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sábado, 19 de outubro de 2019

De Jacinto (Parte final)



“Down on my knees, down on my knees once again... 
  I'm down on my knees, down on my knees once again... 
  Breaking in tears, breaking in tears once again...
  It's hard for me, but I'm trying”… (Adam Evald; “That Day”)

(De joelhos, de joelhos mais uma vez...
  Estou de joelhos, de joelhos mais uma vez...
 Desabando em lágrimas, desabando em lágrimas mais uma vez...
  É difícil para mim, mas estou tentando) … 


***

- O que é que tu fizeste?

- Se ele não for meu, também não será de ninguém...

- Estás louco? E o que fazemos agora?

Ele revelou aquele sorriso maléfico novamente, enquanto falava muito lenta e claramente.

- Eu… não vou fazer nada... Acabei de fazer o que queria... Tu é que precisas fazer alguma coisa, agora.

- Meu Deus! O que eu faço, então?

- Toma o teu remédio e eu desapareço... e tu terás que enfrentar um crime... sozinho... Ou podes chamar de acidente. Talvez eles acreditem, ou então...

- Porra! Que merda!

***

- Tu estás delirando! Não há nada lá.

- Juro que havia um corpo. Um homem morto! E estava ali!
   
- Quando foi a última vez que tomaste o comprimido?

- Não tenho certeza. Perdi a noção do tempo.

- Olhe para mim. Foco. Agora! Quanto tempo?

- Eu não sei. Algumas semanas, talvez.

- Semanas? Estás louco? Tu sabes que deves tomá-lo todos os dias!!! Como tu sabes que não estás alucinando?

- Eu não estou. Quero dizer, acho que não...

- Achas que não? Achas que não?!?!? O que significa isto? Não vês que podes ser condenado como cúmplice de um crime? Se houve realmente um crime!

- Eu não sou um cúmplice! Não incentivei e nem participei daquilo...

- Vais ter que provar a tua inocência, se encontrarmos o corpo.

Ele ajoelhou-se no chão, segurando a cabeça com as duas mãos e chorou, como uma criança, quando ouviram o som da sirene se aproximando.
***
Havia silêncio na escuridão. Havia escuridão naquele silêncio.

O homem olhou em volta. Parecia estar sozinho e não tinha certeza de onde estava. Ouviu um clique seco e, de repente, uma porta foi aberta. A luz pareceu perfurar seus olhos. Ele tentou cobrir o rosto com as duas mãos, mas não conseguiu movê-las. Já não estava mais sozinho.

- Como está se sentindo?

- O que é isso? Onde estou?

- Não se preocupe. Está seguro agora. Nós cuidaremos de você...

Os homens vestidos de branco se aproximaram mais. Ele teve a impressão de conhecer um deles. Viu seu amigo no canto da sala, mas aquilo poderia ser apenas uma impressão... ou sua mente brincando com ele.

Uma picada repentina no braço esquerdo o fez arregalar os olhos, mas logo sentiu que não poderia mantê-los abertos, por muito tempo. Ainda podia ouvir o barulho das pessoas conversando, mas as palavras foram desaparecendo, naquela mistura confusa de vozes diferentes.

Então, tudo ficou escuro... e silencioso...Novamente…
***
- Como ele está?

- Ele tem seus altos e baixos. Está saindo de outra crise. Seu caso tornou-se cada vez mais complexo, com o passar do tempo e com o fato de ele não ter tomado o medicamento por meses.

- Entendo…

O médico estava sendo o mais honesto e prático possível.

- Ele precisa ficar em terapia intensiva por um tempo ainda, antes que possamos liberá-lo.

- E vai ficar curado? Quero dizer, mesmo com um processo de prescrição vitalícia?

- Nunca teremos certeza... A vida é cheia de surpresas...
***
- Tu me vais ajudar a sair daqui?

- É isso que estou fazendo…

- Não. Assim não...

- É o único jeito, agora.

- Por favor…

- Uma vez tu me perguntaste se eu sabia o que sentias por mim e eu te disse que não era bom em expressar o que se passava em meu coração. Bem, eu pensei muito sobre isso, e concluí que a única forma de sair, é ficando cá. E digo isto, porque eu realmente me importo contigo. Mais do que qualquer outra coisa... eu estarei aqui para ti, o tempo todo.

