domingo, 22 de novembro de 2009

Pandemónio (na casa de descanso) - Parte 3

- A senhora sabe a condição que ele impôs, quando entrou nesta casa a primeira vez. Nós concordamos… - tentou a enfermeira-chefe interpelar.

- Quem ficou responsável por ele, em primeiro lugar? - interrompeu a directora, seca e decididamente.

A enfermeira-chefe suspirou. Ela sabia que a directora não a ouvia, quando estava cega e ensurdecida pela ira. Chegava a ser intransigente, por vezes, e de nada adiantava tentar demovê-la, a não ser pelo bom senso, que nem sempre aparecia.

Seus olhos azuis baixaram e ela olhou para as mãos – brancas e delicadamente longilíneas - como se procurasse um argumento convincente, sem ofender a autoridade da enérgica mulher, sentada à sua frente. Ela sabia que a responsabilidade era sua, pelo bem-estar do velho. Ela havia assumido a sua parte do contrato, quando o homem chegara àquela casa, com uma única condição, que fora aceita pela direcção, depois de alguma argumentação.

A directora e o velho inquilino tinham muito em comum: eram ambos muito arraigados às suas próprias convicções e os termos eram intransponíveis e irredutíveis, de ambos os lados. Enquanto o velho queria sua privacidade intocada, a mulher queria o controle da situação, a qualquer tempo. Por fim a mulher cedeu. O homem vencera a batalha, com um argumento sem precedentes. Dispôs-se a pagar a anuidade de uma vez só e acrescentou um extra, pela sua privacidade e com a condição de não ser perturbado, quando precisasse estar só, por períodos mais longos. Esta condição preocupou a directora, mas não teve o mesmo efeito na enfermeira-chefe, que se divertiu ao ver o homem dobrar a administradora, com uma barganha daquelas. Ela não esperava, porém, que os tais períodos mais longos fossem durar tanto quanto três dias, como desta vez.

- Eu devia ter percebido que o dinheiro, que nós tanto precisávamos, iria me trazer dores de cabeça. Nada vem assim tão fácil, dizia a directora, à beira do histerismo.

A enfermeira-chefe escondeu um risinho, ao olhar para a austera mulher, que começava a cair na realidade. Claro que nenhuma caridade viria daquela situação. Ela sabia que a condição imposta pelo homem tinha suas dualidades, mas o dinheiro era tão necessário para fazer os pequenos reparos na casa… a pintura havia ficado uma maravilha, pensou a mulher, com os olhos distantes e sem prestar verdadeira atenção ao que a outra falava…

- … se apegaram demais! É contra a ética desta casa! E os outros?

A enfermeira-chefe levantou nos olhos e tentou captar a essência daquela conversa. O que a mulher estava dizendo?

- Ela está me acusando? pensou a enfermeira. Não consegui pegar o começo da frase e não tenho coragem de fazê-la repetir. Ela me mataria por estar falando este tempo todo, sem ter a minha atenção… Melhor me concentrar.

- Dois anos! Dois anos foram suficientes para me envelhecer os dez que eu sinto pesar sobre minhas costas. Os tempos são difíceis, mas isto parece um pacto de morte!

- Ela está exagerando… pensou a enfermeira. Dramática, como sempre. Jesus! Me tire daqui… Ela já não ouvia a conversa-sermão da outra…

Quando saiu do gabinete da directora, a enfermeira-chefe estava cansada e drenada de forças. Mesmo assim, tinha prometido ir ao jardim conversar com o velho. Ela tinha uma simpatia pelo homem, que tanto deixava as outras completamente loucas, quanto fazia a vida da administradora uma carga que ela custava carregar. Mas entre ela e o homem havia uma certa cumplicidade. Desde o início, eles haviam sido amigos. Talvez porque ela respeitava o espaço que o inquilino criou à sua volta, talvez por lembrar-lhe alguém de quem gostava muito. O velho era um mestre para ela. Ela, talvez, fosse o único elo com a realidade, que ele ainda mantinha.

Ao caminhar para a porta que dava para o jardim, ela pensou que talvez estivesse errada a este respeito. Certa vez, havia ficado até tarde arquivando os papéis na sala da directora e viu luz na saleta onde havia o computador. Apesar da maioria dos inquilinos serem idosos, alguns mantinham correspondência, através de e-mail com seus parentes ou amigos. Alguns aprenderam a usar o computador após chegarem àquela casa. Apesar de cansada, foi verificar quem estava no computador aquela hora. Não reconheceu os toques subtis nas teclas, até chegar à porta da saleta.

