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sábado, 5 de dezembro de 2009

Pandemónio (na casa de descanso) - Parte 5

As luzes da sala de espera, próxima ao portão 22, focavam apenas uma única pessoa, ou assim parecia ao homem, que sentado, lia um jornal. Aqueles olhos azuis fingiram não ver o seu olhar cruzar a sala momentaneamente, mas tornaram a observar o homem, assim que este voltara a baixar a cabeça.

Já na fileira de quatro lugares, no meio de um voo lotado, o homem observava as pessoas passarem e se acomodarem, algumas em silêncio, outras em verdadeira balbúrdia, sorrindo e conversando alto. Imediatamente colocou os fones nos ouvidos, para isolar-se do alvoroço geral. Logo o avião estaria no ar, o tumulto mais controlado e ele poderia fechar os olhos e fingir estar dormindo, para não ser perturbado.

Olhares iam-se, indiferentes, procurando o assento certo. Um rapaz sentara-se na poltrona da ponta, deixando um lugar vago entre eles. O homem desejou que o lugar ficasse vago até o destino. Foi quando ele viu aqueles olhos novamente. As luzes pareceram apagar, outra vez, excepto por aquela sobre a cabeça bem desenhada da mulher parada, a olhar o lugar vago a seu lado, com uma expressão divertida.

- Sente-se aqui. Sente-se aqui - desejava ele, em silêncio e com veemência, tentando não parecer desesperado demais, pela expressão de sua face.

Aquele olhar pousou sobre ele e a mulher pediu licença ao rapaz sentado próximo ao corredor. O homem sentiu seu coração dar um salto.

- Com licença…

Ele ouvia a frase repetida, mas era consigo que ela falava agora. O homem quase não acreditava na sua sorte. Não lembra como começaram a conversar. Só lembra que a noite foi curta demais. Não pararam de falar a noite toda. Nunca um voo pareceu tão rápido. Poucos minutos antes da saída, ele ouviu:

- Você tem endereço de Messenger? (Quem não tinha?) Escreva aqui, por favor.

Ele escreveu, com cuidado, caprichando na caligrafia para não deixar dúvidas na sequência de letras. Num pedacinho do mesmo papel, rasgado em rectângulo, numa caligrafia miúda e rebuscada, recebeu o endereço dela. Mesmo que nunca mais se vissem ou se comunicassem, aquela era uma prova que ele não imaginara aquela viagem tão incomum. Tiveram que se separar, pois cada um tinha um destino diferente. Ele ficava, ela partia para um próximo destino. O voo de conexão já estava em vias de embarque.

Se despediram às pressas, sem aperto de mão, sem nada mais que um simples adeus, meio gritado, com um rápido olhar por sobre os ombros, enquanto os passos apressados sumiam à distância. O homem apalpou o pedacinho de papel, dobrado em dois, no bolso, com uma afeição que há muito não sentia.

Ao sair pela porta giratória, o mundo pareceu bater-lhe de frente, à face, com a frieza do ar de inverno e da realidade, vindos, sem piedade, do lado de fora…


O velho olha o gato deitado, a lhe observar com atenção, mas sem se mostrar ansioso a sair do conforto da almofada, sobre a qual se encontrava a descansar. Ele coça o pescoço do amigo, que lhe retorna o carinho com um ronronar de satisfação. Olha, com uma pontinha de tristeza, para a caixa em cima da escrivaninha e pensa que e enfermeira-chefe não voltaria a buscar o presente que ele havia-lhe oferecido.

Ele se adianta e abre a pequena caixa de madeira, retirando dela um objecto embrulhado, cuidadosamente, em um pano de cetim roxo. Dele, desenrola um deck de cartas, marcadas pelo uso. Ele estende o pano sobre a escrivaninha e embaralha as cartas, distraidamente, várias vezes. Neste momento, a porta se abre e ela entra.

- Desculpe por não vir antes. Não foi de propósito… muita coisa para fazer…

O gato espreguiça-se sobre a almofada, enquanto o velho se volta, com o deck de cartas na mão. Ela desculpava-se, por educação, mas ele já havia-se esquecido porque tinha estado triste. Ela tinha o efeito de lhe curar as dores da alma, pela simples presença, que ele estimava tanto.

- Sente-se aqui – disse-lhe ele, apontando para a cadeira à escrivaninha. Vou-te ensinar a jogar estas cartas. Gostaria que aceitasses o presente e as lições…

Ele buscou um livro num armário e o colocou sobre a mesa.

- Em caso de dúvidas, nunca tenha medo de consultar o manual…

Ele dizia aquilo com uma naturalidade e tranquilidade, que ela admirava. O homem ensinou-lhe a embaralhar e dispor as cartas no jogo e pediu-lhe para puxar uma carta do meio do monte disposto em leque aberto, colocado no centro do pano estendido na escrivaninha.