Seus olhos estavam fixos no parceiro amado. Havia uma mistura de pena, preocupação e verdadeiro carinho. Ele tocou o rosto do amigo, muito levemente.

- Tu és tão bom para mim…

- E tu estás tão chapado...

Ele fechou os olhos e adormeceu com um sorriso no rosto.
***
O tempo, paciência, medicação e vigilância rigorosa provaram ser o tratamento mais eficaz para aquela sua esquizofrenia.

Os médicos o dispensaram do centro de tratamento, depois de decidir que estava pronto para voltar à sua vida quase normal, e para as coisas e pessoas a que estava acostumado, já que os sintomas pareciam haver desaparecido completamente.

Ele ficou aliviado e seu melhor amigo e mentor também. Eles precisavam de uma comemoração. Decidiram ir à casa de praia, pois ele queria passar um tempo à beira-mar, longe de médicos e enfermeiras.

Pegaram o carro e dirigiram-se para o litoral, para passar mais do que apenas naquele fim-de-semana fora.
***
- Não vás embora. Não quero mais que tu vás embora.

- Eu estou bem aqui. Não te preocupes. Eu não vou a lugar nenhum.

- Fico triste quando penso que ele morreu daquele jeito. Eu ainda me sinto culpado por toda esta confusão...

- Ele não está morto, bobo!

- Como assim?

- Como ele podia estar morto? Ele nunca foi real.

- Tu também não deverias estar aqui. Não mais... pelo menos... mas...

Ele sorriu. Aquele sorriso estranho de novo.

- Tua mente é mais poderosa do que tu consegues admitir! Já tomaste o medicamento hoje?

- Sim, claro.
- Então?

- Tu ainda estás aqui.

- Vês? Se depois de todo esse tempo tu ainda me vês... Bem, tu sabes somar dois e dois. Fico feliz que tenhas mantido nosso segredo, de que eu, nunca, realmente, desapareci. Agora, olhe em volta. Vês onde ele está? Naquele lado da praia, perto das pedras?

Ele deu alguns passos tímidos naquela direção.

Sua perceção de tudo ao seu redor parecia mais precisa e clara do que nunca: a brisa... o mar revolto... um som que ele conhecia muito bem...

O disco caiu perto de seus pés. Quando ele se inclinou para pegá-lo, ouviu uma risadinha e ergueu a cabeça. Os cabelos ruivos do homem brilhavam ao sol. 
- Oh! Deus! 
Ele deu-se conta do quanto amava aquele rosto bonito e masculino e aquele sorriso brilhante, quase mais radiante que o sol.

Ele olhou para o recém-chegado, sorrindo e sentindo-se aliviado. Os dois se abraçaram em silêncio e começaram a chorar, sentindo uma felicidade estranha e autêntica.

O céu acima deles estava muito límpido e azul. O vento rodopiou em volta deles e pareceu-lhes que recebiam um abraço e um beijo. Ouviu-se uma risada divertida.

Ele sabia o que acontecia. Zéfiro ria deles, naquele momento de intimidade, sem interferir mais que o necessário, para deixar-lhes saber que estava por perto.
***
Era um dia ensolarado e quente, e a brisa era realmente agradável. A mão de seu amigo pousou sobre seu ombro e ele se sentiu protegido, amado e, se aquilo fosse mesmo possível, tão livre quanto uma gaivota.

- Tu és a criatura mais gentil e mais amada do Universo! Eu nunca poderei agradecer o suficiente pela paciência, cuidado, atenção e...

- Oh! Pare com isso! Eu, realmente, me importo muito contigo…. e não tenho mais medo de dizer isso.

Tirou a t-shirt e livrou-se dos tênis e bermudas, depois caminhou direto para o mar, seguido de seu melhor amigo, que também estava nu e se sentindo tão livre quanto ele.

Duas figuras os observavam, sentados nas rochas, a uma distância segura.

Ele fingiu não vê-los, mas sentiu que ambos sorriam, divertindo-se com aquela cena.
***

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

De Jacinto (Parte 2)



- De todas as lendas mitológicas, a minha favorita sempre foi a de Apolo.

- Ah! A minha sempre foi a de Narciso!

- Faz sentido! E, mesmo te conhecendo do jeito que eu te conheço,  jamais teria adivinhado...

