- De todas as lendas mitológicas, a minha
favorita sempre foi a de Apolo.
- Ah! A minha sempre foi a de Narciso!
- Faz sentido! E, mesmo te conhecendo do
jeito que eu te conheço, jamais teria
adivinhado...
Eles se entreolharam,
muito sérios, por um tempo e depois caíram na gargalhada.
***
As
férias de verão estavam quase no fim e ele se preparava para voltar à sua vida
normal. Havia decidido arrumar as coisas e colocá-las no porta-malas do carro,
enquanto ainda era de manhã cedo, mas mudou de ideia, assim que abriu a porta.
Um
lindo e ensolarado dia acabava de nascer e, embora inicialmente pretendesse
deixar o local na hora do almoço, ele achou que seria melhor adiar a viagem para
o final da tarde, para que pudesse relaxar e aproveitar seu último dia de paz, na
praia.
O
sol subia lentamente no céu. Logo estaria quente o suficiente.
Uma
corrida rápida na praia seria boa para sentir-se livre e leve, antes de preparar
sua mente e corpo para a semana seguinte e para as rotinas a que estava
acostumado, incluindo as sessões de terapia. Ele tinha muitas coisas a
conversar.
Mas
não era o momento certo para pensar nos assuntos da semana. O que precisava, mesmo,
era manter a cabeça tranquila até o fim daquele último dia, pelo menos.
Correu
por alguns minutos pela praia e, quando voltou, olhou para o mar, que parecia
convidá-lo, despiu-se e foi nadar. A água estava fria, mas o dia já estava razoavelmente
quente. Ele pensou que era um homem de sorte, afinal.
Sorriu,
quando pensou no amigo.
(- Nome engraçado!)
Eles
se conheciam há algum tempo e ainda mantinham a mesma simpatia que tinham desde
o início. Melhor dizendo: aquele sentimento ficara mais forte com o tempo e com
a intimidade que eles compartilhavam. Além disso, havia um autêntico respeito que
nutriam um pelo outro e isso fazia toda a diferença.
- Quanto tempo vais ficar na
água ainda?
- Ahn? O quê?
- Vais congelar aí. Esta água
está tão fria!
Ele
não respondeu, mas percebeu que havia esquecido como a água estava fria, tão
distraído que estava com seus próprios pensamentos. Sentiu seus músculos enrijarem.
Era hora de sair do mar e voltar para casa.
***
- Tu sabes o que sinto a este
respeito, não?
- Sim. E tu sabes que eu não
sou bom em expressar meus sentimentos...
- O que tu vais fazer?
- Não posso fazer nada além
do que já estou fazendo. Estou profundamente envolvido nisto, mas é o melhor que
posso fazer... pelo menos por enquanto.
- Compreendo.
- Eu te desapontei, não foi?
- Na verdade, não. Eu tento
manter meus dois pés, firmes, no chão.
- Nunca fiz promessas, porque
sabia que não seria capaz de cumpri-las.
- Eu sei o que queres dizer.
Foi só...
Ele
parou no meio da frase. Ele quase disse e sabia que ter-se-ia arrependido logo
depois, se o fizesse.
O
outro homem simplesmente olhou para ele, com uma tristeza repentina nos olhos.
Ele sabia exatamente como aquela frase poderia terminar. Infelizmente.
Ficaram
em silêncio por um longo tempo. Foi um momento em que as palavras não
significariam nada, porque ambos sabiam o idioma que seus corações falavam. Um
silêncio caiu pesadamente entre eles.
Os
dois evitaram olhar nos rostos e olhos um do outro. Suas lágrimas não lhes
permitiam ver claramente, de qualquer maneira, mesmo que eles quisessem.
***
“I'll never forget what happened that day,
The fear in your eyes, the cutting away
You left to my world fine memories,
But I've turned them into sworn enemies
That day”... (Adam Evald; “That Day”)
(Nunca
esquecerei o que aconteceu naquele dia,
O
medo em seus olhos, a separação
Você
deixou no meu mundo boas lembranças,
Mas
eu as transformei em inimigos jurados
Naquele
dia)...
- Essa música de novo? Tu
nunca te cansas de ouvir?
Ele
ignorou a ironia.
- Por que tu vens aqui sempre
que me vês sozinho?
- Eu sinto que tu precisas de
mim.
- Como podes?
Ele
sorriu. Isso significava que não responderia. O homem já estava tão acostumado
com aquilo, que nem tentou discutir.
- Vou ver um terapeuta hoje.
- Isso é uma estupidez e um grande
desperdício. Tu não precisas de um.
- É isso que tu achas? Tu és
o motivo pelo qual eu preciso ver um.
- Besteira! Não precisas de
ninguém, além de mim.
- Arrogância? Agora? Deves
estar de brincadeira comigo.
Ele
sorriu de novo.
- Vá, se quiseres. Acho que
estás errado, de qualquer maneira. Eu sei que não me vais dar razão, até que
percebas que, realmente, não precisas da ajuda de um estranho.
- Eu sei e tu sabes que eu
sei.
- Brincando com as palavras
agora? Isso é tão típico em ti.
O
homem simplesmente sorriu de volta. Como sua contraparte, ele não queria... nem
precisava... responder à aquela provocação.
***
O
homem sentou-se na poltrona de couro castanho, no lado esquerdo da sala, e
esperou. O terapeuta havia-lhe perguntado se aceitava uma chávena de café.
O
zumbido da máquina serviu de música de fundo para os seus pensamentos. Ele tentava
encontrar uma maneira de iniciar a conversa. Sabia como a terapia funcionava e
precisava ir direto ao ponto, por vários motivos. Quanto mais rápido o fizesse,
melhor seria para os resultados. Além disso, havia razões pecuniárias a serem
levadas em consideração, também.
- Eu preciso de ajuda.
Urgentemente! Não é fácil dizer isso, mas é o único jeito.
- Bem, isto já é um bom
começo. De que tipo de ajuda estás a falar?
- Não quero vir com um
diagnóstico pronto e dizer o que preciso fazer, mas haverás de concordar comigo que
vou precisar tomar medicamentos, o mais rápido possível.
- E o que te leva a pensar em
algo assim?
- Confesso que já passei por
isso antes e não levei a sério. Agora vejo que realmente preciso, ou, então, vou
entrar em uma viagem de ida até o fim, completamente fora de controlo. E eu não
gosto e nem quero uma coisa destas. Pensei que conseguiria lidar com o problema
sozinho e sair ileso, mas não posso. Eu, simplesmente, não consigo.
- Do que estás falando? Vá
direto ao ponto, por favor.
- Eu ouço vozes na minha
cabeça o tempo todo e vejo pessoas que não existem, na realidade.
- E como tu sabes que elas
não existem?
- Porque eu já fui diagnosticado
como esquizofrênico!
***