sábado, 23 de agosto de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 2: Estranhos)


Da penumbra da escada onde estava escondido, o homem podia observar bem o que acontecia no piso térreo, mas ao mesmo tempo tinha dúvidas se estava mesmo a ver ou se estaria imaginando coisas.

O velho homenzinho estava de pé, próximo a uma porta quase imperceptível, quase camuflada, na parede oposta à saída principal,  por trás do lance de escadas, onde o outro espreitava, com interesse e espanto. Ele, então, levantou a machadinha à altura do rosto e segurou-a, concentradamente, próximo à boca.

Em seguida, abriu a boca, que alargou-se enormemente, como o homem nunca havia visto ninguém fazer antes, abocanhou a lâmina da machadinha, por completo e, quando retirou-a, aquela estava limpa, já sem nenhum sinal do inseto que nela jazia há poucos segundos atrás.

- (Que diabos está acontecendo ali? Como é que ele conseguiu fazer... Aquilo não pode ser nada normal...)

O homem deixou aquela reflexão formar-se em silêncio e sufocou sua admiração, tentando não gritar, mas deixou escapulir um som abafado. O estranho levantou a cabeça e olhou para onde ele estava semiescondido, mas já não incógnito.

Ele saiu da sombra da escada e deixou-se ser visto, sem falar nada. O homenzinho, então, disse, sorrindo e com um genuíno ar benevolente, ao perceber que o outro parecia bastante perplexo:

- Ah! Eu sentia que não estava sozinho...

Mas o homem teve um certo medo do estranho homenzinho, que tinha uma característica tão incomum. As coisas não estavam correndo muito bem para o seu lado. Sem saber o que dizer, ele desculpou-se, mais por temor do que por educação.

- Eu sinto muito. Não quis ser indiscreto. O que vi, foi, realmente, um acidente...

- Não te preocupes. Não há realmente um problema em conheceres o meu segredo!

Aparentemente o velho não estava nada preocupado em haver-se revelado ao estranho que o mirava, sem realmente compreender. O que aquela aparente tranquilidade significava, entretanto, o homem de cabelos castanhos não sabia exatamente. Começava a desconfiar que podia não ser nada bom para si.

Secretamente, lá no fundo de sua mente, o homem perguntou-se que novo personagem seria aquele.

- (Que tipo de criatura seria aquele homenzinho estranho? Será que estava imaginando coisas? Teria sido, de alguma maneira, o efeito do vinho?... E eu nem bebi mais que uma taça daquele vinho verde, nem sinto-me minimamente bêbado...).

O velho ainda sorria, olhando para ele, com ar interessado e, provavelmente, ainda a estudar as suas reações.

Um ruído, vindo do topo da escada, porém, desviou-lhe os pensamentos e a atenção da cena ainda a desenrolar-se à sua frente. Alguém, com passos bastante pesados, começava a descer o primeiro lance de degraus. O homenzinho olhou o outro e disse, com a voz calma e baixa, mas em tom de aviso, antes de sair pela porta lateral, quase escondida por trás de uma pilha de barricas.

- Tome bastante cuidado... tenha muito cuidado mesmo! Eles não são, definitivamente, o que parecem ser. De alguma estranha maneira, creio que ainda nos voltaremos a encontrar…

Para falar bem a verdade, o homem de cabelos castanhos já nem tinha certeza do que realmente era e do que apenas parecia, naquele momento.

Quis seguir o velhinho, mais para proteger-se do que propriamente ir atrás dele, mas a abertura, pela qual o bizarro personagem passou, não tinha maçaneta e fechou-se muito rapidamente. Ficou sem saber o que fazer, a não ser esconder-se, para não ser visto. Esgueirou-se por trás das prateleiras e das barricas - umas de azeite, outras de vinho - no fundo do piso, por trás da pesada e escura escada e esperou, com os olhos atentos à porta da saída principal.

Sabia que sua presença ali só poderia levantar suspeitas e uma série de questionamentos, para os quais ele não tinha explicação plausível, além de sua curiosidade fora do normal e da sua tendência de meter-se em situações confusas e complicadas, inadvertidamente.