Eles se entreolharam, muito sérios, por um tempo e depois caíram na gargalhada.

***

As férias de verão estavam quase no fim e ele se preparava para voltar à sua vida normal. Havia decidido arrumar as coisas e colocá-las no porta-malas do carro, enquanto ainda era de manhã cedo, mas mudou de ideia, assim que abriu a porta.

Um lindo e ensolarado dia acabava de nascer e, embora inicialmente pretendesse deixar o local na hora do almoço, ele achou que seria melhor adiar a viagem para o final da tarde, para que pudesse relaxar e aproveitar seu último dia de paz, na praia.

O sol subia lentamente no céu. Logo estaria quente o suficiente.

Uma corrida rápida na praia seria boa para sentir-se livre e leve, antes de preparar sua mente e corpo para a semana seguinte e para as rotinas a que estava acostumado, incluindo as sessões de terapia. Ele tinha muitas coisas a conversar.

Mas não era o momento certo para pensar nos assuntos da semana. O que precisava, mesmo, era manter a cabeça tranquila até o fim daquele último dia, pelo menos.

Correu por alguns minutos pela praia e, quando voltou, olhou para o mar, que parecia convidá-lo, despiu-se e foi nadar. A água estava fria, mas o dia já estava razoavelmente quente. Ele pensou que era um homem de sorte, afinal.

Sorriu, quando pensou no amigo.

(- Nome engraçado!)

Eles se conheciam há algum tempo e ainda mantinham a mesma simpatia que tinham desde o início. Melhor dizendo: aquele sentimento ficara mais forte com o tempo e com a intimidade que eles compartilhavam. Além disso, havia um autêntico respeito que nutriam um pelo outro e isso fazia toda a diferença.

- Quanto tempo vais ficar na água ainda?

- Ahn? O quê?

- Vais congelar aí. Esta água está tão fria!

Ele não respondeu, mas percebeu que havia esquecido como a água estava fria, tão distraído que estava com seus próprios pensamentos. Sentiu seus músculos enrijarem. Era hora de sair do mar e voltar para casa.

***

- Tu sabes o que sinto a este respeito, não?

- Sim. E tu sabes que eu não sou bom em expressar meus sentimentos...

- O que tu vais fazer?

- Não posso fazer nada além do que já estou fazendo. Estou profundamente envolvido nisto, mas é o melhor que posso fazer... pelo menos por enquanto.

- Compreendo.

- Eu te desapontei, não foi?

- Na verdade, não. Eu tento manter meus dois pés, firmes, no chão.

- Nunca fiz promessas, porque sabia que não seria capaz de cumpri-las.

- Eu sei o que queres dizer. Foi só...

Ele parou no meio da frase. Ele quase disse e sabia que ter-se-ia arrependido logo depois, se o fizesse.

O outro homem simplesmente olhou para ele, com uma tristeza repentina nos olhos. Ele sabia exatamente como aquela frase poderia terminar. Infelizmente.

Ficaram em silêncio por um longo tempo. Foi um momento em que as palavras não significariam nada, porque ambos sabiam o idioma que seus corações falavam. Um silêncio caiu pesadamente entre eles.

Os dois evitaram olhar nos rostos e olhos um do outro. Suas lágrimas não lhes permitiam ver claramente, de qualquer maneira, mesmo que eles quisessem.

***

“I'll never forget what happened that day,
 The fear in your eyes, the cutting away
 You left to my world fine memories,
 But I've turned them into sworn enemies
 That day”... (Adam Evald; “That Day”)

(Nunca esquecerei o que aconteceu naquele dia,
 O medo em seus olhos, a separação
 Você deixou no meu mundo boas lembranças,
 Mas eu as transformei em inimigos jurados
 Naquele dia)...

- Essa música de novo? Tu nunca te cansas de ouvir?

Ele ignorou a ironia.

- Por que tu vens aqui sempre que me vês sozinho?

- Eu sinto que tu precisas de mim.

- Como podes?

Ele sorriu. Isso significava que não responderia. O homem já estava tão acostumado com aquilo, que nem tentou discutir.

- Vou ver um terapeuta hoje.

- Isso é uma estupidez e um grande desperdício. Tu não precisas de um.

- É isso que tu achas? Tu és o motivo pelo qual eu preciso ver um.

- Besteira! Não precisas de ninguém, além de mim.

