sábado, 26 de setembro de 2009

O intruso

Ao chegar em casa, depois de um dia angustiante e atarefado, chuva na estrada e um trânsito caótico, o homem não teve muito ânimo para fazer mais que um jantar rápido, meio mecanicamente, para depois retirar-se no conforto viciante da cama e do quarto.

Arrancara, sem cerimónia, os sapatos e as meias, atirando-os a um canto, mas não trocara de roupa. Afrouxara o cinto, desabotoara os primeiros botões da camisa e jogara-se, assim mesmo, por cima das cobertas, colocando o travesseiro dobrado por trás da cabeça, olhando o teto branco do aposento.

Já estava mais tranquilo, quase cochilando, quando ouviu batidas na porta do quarto. Ele sabia que estava sozinho, na casa fechada, mas, mesmo assim, abriu a porta e deparou-se com o vazio do corredor. Acendeu todas as luzes, verificou a porta de entrada, ainda trancada à chave, deu de ombros e voltou para o quarto, desta vez, sem fechar a porta. Se havia alguém dentro de casa, ele veria, se – e quando – chegasse à porta.

Antes de voltar a sentar na cama, olhou por sobre o ombro direito e então percebeu o ridículo da situação. Chegara sozinho, estava sozinho, morava sozinho… A mulher da limpeza vinha somente uma vez por semana, mas já tinha vindo no dia anterior. De toda a forma, já não era hora de faxina: havia escurecido há bastante tempo.

Talvez o cansaço estivesse lhe pregando peças. A sua semana estava sendo bem estressante, no escritório, e ele bem que precisava de um bom banho quente. Decidiu tomar uma chuveirada e deitar. Era melhor ficar ouvindo música e deixar os pensamentos correrem soltos na atmosfera conhecida e confortável do quarto. Ópera, aquela hora, podia não agradar a vizinhança, mas acalmava a agitação do dia…

Adormeceu logo, sem muita dificuldade. Várias vezes, durante a noite, porém, acordou de sobressalto, com a impressão de novas batidas à porta, mas não se levantou.


Amanheceu rápido demais, depois da última vez que acordou. Estava se sentindo cansado, ainda. A noite não havia sido das melhores, concluiu. Esperava que o dia fosse mais tranquilo.

Durante o dia, no escritório, esquecera completamente dos acontecimentos da noite anterior. A atribulação dos últimos dias, próximos ao fim do mês, era grande, mantendo-o concentrado no trabalho, sem muito tempo para pensar em outras coisas.

Ao chegar de volta em casa, faminto, decidiu não assistir TV, limitando-se a aquecer o resto de jantar da noite anterior e acompanhar-se de um cálice de Porto, para fechar a refeição e relaxar o estômago. A música vinha baixinho da saleta ao lado, onde o computador ligado só não estava em modo stand-by, por causa da selecção longa de canções, que havia colocado a rodar, quando chegara – uma selecção tão eclética quanto a ópera da noite anterior. Um desejo simples passa-lhe rápido, enquanto ele coloca a louça na máquina de lavar. Essa noite, esperava dormir como uma pedra.

Já era madrugada quando percebeu que a luz da cabeceira estava acesa ainda. Apagou-a, virou-se para o lado e adormeceu novamente. Não parecia haver passado muito tempo, quando batidas à porta do quarto o fizeram acordar. A princípio pensou que ainda estava sonhando, mas as batidas voltaram, logo em seguida.

- Isso tem que acabar aqui, pensou…

Levantou-se, foi até a porta e abriu-a, com irritação. Não sentia nada além de impaciência. Acendeu a luz do corredor, depois as outras todas e vasculhou cada canto da casa. Nada... Não havia nada…

Era a segunda noite que isso acontecia. A casa não era assombrada. Era razoavelmente nova. O morador anterior lhe havia vendido, antes mesmo de estar completamente construída. Ele havia feito algumas melhorias, logo que passou a morar na casa de poucos cómodos, apenas para que ficasse mais com a sua cara… Conhecia todos os cantos da morada, que tinha, apenas, os móveis necessários para lhe dar um certo conforto. Como gostava de espaço e simplicidade, a casa estava mais para o estilo minimalista, que para outro estilo qualquer.

Ao constatar que não havia nenhum intruso, ele voltou para cama, mas não conseguiu dormir. Tinha todos os sentidos em estado de alerta, para levantar-se de um salto, caso ouvisse qualquer ruído. Quando o relógio despertou, já de manhã, estava no chuveiro, tentando apagar da memória e do corpo os acontecimentos da noite passada. Ele tentava pensar coerentemente, mas nada vinha em seu favor.

- Deve ser por causa do stress... ou paranóia. Preciso voltar a fazer terapia. E tem que ser urgentemente, falou para si mesmo. Ainda bem que hoje é sexta-feira. Quero dormir feito criança, esta noite.

O dia pareceu interminável. As horas se arrastaram e ele esteve irritadiço o dia inteiro, no trabalho. Quando o expediente, finalmente, terminou, saiu apressado, quase sem se despedir dos colegas, que também saíam apressados, com sorrisos de fim-de-semana, estampados nos rostos cansados.

A caminho de casa, comprou uma garrafa de vinho tinto. Precisava de uma boa dose de um vinho encorpado, acompanhando o jantar que ia fazer. Preparou uma massa com molho de creme de cogumelos com camarões. O tempero havia ficado perfeito. A refeição foi lauta, mas discreta. O vinho estava na temperatura e gosto ideais. Ele bem que mereceu aquele jantar. Terminou com um café, uma pequena dose de Porto e deu-se por satisfeito. Fechava a semana com chave de ouro. Agora ia ouvir um pouco de música, ou assistir TV por um tempo, tomar um banho antes de deitar e dormir, sem se preocupar com o despertador a tocar na manhã seguinte.