Ela viu o velho digitando algo, com uma boa destreza manual e até uma certa intimidade com a máquina, apesar da idade. Não castigava as teclas com força, como alguns faziam. Os toques não eram rápidos demais, nem tampouco lentos a ponto de parecer um “catar de milho”. O velho conhecia bem o teclado.

Ela pigarreou baixinho e percebeu que o velho parou de digitar. Ele estava bem à frente do monitor e tratou de fechar o arquivo ou o que quer que estivesse fazendo. Ela sentiu que invadiu um território não permitido. O velho fechou o programa e se virou. Ela sorriu, meio sem jeito. Ele levantou-se e caminhou na direcção dela, olhou-a nos olhos e disse, baixinho:

- Existem horas em que é melhor não dizermos nada.

Colocou uma mão leve no ombro da mulher, ao passar por ela e saiu, sem olhar para trás. Ele nunca olhava para trás… pensou ela.


Da porta, ela viu a bizarra figura, sentada com óculos escuros, a acariciar atrás das orelhas do gato. Arrastou levemente os sapatos, para se anunciar, sem interromper a intimidade dos dois. O gato logo levantou a cabeça e olhou para a entrada. O velho não se mexeu. Sabia que a mulher viria conversar com ele, mais cedo ou mais tarde.

- Acabo de ouvir um longo sermão. Ela não dizia aquilo com indignação. Era como se contasse uma história, sobre um acontecimento banal.

- Sinto muito. O homem não exprimiu emoção, nem se virou para olhar para ela, ao dizer aquilo.

- Não, não sente… Ela sorriu, ao fazer a constatação e viu que ele riu também.

- Não, não sinto… mas é educado dizer que sinto muito. Ele se voltou para olhar a mulher.

Ela era jovem, talvez beirando os 35 anos. Não tinha uma beleza que o faria virar a cabeça, quando passasse por ele na rua, mas tinha os olhos de um azul profundo, que pareciam pedir socorro. Ele adorava olhar para aqueles olhos. O velho corou um pouco e ela percebeu que por trás dos estranhos óculos, ele a observava com simpatia.

- Vamos entrar? Está esfriando. Ginger já está meio encolhido, mentiu ela e se levantou.

Estendeu a mão ao velho e este cedeu, levantando-se do banco, na tarde que já esfriava lentamente.

O gato pulou à frente dos dois e correu para a porta de entrada, com a trela arrastando atrás de si. Na varanda, parou e esperou pelos dois, que vinham de braços dados. Entrelaçou-se nas pernas do velho e a mulher se abaixou, retirou a trela do corpo do animal e deixou-o livre. O velho se abaixou e tomou o gato no colo. O bichano esfregou a cabeça afectuosamente no peito do homem. A enfermeira-chefe coçou a cabeça do bichinho e este retribuiu, ronronando de satisfação.


- O senhor me deve uma satisfação, não deve? Ela sabia que a pergunta era meio retórica, somente.

- Ficarei feliz em satisfazê-la, disse o velho… mas não sei se serei capaz…

Ela riu. Sabia que aquela conversa estava encerrada. Mas, para sua surpresa, o homem disse:

- Venha. Vou-lhe mostrar uma coisa…

9 comentários:

  1. Finalmente saiu a parte 3. Pequenas revelações... espero que gostem!

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  2. seria um certo sentimento romântico do velho escondido pela enfermeira??? hummm

    oq será q ele tava usando o computador?

    algumas dúvidas solucionadas, outras apareceram huahuahua!

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  3. Olá Padrinho da Naty...eu tbm sou madrinha daquela lindeza de pessoa!!
    Muito bom seus textos!
    Parabéns!

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  4. Muito obrigado, mesmo. Todo incentivo é sempre bem-vindo...escritor amador precisa!!!
    Abraço

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  5. hummm...
    ta ficando cada vez melhor *---*

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  6. Acabou? Assim? E eu pensando que tinham mais coisas pra baixo...
    Trata de postar a parte 4 já! ¬¬ uhauhauhauh

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  7. OK... acrescentei mais umas frases no final. Agora ficou mais o estilo preferido...

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  8. Aiiiii... que gente curiosa... ehehehehehehe
    Eu vi a Elo ali... Ela é minha madrinha de blog.. eheheheheheh

    Estou indo pra 4...

    Beijinhoss

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