- Arrogância? Agora? Deves estar de brincadeira comigo.

Ele sorriu de novo.

- Vá, se quiseres. Acho que estás errado, de qualquer maneira. Eu sei que não me vais dar razão, até que percebas que, realmente, não precisas da ajuda de um estranho.

- Eu sei e tu sabes que eu sei.

- Brincando com as palavras agora? Isso é tão típico em ti.

O homem simplesmente sorriu de volta. Como sua contraparte, ele não queria... nem precisava... responder à aquela provocação.

***

O homem sentou-se na poltrona de couro castanho, no lado esquerdo da sala, e esperou. O terapeuta havia-lhe perguntado se aceitava uma chávena de café.

O zumbido da máquina serviu de música de fundo para os seus pensamentos. Ele tentava encontrar uma maneira de iniciar a conversa. Sabia como a terapia funcionava e precisava ir direto ao ponto, por vários motivos. Quanto mais rápido o fizesse, melhor seria para os resultados. Além disso, havia razões pecuniárias a serem levadas em consideração, também.

- Eu preciso de ajuda. Urgentemente! Não é fácil dizer isso, mas é o único jeito.

- Bem, isto já é um bom começo. De que tipo de ajuda estás a falar?

- Não quero vir com um diagnóstico pronto e dizer o que preciso fazer, mas haverás de concordar comigo que vou precisar tomar medicamentos, o mais rápido possível.

- E o que te leva a pensar em algo assim?

- Confesso que já passei por isso antes e não levei a sério. Agora vejo que realmente preciso, ou, então, vou entrar em uma viagem de ida até o fim, completamente fora de controlo. E eu não gosto e nem quero uma coisa destas. Pensei que conseguiria lidar com o problema sozinho e sair ileso, mas não posso. Eu, simplesmente, não consigo.

- Do que estás falando? Vá direto ao ponto, por favor.

- Eu ouço vozes na minha cabeça o tempo todo e vejo pessoas que não existem, na realidade.

- E como tu sabes que elas não existem?

- Porque eu já fui diagnosticado como esquizofrênico!

***


domingo, 19 de maio de 2013

Outros Estudos em Vermelho e Azul - Parte 2



- E se eu me apaixonar por ti?

Ela não esperava por aquilo… A mensagem a piscar no espaço digital à sua frente, naqueles longos segundos, causou-lhe surpresa e um certo alarme. Em sua mente, foi como se uma luz vermelha acendesse, imediatamente, em reacção àquelas palavras.

(Oh, Deus! E se eu já estiver apaixonada por ti, meu menino?)

Como responder àquela pergunta, sem demonstrar todas as suas apreensões e suas dúvidas, somadas aos seus desejos tão cuidadosamente dissimulados e ao seu receio de perdê-lo?

E se ela não estivesse preparada para dizer-lhe, ou mesmo envolver-se mais que já realmente estava? Teria sido cedo demais? Relacionamentos são sempre tão complicados, ponderou a mulher, antes de tentar expressar o que realmente se passava na sua cabeça…

Por sorte, estavam apenas a conversar no ‘cyber-chat’, sem câmera ligada, por isso não precisava demonstrar as emoções expostas claramente em seu rosto naquele momento. Ela digitou a mensagem e acrescentou um ‘emoticon’, representando um abraço. Decidira ganhar tempo…

- Do que tens medo, meu amigo? De te machucar?

- Eu, na verdade, não sei do que tenho medo…

Ela ficou em silêncio… Aquela declaração havia sido quase óbvia. A nova experiência, com uma mulher madura e aparentemente mais experiente e destemida, podia ser a única razão pela qual ele pudesse ter algum receio de arriscar-se. Mas, afinal, o que ele perderia se, por acaso, se aventurasse a ficar com ela, enfrentando tantos temores e tantas inseguranças? Ela estaria lá, para ele, o tempo todo… ou, pelo menos, enquanto a eternidade do relacionamento durasse…

Sabendo o efeito que a próxima mensagem ia ter, ela digitou-a, premiu a tecla “Enter” e esperou.