Ela puxa uma carta, franze o cenho e olha para o velho. Uma sombra passa à luz dos seus olhos. Ela tenta não se afectar, mas já havia sentido o efeito que a representação de um esqueleto com uma foice na mão provocara em sua percepção. A figura não causou tanto desconforto, quanto o nome da lâmina representada. Com a mão trémula, ela hesita em continuar e solta a carta sobre a escrivaninha.

- Desculpe. Eu não consigo fazer isso. Tenho medo do que possa ver. Essas coisas me assustam.

Ele percebeu que ela falava com sinceridade. Olhou com complacência para a mulher, que se transformara numa menina amedrontada, recolheu a carta e disse, devagar e firmemente:

- Assim como muitas atitudes e pessoas, esta carta é mal compreendida. Apesar do nome, no tarot, esta carta significa uma grande mudança. É preciso deixar umas coisas para trás, abandonar certos hábitos, para que outros nasçam. Mas deve-se estar preparado para esta transformação. É como se fosse a alegoria da Fénix: das cinzas de uma, nasce a outra, rejuvenescida e pronta para enfrentar novas e radicais mudanças. Não tenha medo. Esta carta é muito positiva!

Ela olhou-o, com cuidado, tentando estudar suas expressões, tentando ver se ele falava a verdade. Ele parecia de um mestre, paciente e sábio, tentando mostrar a verdade à sua pupila. O músculo de sua testa, entre os olhos, relaxou um pouco. O velho, então, sorriu.

- Sabendo usar as cartas, te deu alguma vantagem? Foi mais fácil viver, sabendo que podias contar com um conhecimento que nem todos possuem? Pode-se achar a felicidade, procurando nas cartas?

Ela agora parecia uma menina curiosa e ávida por respostas, que ele não havia se acostumado a dar, em todo o curso da vida. Mas ele sabia que se não fosse a ela, jamais se abriria novamente. A mulher fingiu que não percebeu que ultrapassava uma linha limítrofe entre o respeito e a intimidade. O gato semi-cerrou os olhos e levantou as orelhas, observador que era e conhecedor dos hábitos do velho.

- As coisas não funcionam assim tão fáceis. Não se tem vantagem por saber ler as cartas. Eu usei pouco este conhecimento em meu favor. Minha intenção era compreender certos mistérios e não ser completamente surpreendido em algumas ocasiões. Mas eu também ajudei outras pessoas… não muitas… Algumas tem medo do que vêem.

Ele olhou fixamente nos olhos dela. Será que ela estaria preparada? Ela parecia hipnotizada pelo olhar do homem. Por fim, ele disse:

- Eu fui feliz com tão pouco. A vida não me deu muito… em relacionamentos, em amor, em prazer… e, no entanto, eu fui feliz. Algumas coisas parecem ter acontecido tarde demais, no tempo… Mas... não, eu não vivi uma vida morna. Tudo que eu fiz, foi muito intenso. Eu vivi sempre com muita paixão pelas coisas que fazia e pelas pessoas que eu amei. Se eu fui tão feliz com tão pouco, o que poderia ter sido, se tivesse um amor verdadeiro? E se tivesse recebido mais? Teria, eu, sido mais feliz? Não sei dizer…

A enfermeira-chefe compreendeu o que o homem dizia. Só não esperava pelo próximo passo dele.

- Esta é a carta que deves temer… e, esta, a combinação mais perigosa de todas…

domingo, 29 de novembro de 2009

Pandemônio na casa de descanso - Parte 4

A directora vinha saindo do gabinete, quando viu a enfermeira-chefe passar de braços dados com o velho inquilino. Os outros olhos na sala pousaram sobre os dois, ao passarem tranquilos, com o gato acomodado confortavelmente no colo do velho. As mulheres inspiraram o ar e iam estufando o peito, num sinal de recomeço de falação, quando a directora, sábia e perceptiva, chamou a enfermeira. Esta deu uma batidinha leve no braço do homem e deixou-o ir sozinho para seus aposentos. Virou-se, simulou uma expressão tranquila, mesmo sabendo que iria ter que ouvir outro sermão. Na sua mente, ela pediu, aos Céus, paciência para aguentar as batalhas daquela vida…

- Venha comigo!

A voz da directora era autoritária, mas não demonstrava irritação. Era mais um apelo, desta vez. A enfermeira-chefe conhecia as nuances de humor da mulher. Sabia quando devia estar armada e quando devia ouvir. Aparentemente, desta vez, ela precisaria ouvir, apenas.