De onde estava, observou que o homem que passara era bastante forte e vestia um casaco feito de uma espécie de couro muito escuro de réptil, talvez crocodilo, mas ele não tinha certeza, já que não era adepto daquele tipo de material para casacos ou, mesmo, para roupas de qualquer espécie. O tal brutamontes era o mesmo homem que o havia encarado e não tinha ares de bons amigos. Desejou, secretamente, que o estranho de pele azeitonada e ar hostil não o visse.

O homem, porém,  ao chegar à porta principal, empurrou-a, olhou para os dois lados, como se procurasse por alguém e saiu. Atrás de si, desceram os outros três e, sem falar, saíram para fora, seguiram o líder e foram pela calçada afora, provavelmente na direção do carro.

O homem, assustado, esperou ainda alguns minutos até certificar-se que já haviam-se afastado bastante, com os ouvidos muito atentos ao som dos passos, que desvanecia na distância. Saiu com cautela e, já do lado de fora, decidiu que tinha tido aventura demais por uma noite e sentiu um certo receio de ser confrontado pelos homens estranhos, uma vez mais. Apressou-se a dirigir-se ao seu carro, que estava um pouco distante. Procurou, mas já não viu o veículo preto, dos homens estranhos, no estacionamento. Ainda olhou, com atenção, à volta, para certificar-se que estava mais a salvo e seguiu, pronto a sair dali o quanto antes.

Estava com a chave na mão, quando ouviu o som de passos apressados atrás dele. Seu sangue gelou, mas ao virar-se viu apenas uma mocinha, com olhos verdes muito claros, a vir na sua direção. Ela disse, apontando para o bosque:

- Entra no carro, depressa. Aquele homem tem respostas e a indicação de como podemos sair daqui.

Reagiu meio por instinto, antes de pensar que já a havia visto antes. Era a mesma que havia esbarrado em sua cadeira e sorrido, há uns minutos antes, na esplanada na ribeira. Ele não tinha a mínima ideia do que ela queria dizer com ‘sair daqui’, quando entrou e sentou-se ao seu lado, no banco da frente, mas não perguntou nada. Contornou o estacionamento e foi na direção onde haviam avistado o tal homem, que parecia ter estado a procurar alguma coisa nos galhos dos pinheiros. Parou, no espaço entre o complexo de lojas e o estranho bar e esquadrinhou o local perto das árvores, com cuidado, pois já não o via. A mocinha fazia o mesmo.

Uma batida no vidro de sua janela deu-lhe um susto descomunal. Um homem, com olhos de um tom azul-acinzentado, estava ao seu lado, fazendo uns gestos, pedindo para entrar. Ele abriu, instintivamente, a porta traseira e deixou-o acomodar-se no banco atrás de si.

O estranho, realmente, tinha informações a dar. Além de reafirmar-lhe para ter cautela, repetindo o que já dissera, anteriormente, o homenzinho da roupa castanha, ele mostrou-lhe um item muito interessante, que tirou do bolso do velho casaco cinzento, que vestia. O homem teve a leve impressão que, apesar do calor, aquela devia ser a 'noite dos casacos', mas não mencionou nada.

O tal item era uma caixinha metálica, decorada com delicados arabescos de prata batida, que continha um velho pergaminho amarelado. Nele estava impresso um antigo mapa, que mostrava uma marca muito característica, bem onde havia um desenho, representando uma velha árvore, aparentemente oca, no meio de um bosque. Ao lado do desenho do centro, haviam uns números escritos a lápis, em vermelho. Aquelas últimas anotações deviam ter sido acrescentadas recentemente, pois estavam bastante vivas no papel visivelmente envelhecido e amarelado.

Por um instante pensou haver visto uma troca de olhares entre o homem e a mocinha sentada ao seu lado, mas poderia ter sido somente sua usual paranoia e desconfiança, causando-lhe uma estranha impressão. Ele estava completamente tomado pela curiosidade acerca do objetivo daquela estranha situação e queria saber até onde o tal mapa poderia levá-lo.