- Só um OK? Tu sabes como eu odeio quando envias somente um “OK”… dás-me a impressão que não te importas… que não faz nenhuma diferença…

Ela riu e disse a si mesma, em voz alta: Faz diferença, sim. Claro que faz…

Ela sentia um enorme carinho por aquele rapaz que a fizera sentir-se feminina e viva, depois de um longo tempo. Ele já fazia parte de sua história, ela reconhecia. E aquela parte de si, que envolvia-se cada vez mais naquele relacionamento, confirmava as palavras que ela havia pronunciado em alta voz. Fazia uma diferença, sim… e esta diferença era bem grande…

E pensar que todo aquele envolvimento começara a partir de um desvio casual de estratégia, para evitar o contacto com outro personagem, inconveniente, que costumava fazer suas investidas num bar recentemente inaugurado, à beira do rio…

Seus olhos perderam o foco, automaticamente, quando as lembranças preencheram sua mente, como numa avalanche incontrolada de memórias.

***

Vermelho…

A luz do sol de fim de tarde de verão, que infiltrava-se pela parte de cima do vitral em arco - decorado com pequenos detalhes florais um tanto ‘sui generis’, à volta de um fundo vermelho, acima da linha de luminárias penduradas no teto abobadado - causava um efeito luminoso bastante encantador a quem entrava. Na parte central do grande salão, um bar fora construído em forma ovalada, de modo a ter-se acesso por todos os lados, sem causar filas de atendimento aos usuários.

‘O Templo’ era o lugar da moda. Os vitrais coloridos nas janelas em arco gótico lembravam antigas igrejas, fazendo com que a incidência da luz do dia diminuísse a necessidade de lâmpadas e luminárias acesas e tingisse o ambiente com vários matizes de cores intensas.

A acústica era bem projectada, de maneira a não criar reverberações devido ao alto pé direito do edifício e aproveitar a distribuição dos altifalantes no grande salão, ainda assim permitindo que se conversasse em tom razoavelmente baixo, sem poluir o ambiente, devido ao volume da música ambiente. Tudo havia sido cuidadosamente calculado, de modo a tornar o lugar devidamente aconchegante e convidativo.

O ‘happy hour’ era um acontecimento à parte. Música ‘Vintage’ para um grupo mais tranquilo de frequentadores, que mudava consideravelmente à partir de um certo horário mais adiantado da noite. Às quintas-feiras, especialmente, transformava-se em uma grande festa com música electrónica e dança num ambiente paralelo. Era noite da juventude e, assim, evitada pelos mais tradicionais.

Um longo e cansativo expediente havia terminado e a investigadora de polícia decidira conhecer aquele novo estabelecimento, do qual já muito ouvira falar, construído à beira da foz do rio. Precisava beber algo… talvez um refresco, talvez uma bebida mais forte.

Quando entrou, a atmosfera pareceu-lhe um tanto surreal. O ambiente era encantadoramente criativo e inovador, tocando música bastante a seu gosto - incomum, até - em um volume deliciosamente relaxante, àquela hora da tarde. Um facho de luz colorida - que vinha de cima, em um ângulo agudo com o piso de madeira pesada e escura - quase transformava o rapaz recostado no balcão, em personagem de um estranho conto de fadas, pintado em matizes luminosos de vermelho.

Ele estava virado para a entrada, brincando com um copo de cerveja à mão. Moveu-se para frente, saindo do facho de luz filtrada pelo vitral. Ela percebeu sua mais fascinante característica, assim que os viu pela primeira vez…

Azuis… como as águas do Oceano Pacífico…

Era assim que ele se referia aos seus próprios olhos. Estes eram de um tom de cobalto tão intenso e tão brilhante, que atraíram a atenção da investigadora quase de imediato. Acima deles, molduras de sobrancelhas quase invisíveis, decoravam-lhe o olhar maroto.

A barba de pelos aloirados – estrategicamente deixada por fazer já havia alguns dias -, adornava a atraente e harmoniosa face - masculina e angelical, ao mesmo tempo. O sorriso era largo e adorável, com dentes bem proporcionados e asseadamente brancos. Os lábios eram demasiadamente bem desenhados. Os cabelos claros, com os quais o vento de fim da tarde brincava, todas as vezes que a porta se abria, desafiava-a a desviar o olhar, que já se encontrava magnetizado pela beleza ímpar do rapaz.

Ela perdeu a noção do tempo a contemplar o impossível – ou inatingível -, no que pareceu-lhe um momento infinitamente longo. Os olhos que miram o sol por muito tempo podem ficar irremediavelmente queimados, foi o que pode perceber logo em seguida.

