terça-feira, 9 de abril de 2019

Uma Noite A Mais (Epílogo)



Nós ouvimos a campainha da porta tocar. Minha filha levantou-se e foi atender, não sem antes verificar quem era, pelo olho mágico.

- Posso entrar?

- Claro.

Eu me virei, sem dizer nada, ao reconhecer a voz.

- Podemos conversar uns minutos? Prometo que tentarei ser breve.

Ela pegou as coisas dela, meio às pressas, e disse:

- Eu tenho que ir ao supermercado comprar umas coisinhas e já volto. Fiquem à vontade!

Aquela saída estratégica era sua forma de tentar deixar-nos a sós, para resolvermos nossas pendências, ou colocar a conversa em dia, embora eu soubesse que não ia ser nada fácil.

Eu esperei que ele chegasse mais perto, sem sorrir. Ele parecia pouco à vontade e muito sério, também.

- Sente-se.

Ele sentou-se na ponta do assento da poltrona, de frente para mim. Esfregou as mãos e começou a falar, com a voz muito baixa.

- Eu sei que tenho sido um idiota…

***

Ele me olhou com aqueles seus olhos claros. Não consegui fitá-los por muito tempo. Tinha verdadeiro receio do que eu sentia. Minha cabeça ainda estava confusa com o que havia acabado de ouvir.

- Não vais dizer mais nada?

- Não sei o que dizer. Não esperava ouvir isto, desta forma.

- Mas é o que eu sinto. Sei que tu deves achar que eu tenho de ter certeza, antes de me jogar de cabeça, mas acredito no que eu sinto, apesar das minhas inseguranças. Nunca pensei que fosse acontecer algo assim comigo, mas prefiro tentar e falhar, se for o caso, do que nunca tentar... E eu quero tentar…

- Isso não vai ser nada fácil.

- Eu sei. Nunca é. Mas não diz respeito a mais ninguém, além de nós. Não temos que dar satisfação a ninguém.

- Eu não sei o que dizer. É uma coisa muito nova. Nem sei como reagir.

- Nem eu. Mas podemos tentar juntos. Não temos nada a perder…

Ele levantou-se e tomou minhas mãos nas suas. Eu tentei baixar o olhar, mas o peso daqueles olhos fixos nos meus, me impediu. Ele passou os braços em torno da minha cintura e puxou-me para mais perto dele, abraçando-me, sem preocupação. Eu não pensei muito. Aconcheguei minha cabeça no seu peito e tentei deixar-me levar. Mal sabia eu que aquele envolvimento ia ser mais profundo que um simples abraço.

***

- Já se passaram tantos anos, por que agora?

- Eu pensei que conseguia ficar longe, mas vejo que não. Nunca consegui deixar de pensar em vocês.

- O que aconteceu com a tua “nova vida”?

Ele percebeu a ironia na pronúncia da expressão que usara, quando nos disse que ia partir de volta para a terra natal e tratar dos negócios da família. Pareceu-me uma desculpa tão fraca, mas ele disse que tinha feito uma promessa e que ia assumir as atividades, se o pai viesse a faltar. Claro que ele sabia que eu não o acompanharia, mas sempre haveria um jeito de contornar certas coisas. Mas ele preferiu manter-se à distância e fomos perdendo contacto, pouco a pouco, como seria natural, em situações similares.

Injusto, pouco comprometido, egoísta e sem consideração, foram apenas alguns dos adjetivos que eu usei, na época, mas desconfiava que havia muito mais por trás daquela decisão. Ele tinha medo de compromissos mais sérios, pelo que eu pude perceber. E a nossa relação estava a ficar séria demais.

Enfim, eu e minha filha continuamos nossas vidas, como não poderia deixar de ser, por um longo tempo e sem ele. Ela cresceu, estudou, tornou-se uma pessoa responsável e muito centrada. Evitávamos falar sobre o passado. Ela era apenas uma criança, mas lembrava do que havia entre nós e sentia falta do carinho dele, também.

- Estou sozinho, agora. Já não pertenço a nenhum lugar.

- Sei. E o que isso muda?

- Não muda… mas pensei muito… em tudo. Tive tempo de sobra para isso…

- E não pertences a ninguém?

- Nunca pertenci a ninguém. Tu sabes disso. E não houve mais ninguém na minha vida, depois de ti. Estava muito ocupado com o trabalho, mas sempre pensava em nós, em ti, em vocês dois.

Eu olhei para ele, meio sem acreditar. Um homem daqueles, sem ninguém e por aquele tempo todo? Impossível. Mas resolvi não discutir. Não era pertinente, ou melhor: já não era relevante.

- Por quanto tempo ficarás por cá?

Eu nem sabia se devia ter feito aquela pergunta. Tinha medo do que ele ia responder.

- Não sei.

Resposta perfeita, já que era o mesmo que resposta nenhuma. Como de costume, em ocasiões parecidas, ele respondia, sem responder.

- Sei. Afinal o que vieste fazer? Matar as saudades?

- Também, mas não só…

- Ah. Não só…

Desviei o olhar.

- Olha para mim.

Eu quis fugir, mas não consegui.

- O que tu queres, afinal?

- Uma outra hipótese. Sei que eu fiz uma grande burrada, indo embora, do jeito que fui, mas eu pensei muito e eu quero que dê certo… mais certo… desta vez. 

Minha vontade era bater nele, com força. Eu estava cansado, triste, com um pouco de raiva, pelo que havíamos passado e ainda não sabia o que pensar. Só sabia que não sabia de mais nada.

Ele levantou-se. Puxou-me pela mão, dizendo:

- Vem comigo!

- O quê? Para onde?

- Vem comigo!

- E a menina?

- Escreva um bilhete. Ela é grandinha e vai entender. Não devemos demorar, de todo jeito.

***

- Eu adoro este lugar!

- Eu também, mas não viemos cá, para ver o mar, ou viemos?

- Viemos, sim.

Eu olhei para ele, tentando perceber se falava sério, ou não. Era permaneceu impávido, a olhar para a frente. O mar estava agitado, como meu coração. Ele, mais alto que eu, posicionou-se por trás de mim e passou o braço pela minha cintura, puxando-me mais para perto dele. Pousou o queixo sobre meu ombro, com o rosto a roçar o meu. Eu fechei os olhos, apesar de ser fascinado pelo mar. Então ele sussurrou, ao meu ouvido.

- O que eu mais quero é estar contigo, aqui, ou em qualquer lugar. Estou cansado de lutar contra mim mesmo. Eu te quero muito… e não quero perder mais tempo.

- Eu devia te encher de porrada, sabias?

- Eu sei.

De onde estávamos, eu conseguia ouvir a velha canção, vindo da varanda do restaurante, que eu tanto frequentei, no passado.

…” They say that love can move a mountain
      They say love can break your heart 
      They say love can make you forget 
      Things that happened in the past
      For I've tasted your love and
      I need to taste some more 
      So wave goodbye to heaven for me
      I've thrown it all away 
      Just to spend one more night with you”…  
(*)

      (*) One more night with you: Ged McMahon

***


1 comentário:

  1. Termina a história de estranho relacionamento, cheio de contradições e controvérsias.

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