- O que se passou lá fora? Nós havíamos conversado sobre isso, antes. Esta preferência e esta intimidade entre vocês não pode continuar assim tão aberta. Pense nos outros que vivem aqui. Já me basta ter que ouvir as “gralhas” a reclamar, todas, ao mesmo tempo, por qualquer coisa. Se elas tiverem razão, será pior ainda…

- Eu sei. Não voltará a acontecer. Eu tentava conseguir uma explicação para a atitude dele, mas não consegui nada – defendeu-se a enfermeira, mantendo os olhos concentrados em suas próprias mãos. Ela não conseguia olhar a outra de frente, quando se sentia culpada.

- Estou cansada. Por favor, não torne os meus dias piores que estes últimos. Pode sair agora. Está na hora de servir a janta e eu espero que este homem esteja por lá. Cuide para que isso aconteça, sem muito transtorno.


O velho estava à janela, quando ela bateu, levemente, à porta do quarto. Ela entrou e ele ainda levou uns segundos para olhar a mulher que estava parada no meio do quarto a lhe observar. Ele notou uma ruga entre os olhos dela. Sabia que aquela expressão de preocupação era por sua causa.

- Tenho uma coisa para te dar. A voz do velho era baixa, meio rouca. Ela não sentiu aquela ironia de minutos atrás, nem qualquer emoção, além da seriedade de agora.

- Está na hora do jantar. Gostaria muito… Ela parou no meio da frase. Ele falou “para te dar”? Seria um presente?, pensou ela. A menina dentro de si aflorou como um raio. Ela olhou para o homem, com uma expressão desconcertada.

O homem percebeu um certo desconforto na situação. Pigarreou e disse, apontando para a caixa, em cima da escrivaninha:

- Quero que fique com isso.

Foi então que a enfermeira-chefe percebeu o objecto para o qual o velho apontara. Em sua memória, os dias passaram em alta velocidade. Ela lembrou do dia que viu, pela primeira vez, a pequena caixa de madeira, decorada com estrelas e luas, em um fundo azul-escuro.


Ela havia entrado no quarto, para chamar o amigo a sentar-se na sala de refeições e encontrou-o sentado, de costas para a porta. Ela chegou a ouvir uma gaveta fechar-se às pressas. Ele suspirou, levantou-se devagar e fitou-a com um olhar penetrante. Parecia sério e preocupado.

- Vamos jantar? - perguntou ela, tentando parecer naturalmente alheia ao momento embaraçoso que se sucedia.

Ele não respondeu. Continuou a olhá-la, com aqueles olhos que nunca pareciam sorrir. Por fim, estendeu-lhe a mão. Ela deu-lhe a sua, quase por instinto. Ele a puxou, levemente, trazendo-a para mais perto de si. Ela sentiu uma espécie de tontura. Ele moveu-se um pouco para o lado e colocou-se à sua esquerda. Virou-se para a escrivaninha, meio hesitante, suspirou e tomou uma decisão. Ela estava, ainda, meio incerta do que estava se passando.

Ele, então, girou uma chave na gaveta do meio e abriu-a, devagar. Parecia que curtia o momento, a excitação e o absurdo do que acontecia, sem que ela esperasse. Puxou-a para perto do móvel, de modo que ela pudesse ver melhor o que havia lá, mas sem colocar a mão dentro da gaveta.

Uma caixa azul, decorada com estrelas e luas amarelas, jazia por cima de um papel dobrado. Ela quase percebeu um timbre no avesso do papel, que estava sob a caixa.

O velho pegou a caixa e colocou-a em cima da escrivaninha, fechando a gaveta logo em seguida. Ela se aproximou, com cuidado, como se fosse invadir uma caverna escondida, em algum lugar secreto do mundo do velho, que continha uma arca de tesouro. Ele levantou, devagar, a tampa. Seus olhos azuis brilharam ao olhar dentro da caixa.


- Prometi à directora que lhe convencia a jantar agora, sem criar muito transtorno. Disse ela, voltando ao presente. Não sei se devo aceitar a sua oferta. Ela misturava os pensamentos e assuntos, em frases que iam aparecendo, sem controle, quando ficava nervosa.

Ele levantou a mão. Ela sabia que devia parar de falar.

- Vamos jantar, agora. Depois conversamos sobre isso. Se eu for agora, prometes que aceitas o presente?

O olhar dele era quase uma súplica… ou um apelo. Podia haver qualquer coisa escondida por trás das intenções do velho, pensou ela, desconfiada.

Mesmo assim, ela fez que sim, balançando a cabeça. Em seguida, tomou a mão do velho e se dirigiu para a porta, puxando-o atrás de si, com delicadeza.