Misha tinha plena ciência de haver causado um efeito surpreendente na mulher que acabara de entrar e que não desviava os olhos de si. Sabia que era observado com grande interesse e fazia seu show particular a provocar, enquanto ouvia e cantarolava, ao mesmo tempo, a canção que lhes servia de trilha sonora para aquele momento – uma fusão de jazz moderno com bossa nova – levemente dançante e altamente sensual.

“When loving me is so easy, then why do I feel twisted, Cupid?” (from ‘Twisted Cupid’ – by Slow Train Soul)

Aquele jovem homem sabia usar seu charme de uma maneira extremamente provocante e com a maior naturalidade. Quando cruzou o olhar com o dela, mostrou-lhe seu melhor sorriso, sabendo que sua jogada era magistral e a mulher que o observava estava fascinada pela sua figura imponentemente sedutora.

Na verdade, porém, sua presença ali não era tão inofensiva quanto pareceu-lhe à primeira vista. Em pouco tempo, seus olhos treinados perceberam mais que segundas intenções naquela parada para um nem tão inocente drink ao final da tarde. Ali havia mais mistérios encobertos, que ela decidira tentar desvendar, sem que deixasse ele perceber suas reais intenções. Sob uma fachada de modelo profissional, ele escondia o lado um tanto mais obscuro de sua personalidade. Ser um ‘escort’ não era, definitivamente, sua menos bem-vista ocupação…

Passou a visitar o ‘Templo’ assiduamente. Às vezes ia sozinha, às vezes encontrava-se com uma amiga, que era fotógrafa e repórter.

Em pouco tempo conseguiu avaliar o seu comportamento e perceber o tipo de pessoa que o rapaz era. Aproximar-se dele e incitar conversa havia sido um acto natural, já que sua presença naquele lugar tinha um objectivo que tornou-se claro com o passar do tempo.

Assim que conversaram pela primeira vez, a imagem que ela tinha dele decaiu muito, mas piorou bastante nas ocasiões seguintes. Ela já estava acostumada com pessoas que não sabiam ouvir, por terem o ego demasiadamente inchado, mas Misha ultrapassava todas as expectativas. Não demorou a revelar-se um grande manipulador. Esta característica dele, porém, ela conseguiu detectar a tempo de não se permitir ser usada ou de fazer alguma grande tolice.

Aquele encanto inicial fenecera rapidamente, tão logo compreendera quem ele era, por trás daquela atraente - porém vazia - beleza física. Por dentro não passava de um homem um tanto amargo e muitíssimo petulante - bastante patético e, até certo ponto, tocando as raias do pedantismo. Uma pessoa que deixava muito a desejar em termos de confiança e com uma tendência muito clara a se aproveitar das fragilidades das pessoas. Ele não recebeu bem sua recusa em ajudá-lo em seus esquemas para levantar dinheiro ou em acreditar em suas histórias trágicas, que sempre apareciam, devido ao seu sangue quente e arrogância natural da juventude, aliados a um narcisismo soberbamente agigantado.

Decidiu ter cautela ao tratar com ele, para sua própria segurança.

Como já seria de esperar, foi fácil decepcionar-se mais, com o passar do tempo. Numa briga de rua, os envolvidos foram parar na delegacia onde a investigadora trabalhava. Por um infeliz acaso, ela cruzou a sala, no momento em que Misha esperava sua vez de dar declaração. Ele logo percebeu sua presença. Seus perspicazes olhos pousaram sobre ela, com curiosidade intrigante. Franziu o cenho, como se estranhasse vê-la naquele lugar, tão à vontade. Ela desviou-se sem dar nenhum sinal de reconhecê-lo. Ele ainda tentou chamar-lhe a atenção, mas ela desapareceu da vista, antes de demonstrar qualquer reacção. O rapaz, percebendo que ela o evitara, registou o comportamento da mulher no seu subconsciente, assim como aquela nova informação que acabara de obter, como se fosse um bem-vindo presente do destino. Haveria de aparecer uma oportunidade para utilizar aquela novidade. Bastava ter paciência…. E ele não ia perder nada por esperar. Apesar de estar sendo registado na delegacia de polícia por atentado à ordem pública, o rapaz de cabelos loiros e olhos azuis sorriu. Acabara de arranjar uma carta útil, para manter escondida na manga, até a hora certa de jogar. 

