Nós ouvimos a campainha da
porta tocar. Minha filha levantou-se e foi atender, não sem antes verificar
quem era, pelo olho mágico.
- Posso entrar?
- Claro.
Eu me virei, sem dizer nada,
ao reconhecer a voz.
- Podemos conversar uns minutos? Prometo que tentarei ser breve.
Ela pegou as coisas dela,
meio às pressas, e disse:
- Eu tenho que ir ao supermercado comprar umas coisinhas e já volto.
Fiquem à vontade!
Aquela saída estratégica era
sua forma de tentar deixar-nos a sós, para resolvermos nossas pendências, ou
colocar a conversa em dia, embora eu soubesse que não ia ser nada fácil.
Eu esperei que ele chegasse
mais perto, sem sorrir. Ele parecia pouco à vontade e muito sério, também.
- Sente-se.
Ele sentou-se na ponta do
assento da poltrona, de frente para mim. Esfregou as mãos e começou a falar,
com a voz muito baixa.
- Eu sei que tenho sido um idiota…
***
Ele me olhou com aqueles
seus olhos claros. Não consegui fitá-los por muito tempo. Tinha verdadeiro
receio do que eu sentia. Minha cabeça ainda estava confusa com o que havia
acabado de ouvir.
- Não vais dizer mais nada?
- Não sei o que dizer. Não esperava ouvir isto, desta forma.
- Mas é o que eu sinto. Sei que tu deves achar que eu tenho de ter
certeza, antes de me jogar de cabeça, mas acredito no que eu sinto, apesar das
minhas inseguranças. Nunca pensei que fosse acontecer algo assim comigo, mas
prefiro tentar e falhar, se for o caso, do que nunca tentar... E eu quero tentar…
- Isso não vai ser nada fácil.
- Eu sei. Nunca é. Mas não diz respeito a mais ninguém, além de nós. Não
temos que dar satisfação a ninguém.
- Eu não sei o que dizer. É uma coisa muito nova. Nem sei como reagir.
- Nem eu. Mas podemos tentar juntos. Não temos nada a perder…
Ele levantou-se e tomou
minhas mãos nas suas. Eu tentei baixar o olhar, mas o peso daqueles olhos fixos
nos meus, me impediu. Ele passou os braços em torno da minha cintura e puxou-me
para mais perto dele, abraçando-me, sem preocupação. Eu não pensei muito.
Aconcheguei minha cabeça no seu peito e tentei deixar-me levar. Mal sabia eu
que aquele envolvimento ia ser mais profundo que um simples abraço.
***
- Já
se passaram tantos anos, por que agora?
- Eu
pensei que conseguia ficar longe, mas vejo que não. Nunca consegui deixar de
pensar em vocês.
- O
que aconteceu com a tua “nova vida”?
Ele percebeu a ironia na pronúncia da
expressão que usara, quando nos disse que ia partir de volta para a terra natal
e tratar dos negócios da família. Pareceu-me uma desculpa tão fraca, mas ele
disse que tinha feito uma promessa e que ia assumir as atividades, se o pai
viesse a faltar. Claro que ele sabia que eu não o acompanharia, mas sempre
haveria um jeito de contornar certas coisas. Mas ele preferiu manter-se à
distância e fomos perdendo contacto, pouco a pouco, como seria natural, em
situações similares.
Injusto, pouco comprometido, egoísta e sem
consideração, foram apenas alguns dos adjetivos que eu usei, na época, mas
desconfiava que havia muito mais por trás daquela decisão. Ele tinha medo de
compromissos mais sérios, pelo que eu pude perceber. E a nossa relação estava a
ficar séria demais.
Enfim, eu e minha filha continuamos nossas
vidas, como não poderia deixar de ser, por um longo tempo e sem ele. Ela
cresceu, estudou, tornou-se uma pessoa responsável e muito centrada. Evitávamos
falar sobre o passado. Ela era apenas uma criança, mas lembrava do que havia
entre nós e sentia falta do carinho dele, também.
-
Estou sozinho, agora. Já não pertenço a nenhum lugar.
- Sei.
E o que isso muda?
- Não
muda… mas pensei muito… em tudo. Tive tempo de sobra para isso…
- E
não pertences a ninguém?
-
Nunca pertenci a ninguém. Tu sabes disso. E não houve mais ninguém na minha
vida, depois de ti. Estava muito ocupado com o trabalho, mas sempre pensava em nós,
em ti, em vocês dois.
Eu olhei para ele, meio sem acreditar. Um
homem daqueles, sem ninguém e por aquele tempo todo? Impossível. Mas resolvi
não discutir. Não era pertinente, ou melhor: já não era relevante.
- Por
quanto tempo ficarás por cá?
Eu nem sabia se devia ter feito aquela
pergunta. Tinha medo do que ele ia responder.
- Não
sei.
Resposta perfeita, já que era o mesmo que resposta
nenhuma. Como de costume, em ocasiões parecidas, ele respondia, sem responder.
- Sei.
Afinal o que vieste fazer? Matar as saudades?
-
Também, mas não só…
- Ah. Não
só…
Desviei o olhar.
- Olha
para mim.
Eu quis fugir, mas não consegui.
- O
que tu queres, afinal?
- Uma
outra hipótese. Sei que eu fiz uma grande burrada, indo embora, do jeito que
fui, mas eu pensei muito e eu quero que dê certo… mais certo… desta vez.
Minha vontade era bater nele, com força. Eu
estava cansado, triste, com um pouco de raiva, pelo que havíamos passado e
ainda não sabia o que pensar. Só sabia que não sabia de mais nada.
Ele levantou-se. Puxou-me pela mão, dizendo:
- Vem
comigo!
- O
quê? Para onde?
- Vem
comigo!
- E a
menina?
-
Escreva um bilhete. Ela é grandinha e vai entender. Não devemos demorar, de
todo jeito.
***
- Eu
adoro este lugar!
- Eu também,
mas não viemos cá, para ver o mar, ou viemos?
-
Viemos, sim.
Eu olhei para ele, tentando perceber se
falava sério, ou não. Era permaneceu impávido, a olhar para a frente. O mar
estava agitado, como meu coração. Ele, mais alto que eu, posicionou-se por trás
de mim e passou o braço pela minha cintura, puxando-me mais para perto dele.
Pousou o queixo sobre meu ombro, com o rosto a roçar o meu. Eu fechei os olhos,
apesar de ser fascinado pelo mar. Então ele sussurrou, ao meu ouvido.
- O
que eu mais quero é estar contigo, aqui, ou em qualquer lugar. Estou cansado de
lutar contra mim mesmo. Eu te quero muito… e não quero perder mais tempo.
- Eu
devia te encher de porrada, sabias?
- Eu
sei.
De onde estávamos, eu conseguia ouvir a velha
canção, vindo da varanda do restaurante, que eu tanto frequentei, no passado.
…” They
say that love can move a mountain
They say love can break your heart
They say love can make you forget
Things that happened in the past
They say love can break your heart
They say love can make you forget
Things that happened in the past
For
I've tasted your love and
I need to taste some more
So wave goodbye to heaven for me
I've thrown it all away
Just to spend one more night with you”… (*)
I need to taste some more
So wave goodbye to heaven for me
I've thrown it all away
Just to spend one more night with you”… (*)
(*) One more night with you: Ged McMahon
***
Termina a história de estranho relacionamento, cheio de contradições e controvérsias.
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