perceber se falava sério, ou não. Era permaneceu impávido, a olhar para a frente. O mar estava agitado, como meu coração. Ele, mais alto que eu, posicionou-se por trás de mim e passou o braço pela minha cintura, puxando-me mais para perto dele. Pousou o queixo sobre meu ombro, com o rosto a roçar o meu. Eu fechei os olhos, apesar de ser fascinado pelo mar. Então ele sussurrou, ao meu ouvido.

- O que eu mais quero é estar contigo, aqui, ou em qualquer lugar. Estou cansado de lutar contra mim mesmo. Eu te quero muito… e não quero perder mais tempo.

- Eu devia te encher de porrada, sabias?

- Eu sei.

De onde estávamos, eu conseguia ouvir a velha canção, vindo da varanda do restaurante, que eu tanto frequentei, no passado.

…” They say that love can move a mountain
      They say love can break your heart 
      They say love can make you forget 
      Things that happened in the past
      For I've tasted your love and
      I need to taste some more 
      So wave goodbye to heaven for me
      I've thrown it all away 
      Just to spend one more night with you”…  
(*)

      (*) One more night with you: Ged McMahon

***