Mas o mapa tinha um preço, obviamente. O homem  ficou bastante surpreso quando o estranho lho disse.

Aquela, porém, era apenas uma das razões que o traziam ali…

***

Estavam no meio do bosque, procurando seguir as indicações contidas no mapa. O homem tinha o GPS de mão e procuravam a tal árvore oca que, no pergaminho, estava marcada com as coordenadas de localização, que haviam sido anotadas à mão, recentemente. Não deveria ser difícil chegar ao nosso destino em breve, pois a aparelho indicava que estava localizado há poucos metros, bem à frente deles.

A árvore, uma velha figueira, erguia-se sobre um pequeno elevado, coberto de relva e folhas secas, numa linha á esquerda de onde estavam, fora de uma trilha quase nunca usada, por onde haviam seguido. De onde estavam, não viam nada demais, mas ao contornarem, viram uma abertura, quase não suficientemente grande para um homem do seu tamanho passar. Estava coberta por umas lianas e muito musgo, tornando-a quase impercetível. Afastou a cortina natural com as mãos e passou pela abertura, sendo seguido pela mocinha.

O tronco era realmente todo oco e, por dentro, parecia bem maior que percebido por fora. A cerca de uns 45 graus à esquerda, via-se um pequeno declive, com uma abertura para um pequeno portal, bem no final do mesmo. Uma outra mocinha, também de olhos verdes muito claros, aguardava-os, logo que atravessaram o limiar do portal. Ela tomou-lhe a mão e disse-lhe que o Mestre precisava falar com ele. O homem não sabia quem era o tal Mestre, nem o que ele poderia querer, mas tentou convencer quem o havia trazido até ali a continuar aquela estranha jornada consigo até o fim.

- Vem comigo, por favor.

- Não posso, ainda… Deves ir com ela.

Havia uma longa caverna, que ia abrindo e ficava um pouco mais alta à medida que desciam. O homem percebeu que a mocinha devia conhecer muito bem o local, pois sabia exatamente em quais galerias entrar. Sacudiu a cabeça, como se tentasse apagar o pensamento, pois era mais que evidente que ela sabia para onde estava a conduzi-lo. Depois de caminharem por muitos minutos, entraram por uma das pequenas aberturas laterais.

Após uma leve curva na caverna, num nicho quase imperceptível, havia um velho baú, depositado no chão, escondido num canto. Era de madeira castanho-escura e tinha um trinco de metal batido, representando o que pareceu-lhe ser alguma espécie desconhecida de réptil, em alto-relevo. A mocinha puxou o ferrolho para cima e levantou a tampa do mesmo. 

Antes que o homem se aproximasse o suficiente para inspecionar o que havia lá dentro, ela segurou-lhe a mão com firmeza e, com uma força descomunal, para uma miúda daquela aparente delicada compleição física, puxou-o para dentro da arca, com ela. 

Foi então que ele percebeu que a tal arca não tinha fundo...

***


sábado, 16 de agosto de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 1: Intro)


Uma brisa amena de final de Primavera soprava na esplanada à beira do rio, perto da foz. Ele havia saído do trabalho à hora mais ou menos certa - coisa bastante rara nos últimos tempos - e decidira beber uma taça de um suave e fresco vinho verde e relaxar um pouco, antes que o fim-de-semana começasse. Não estava interessado nos transeuntes, mas em olhar as águas a correrem na direção do mar. Aquela visão deixava-o relaxado e absorvia-lhe os pensamentos, levando sua imaginação para terras quase nunca dantes percorridas. Sentia a mente sensivelmente vazia. Não queria pensar em nada; só deixar os odores do fim da tarde preencherem suas narinas, o sabor do vinho fresco a aguçar-lhe os sentidos e os sons do anoitecer tomarem conta do ambiente à sua volta. Ele desligara a parte do cérebro que distinguia as vozes e conversas. Estava mais interessado nos outros sons, menos ouvidos na vida normal: o gralhar das gaivotas, a água a correr, um cão a ladrar ao longe, a peculiar e característica música da noite a chegar…

Um solitário saxofonista, vestindo um colete aberto preto sobre uma t-shirt branca e usando um chapéu coco, também preto, começara a tocar uma melodia bastante melancólica, cujas notas ele alongava com exímia destreza – quase como num ‘noturno’ - na calçada, bem próximo de onde o homem estava. A música sempre mexera com seus sentidos e aquela fazia sua imaginação vaguear, completamente solta e sem qualquer tipo de amarras.