Ela resolveu evitar sua frequência habitual ao ‘Templo’. Não queria expor-se tão cedo. Talvez o incidente pudesse ser esquecido em pouco tempo, mas ela tinha receio que ele fosse cobrar uma explicação para sua atitude do outro dia.

O ‘Café’ da esquina, próximo à sua morada, pareceu-lhe ser a alternativa mais viável, para desestressar no final do dia… pelo menos enquanto ela tentasse evitar encontrar-se com o belo, porém perigoso, Misha.

***

Vermelho… Azul... Vermelho… Azul… Vermelho... Azul…

- Pare de olhar estas luzes assim. Tu não podes mudar o que aconteceu. Não há mais nada que se possa fazer agora… Vamos embora daqui. Entre no carro. É tarde demais...

Ela não parava de falar… e aquela falácia era uma tortura sem igual na minha cabeça, já bastante fatigada e completamente atormentada. Por que as mulheres insistem tanto em pensar que sempre sabem tudo? Eu sou uma e não penso assim… Deve ter algo muito errado comigo…

Ela agarrou-me o braço com força e olhou-me com uma firmeza perceptivelmente intimidadora, abstraindo-me da atenção fixa às luzes a girar. Se não fosse a pessoa em quem eu mais confiasse - uma das poucas amigas que ainda tinha, certamente a teria mandado calar-se e teria me desvencilhado de suas mãos com um puxão – se tivesse encontrado forças para tal, naquela hora.

Embora não tivesse que esconder minhas emoções, devo admitir que ela estava certa, afinal. Minha amiga, uma brilhante fotógrafa e repórter, embora tomando uma atitude que me incomodava, naquele exacto momento, tencionava tão-somente proteger-me.

Eu estava esgotada, pálida e prestes a perder o equilíbrio e o controlo. Precisava concentrar-me e recompor-me antes que fizesse alguma asneira. Minha vontade, porém, era somente de gritar... e gritar alto… bem alto!

(Por que eu não cheguei apenas uns míseros minutos antes, meu Deus, por que? Tanta coisa podia ser diferente… por que, meu Deus, por que?)

A coerência, porém, forçava-me a engolir minha dor, meu orgulho e minha fraqueza, para não desabar ali mesmo, na frente de tanta gente. Entrei no carro, mas não consegui dar a partida de imediato. Ela também entrou e sentou-se ao meu lado - desta vez calada - mas atenta aos meus mínimos movimentos, como uma desconfiada gata, à espreita de toda actividade à sua volta e pronta a não deixar passar nada, sem que visse ou interferisse instintivamente.


As atenções dos curiosos, técnicos e policiais ainda estavam todas voltadas para a cena a desenrolar-se a poucos metros do carro. Eu sentia como se estivesse fora daquele contexto, vendo tudo de fora, como num filme, numa atmosfera bastante surreal. Quase não acreditava o que via diante dos meus olhos cansados. Aquilo não podia estar, realmente, acontecendo.

As luzes acesas no topo das viaturas policiais, que formavam um paredão de isolamento de um lado da rua, continuavam a girar e a pintar o cenário, alternadamente, de vermelho… e azul… e vermelho… e azul…

Fechei os olhos e respirei fundo… Quando os abri, minha visão ainda estava turva pelas lágrimas que retive, mas decidi ser mais forte que meu sofrimento. Eu sou uma policial condicionada a controlar minhas emoções e ser coerente e fria, especialmente diante de situações consideradas fortes pela maioria das pessoas… Eu sabia que tinha de ser mais que forte, diante daquela cena, que me abalara, sensível e consideravelmente, as estruturas, mostrando que, apesar de bem treinada, eu era humana, afinal de contas…

Ela me conhecia muito bem e decidira não dizer uma palavra a mais, felizmente, enquanto aguardava que eu me recompusesse. Levantei a cabeça, decidida, pigarreei alto e com energia forçada e girei a chave na ignição…

***

Deitada, sentindo-se estranhamente desconfortável no macio divã da analista, a inquieta mulher contava a angústia que passara nos últimos dias. Ao mesmo tempo, sentia sua dor revivida em detalhes, em cada palavra que usava para descrever o que vira e sentira e que a fizera estar ali, naquele consultório, sobriamente decorado em tons de sépia e âmbar, a falar de si – uma das situações mais difíceis que se aventurara a enfrentar.