Adormeceu facilmente. Sonhou que a TV estava ligada. Ele tomou o controle remoto e desligou-a, mas o programa continuava a voltar a passar, ininterruptamente, na TV que nunca desligava. Reportagens, mostrando assaltos, assassinatos e desgraças pelo mundo, passavam em sequência desgovernada. Ele levantou-se de onde estava e foi até o botão principal e desligou-o. Não demorou mais que pouquíssimos segundos até o noticiário aparecer novamente na tela. Ele arrancou a tomada e jogou o aparelho na parede, irritado.

Um vulto passou atrás de si. Agora seria ele o perseguidor. Ia saber quem estava a lhe importunar. Saiu da sala e entrou na cozinha. Não viu ninguém. Foi ao quarto e viu a si mesmo deitado a dormir. Um vulto de negro se aproximava da cabeceira da cama. Ele gritou ao intruso, para lhe chamar a atenção. O vulto se virou, mostrando uma face sem traços definidos, coberta por uma espécie de malha negra, parecendo uma máscara a lhe esconder o rosto verdadeiro. O vulto avançou sobre ele, emitindo uma espécie de gemido, assustadoramente inumano. Ele recuou. O vulto veio em sua direcção, agora a lhe perseguir. Ele correu para a varanda, saltou para fora da casa e tentou chegar ao portão. Foi cercado, antes de alcançar o objectivo. Teve que voltar, tentando dar a volta pelo outro lado. Só havia uma saída. O muro traseiro era alto demais para saltar por cima. Tinha que sair pela frente da casa. O intruso pareceu ler seus pensamentos e tomou posição de cão de guarda, ao portão. Ele voltou para dentro e fechou a porta atrás de si. Antes que pensasse naquela alternativa, viu o vulto entrar pela varanda e atravessar a porta de vidro da saleta. Estava encurralado.

- A melhor defesa é o ataque, pensou. Não tenho outra alternativa. Avançou sobre o vulto, que esquivou-se para o lado e o agarrou por trás, deixando-o imobilizado e com os braços sem conseguir alcançar nada além do ar à sua frente. O intruso apertou-lhe os braços e aproximou-se de seu ouvido, com um gemido estranho, quase animalesco. Desta vez, ele sentiu medo. Seu corpo tremia. Ele sentia o calor das narinas e boca do seu algoz, quase encostados à sua face. Parecia que a figura de negro lhe queimava a pele, com o calor desconfortável da respiração.

O estranho abraço apertava-lhe o peito e os braços, com mais força, agora, dificultando-lhe respirar. Quis gritar. Sua voz não saiu. Seu corpo agora tremia em espasmos e a dor chegava às raias do insuportável. Começou a desfalecer. Ele teve horror do que viria a seguir. Sentiu os ossos da costela estalar. Seu peito parecia que ia explodir. Os espasmos aumentaram. Ele fechou os olhos. A pele do pescoço queimava, agora, assim como o peito. Parecia que o coração havia rasgado e transbordado sangue à volta, queimando-lhe a caixa torácica e os outros órgãos ali abrigados. Muita dor… Um grande branco passou-lhe em frente aos olhos e, depois, sentiu uma estranha sensação de dormência… Seus sentidos lhe abandonaram e ele imaginou-se desmaiar, com a pele do pescoço, próxima à orelha direita, a queimar aflitivamente, em contraposição ao suor frio que lhe escorria pela face marcada pela dor…


De um salto, ele abriu os olhos e percebeu que estava no quarto, mal iluminado por uma fresta de luz, que entrava por um espaço entre as faces da cortina. O peito arfava e o suor lhe cobria o peito e a face. Uma dor insuportável castigava-lhe o corpo todo… Ele quase suspirou de alívio, ao perceber a porta do quarto fechada e o silêncio a acarinhar-lhe os ouvidos. Deitou a cabeça de volta ao travesseiro, fechou os olhos e relaxou…

Foi, então, que a porta se abriu, sem barulho, mas de rompante. A figura encapuzada em preto entrou e aproximou-se da cabeceira da cama, sem cerimónia, como se conhecesse, muito bem, o quarto.

A mão do intruso se apoiou no travesseiro, quase encostada à sua cabeça, fazendo-a mover-se um pouco para o lado. Aquela presença pesava no ar do quarto, antes fechado, agora com a porta completamente escancarada. Ele sentiu o som próximo da respiração e o bafo quente quase a encostar-lhe no rosto, mas recusava-se a abrir os olhos, agora, com medo do que poderia ver.

O corpo inteiro delatou-o, todavia, com uma convulsão incontrolável de medo a sacudir-lhe da cabeça aos pés e ele abriu os olhos, ofegante e em completo terror…

Ele tentou gritar, mas a voz não saiu. Com os olhos arregalados, fitou os olhos do intruso, a poucos milímetros de sua face…


Na segunda-feira seguinte, ao perceber que não comparecera ao trabalho, os colegas, após desistirem de tentar ligar-lhe, incansavelmente, chamaram os bombeiros para entrar na casa trancada. Encontraram o corpo na cama, a face contorcida de terror e os olhos abertos, esgazeados.

A polícia e os paramédicos registraram “ataque cardíaco – durante o sono” como causa da morte. Ninguém, todavia, conseguiu explicar a estranha marca na pele do pescoço, próxima à orelha direita. Não havia nada no quarto, ou na casa, que pudesse ter dado origem à forma quase arredondada daquela queimadura…

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