Um grupo de jovens, provavelmente estudantes, aproximou-se em algazarra, rindo alto e fazendo-o voltar à terra. Uma das moças esbarrou no pé da sua cadeira, ao passar e, voltando-se, pediu desculpas, sorrindo e ficou a olhá-lo, sem seguir adiante. Tinha olhos muito claros e um sorriso encantador. Ele sorriu de volta e ficaram a olhar-se, por uns pouquíssimos segundos, até que alguém a chamou pelo nome.

- Elena! Vamos!

Ela voltou para o grupo e ele ficou a observar enquanto os jovens afastavam-se, ainda às galhofas. A maioria das pessoas trajava roupas leves, camisas de mangas arregaçadas, t-shirts ou blusinhas de mangas curtas. A temperatura estava por volta dos 23 graus Centígrados - o que, para o homem de meia-idade, bastante pálido e com ralos cabelos castanhos, já há muito tornando-se brancos à altura das têmporas, ainda era bastante calor – especialmente àquela hora do dia.

Levantou-se, pagou a conta e decidiu caminhar até o parking, que ficava a uma boa distância de onde estava, quase no outro extremo da movimentada ribeira. Uma fina faixa de luz ainda tingia o horizonte com cores quentes e fortes, mas o céu acima dele já exibia fortes matizes de índigo, salpicado de minúsculos pontos brilhantes. 

Quando desceu a rampa, já onde estava o carro estacionado, viu que um pequeno grupo de homens, vestidos com casacos escuros, que iam até a altura dos joelhos, caminhava na sua frente. Estranhou as vestimentas, já que não estava nem um pouco frio. Eles caminhavam, sem olharem uns para os outros e sem conversarem.

Alguém passou por ele, bateu contra seu braço e passou adiante, sem ao menos pedir desculpas. Viu que era um outro homem vestido da mesma maneira dos outros que caminhavam à sua frente e que apressava-se em juntar-se ao grupo. O estranho foi que eles não o cumprimentaram quando ele aproximou-se, nem ele, tampouco, ao grupo. Apenas continuaram a caminhar, lado a lado, sem se olharem, até um carro preto estacionado perto do seu. Os quatro estranhos entraram, quase ao mesmo tempo e quase automaticamente, cada um por uma das portas do veículo.

O homem olhava-os de uma maneira distraidamente interessada, se é que isto era, de alguma maneira, possível. Chegou ao seu carro mesmo a tempo de ver o outro veículo passar por ele e pela primeira vez percebeu o tipo que estava ao volante, já que era a única janela aberta e os outros vidros estavam levantados e eram cobertos por uma película escura. O condutor tinha cabelos muito negros e pele azeitonada, sem ser bronzeada e olhos parcamente emoldurados por quase inexistentes sobrancelhas. Ainda conseguiu ver que o outro homem, sentado ao seu lado, tinha características físicas bastante similares, mas não se pareciam um com o outro. Deviam ser da mesma origem étnica, pensou.

Um calafrio correu-lhe pela espinha quando percebeu que o motorista virou-se para fitá-lo, ao passar. Era o mesmo homem que esbarrara no seu braço, mas tinha uma expressão ameaçadora no olhar. O estranho havia reduzido a marcha ao aproximar-se e, assim que olhou o outro, acelerou e foi em direção à saída do estacionamento. O homem apressou-se em entrar no carro, já resolvido a sair dali o quanto antes. Seu sensor de perigo já estava a girar em amarelo.