A terapia havia sido encaminhada pelo médico de plantão, que a socorrera, após o princípio de colapso por stress e excesso de horas em vigília e, provavelmente, trabalho compulsivo. Mal sabia ele, que a verdadeira razão do ataque de depressão, estava directamente ligada ao mistério à volta do crime que ela tinha que resolver… tanto as causas, quanto as consequências, a tirar-lhe noites de sono…

A psicoterapeuta, uma mulher de idade indefinida – uma matrona de mais de quarenta anos, com certeza - daquelas que imagina-se, mas não consegue-se precisar exactamente quantos anos já vivera, induziu-a a percorrer um caminho dolorosamente trilhado, enquanto aplicava pressão em pontos específicos nas plantas dos bem cuidados pés da investigadora de polícia. Suas técnicas de shiatsu e reflexologia, associadas a um planeado exercício mental, onde uma bem definida linha condutora era dada como guia, tinham um objectivo muito específico no tratamento: perceber os mecanismos da mente em dissociar e recompor os detalhes da memória dos acontecimentos e apresentar saídas propostas pela própria paciente.

A mulher fechou, lentamente, os olhos. Tanto na sua cabeça, como diante de si, uma sequência de cores continuava a piscar insistentemente, incessantemente, hipnoticamente, … como se lâminas giratórias de luz fossem alternadamente recortando as memórias e suas percepções, … ora em azul… ora em vermelho… azul… vermelho…azul… vermelho…

A triste visão dos olhos azuis a mirar o nada e uma grande poça vermelha formando-se, lentamente, à sua volta, atormentavam-na sem lançar um simples vestígio de como encontrar uma saída…

Encurralados na mente grandemente perturbada pelo sentimento de perda, seus devaneios iam e vinham, misturando realidade e imaginação, num processo habilmente conduzido pela terapeuta, que ia dando inputs para uma e outra linha de reflexão, a fim de encontrar uma forma de escapar do labirinto em que se encontrava. Era importante trazer à memória os factos e tentar captar mais detalhes escondidos nos acontecimentos. Sua maior preocupação, porém, era desvendar o mistério que envolvia o evento recentemente vivenciado e que a abalara tão grandemente. Cada uma com um objectivo distinto, ambas trabalhavam para encontrar as respostas certas.

Quem me dera não haver estado naquele lugar, nem naquele momento difícil de suportar. Se pudesse reviver este último dia da minha vida, eu mudaria tudo… quantos equívocos podem-se fazer no mesmo dia? Quantas vezes o mesmo erro pode ser cometido, até se perceber que é um erro? Quantas vezes pode-se insistir, até que a vida canse e mostre, com tratamento de choque, que tudo não passa de uma grande estupidez e que desta forma tem ser reconhecida e assumida?

- Vais ter que te acostumar a viver com teus erros, disse a terapeuta. Eles fazem parte do aprendizado…

- Mas este custou a vida de um inocente, mulher… será que é tão difícil perceber isto? E não me trate como uma adolescente. Eu sei a extensão dos meus erros e conheço estas teorias de psicologia...

Ela mordeu o lábio, para não soltar um palavrão, que estava a ponto de sair. Às vezes era mesmo difícil controlar-se, especialmente quando sua irritação fugia das raias do aceitável eticamente.

- A culpa pelo que ocorreu não é tua. Tu não és responsável pelos actos de outros… especialmente, de maníacos e assassinos…

- Mas fui eu que provoquei a ira ”de outros”, disse ela, colocando uma boa dose de ironia e um certo deboche na voz, ao pronunciar a expressão recentemente dita pela outra. E eu me sinto responsável…

A terapeuta abanou a cabeça, num gesto conhecido, que ela já sabia interpretar e que significava que não adiantava discutir, pois nenhum argumento seria suficientemente forte para fazê-la aceitar ou mudar de opinião.

Não havia nada mais que pudesse ser feito, era verdade, mas não era - de maneira alguma - tarde demais.

Ao contrário, a investigação – e talvez muito mais que um simples processo policial - apenas começava. Era sua questão pessoal de honra ir ao fundo do caso e descobrir não somente as razões, mas também punir severamente o culpado.