Apesar de um pouco assustado pelo que vira, ele estava, também, um tanto intrigado com o incidente, afinal havia sido abalroado pelo sujeito e ele ainda decidira encará-lo, como se quisesse ameaçá-lo ou intimidá-lo. O sangue subiu-lhe à cabeça, quando pensou naquilo. Viu o veículo parado no semáforo à sua frente, mas o condutor furou o sinal, assim que percebeu não vir nenhum outro carro das ruas adjacentes.

Deviam estar com pressa, pensou. Com aquele tipo de condução, não admiraria se causassem um acidente e, entre dentes e em voz alta, desejou mesmo que se envolvessem em um. Era sua veia vingativa falando mais alto que ele. Observou-os subir a rua, esperou o sinal abrir e seguiu seu caminho, já entretido com suas músicas favoritas a tocar no CD player.

A alameda estava iluminada por fortes luzes amarelas, o que dava uma atmosfera surrealista ao local. Por uns instantes, esqueceu do sucedido há poucos minutos, pois adorava passar por entre as árvores, naquela região, a caminho de casa. Seu estômago roncou e ele deu-se conta que havia passado do horário usual do jantar. Havia estado a tarde toda em reunião e não tinha tido tempo de comer nem uma fruta. Estava com fome. Ele, agora, pensava somente no que iria preparar para comer, quando chegasse em casa.

De repente, um vulto saltou à frente do carro e passou correndo do lado esquerdo para o direito da rua. Ele pisou no freio, automática e violentamente. Por sorte não vinha ninguém atrás de si, que pudesse causar um inconveniente acidente de viação. Se o que cruzara seu caminho era um gato, devia ser um animal enorme, pensou o homem, ainda com o coração acelerado. Olhou para o lado direito, tentando distinguir se avistava qualquer sinal dele, quando viu o veículo preto estacionado num pequeno complexo de edifícios comerciais, ao qual nunca havia prestado atenção anteriormente.

Sua curiosidade acendeu-se novamente e, apesar de saber que não era a coisa mais certa a fazer, resolveu ir até lá, estacionando o mais longe possível do tal veículo preto. Por sorte, seu carro não era mais que um modelo dos mais populares, de cor bastante comum, que passaria quase despercebido, no meio dos outros ali estacionados, muitos da mesma cor cinzenta. Havia uma loja de conveniência, um pequeno restaurante ‘take-away’, uma lojinha de equipamentos informáticos e outras menores, perto de uma razoavelmente maior, de móveis e uma farmácia. Bem ao fundo, um tanto separado das lojas, havia uma construção diferente das outras, um pouco mais escura e rústica. Devia ser algum restaurante típico ou talvez até mesmo um bar. Perguntou-se por que razão nunca havia-se dado conta da existência daquele lugar. Percebeu que o conglomerado de estabelecimentos estava construído ao pé de um pequeno bosque, que havia no lado oeste e que dava, ao complexo, um certo ar de tranquilidade.

Estava ainda a olhar para o fundo e para o edifício escuro, quando viu o grupo de homens a caminhar com passos firmes e apressados, naquela direção. Ainda estavam vestidos com os casacos escuros, o que destoava dos outros transeuntes, que usavam trajes mais leves. A indumentária tornava-os bastante chamativos e inconfundíveis, como um grupo de pinguins a caminhar sobre o gelo extremamente branco.

Esperou que entrassem pela escura porta de madeira e foi atrás, um pouco hesitante, mas cheio de curiosidade . A construção era, por dentro, ainda mais sombria e rústica, que vista por fora. Era feita de madeira bruta e tinha dois lances de escadas firmes, separados um do outro por uma curva em noventa graus, com tábuas muito espessas, suportadas por fortes vigas de troncos brutos e cilíndricos, de cor muito escura, como se pintadas com um pigmento de sépia queimada. Ele subiu, com cuidado e constatou que no andar de cima havia uma espécie de bar.

Aparentemente, os personagens que havia seguido conversavam com um outro homem, que ele não conseguia ver claramente, já que os quatro estavam de costas voltadas para a porta, formando uma barreira à sua visão e o outro estava de frente para eles. Lembrou-se da forma com que o motorista havia olhado para si, com evidente hostilidade e decidiu que não podia deixar-se revelar. Eles estavam em maior número, de qualquer forma. Resolveu que o melhor a fazer, era mesmo sair dali o quanto antes. Deu meia volta e desceu as escadas, apressado, mas com cuidado, tentando fazer o mínimo barulho possível. Sua fuga foi subitamente protelada antes de chegar à porta de saída, lá em baixo, pois viu que alguém entrava por uma quase invisível porta lateral. Encostou-se na parede e pôs-se a observar, da penumbra, sem deixar-se ser visto.

Um homenzinho, visivelmente velho e vestido com roupas castanho-escuras, bastante surradas, acabara de entrar. Tinha a pele espessa e marcada, como a de um ancião, que trabalha ao sol, como os agricultores ou pescadores. Tinha olhos escuros, sobrancelhas muito espessas e lábios finos, quase inexistentes, numa boca larga. Trazia, pendurada do cinto, uma espécie de machadinha de lâmina estreita e chata.

Ele puxou-a do cinto e, sobre a lâmina, colocou uma pequena borboleta azul, morta, com as asas abertas, que estava embrulhada num papel pardo, que tirou de um dos bolsos do casaco de couro castanho.

O homem de cabelos castanhos, que ainda estava escondido, franziu a testa e arregalou os olhos, pois aquilo pareceu-lhe, realmente, muito estranho. 

Mas ele não estava minimamente preparado para o que veria na sequência dos acontecimentos. O que o homenzinho fez, então, deixou-o completamente boquiaberto… isso para dizer o mínimo.

***

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Como um Príncipe


Há exatamente um ano, ele fez sua viagem definitiva para o infinito. Foi sem bagagem. Embarcou leve e em silêncio. Não olhou para trás; olhou para mim, uma última vez, antes de partir para sempre... sereno... impávido... nobre…

Levou uma parte de mim com ele. Deixou atrás de si uma falta enorme e um vazio impreenchível.

Ele foi, com toda certeza, meu grande amor. Foi meu filho, meu maior amigo, minha grande paixão. Acompanhou-me por mais de treze anos, em praticamente todos os momentos, especialmente nos mais difíceis e só me trouxe alegrias, para além de uma paz sublime demais. Fez de mim, com certeza, um homem melhor e muito mais humano.

Escrever qualquer coisa sobre ele, hoje, é bastante árduo, sem ter os olhos cheios de lágrimas e a mente e o peito cheios de lembranças… todas lindas… mesmo porque todas as lembranças que eu guardo dele são mesmo as mais bonitas.

Tiger adorava estar onde eu estava. Tinha sempre que ter a certeza que não havia sido deixado sozinho. Gostava de usar minha cadeira, especialmente no inverno, quando eu ainda estava sentado nela, aninhando-se atrás de mim e empurrando-me cada vez que virava de lado. Deixava-me dar-lhe banho, uma vez por mês e escovar-lhe os dentes, duas vezes por dia. Adorava ter o corpo escovado, deitar sobre meu peito, brincar de esconder-se atrás das cortinas e das portas.

Esperava-me, invariavelmente, à porta, todos os dias. Às vezes, quando eu chegava em casa mais tarde que o normal, ele ronronava tão alto ao ver-me, que parecia que ia explodir, de tanta satisfação por ter-me de volta perto dele. Acalmava-se somente quando eu deitava a cabeça sobre seu ombro e acariciava, levemente, toda a extensão de seu longo corpo, ruivo e branco.

Meu tigre foi a melhor coisa que me havia acontecido. Ensinou-me muitas coisas, entre as quais, como viver com simplicidade e amar sem preocupações e sem quaisquer limites.

Ele tinha estilo; tinha porte; tinha presença. Foi um gato sem igual.

Passou por este mundo como um príncipe e como tal foi tratado. Foi amado, mimado, servido e respeitado como um igual...e como igual foi sempre considerado, porque éramos mesmo muito parecidos, em comportamento, apesar de todas as possíveis diferenças entre nossas espécies.

Era conversador e exigente. Claro que tinha um milhão de manias, mas eram quase todas toleráveis. Quando queria alguma coisa, era insistente. Não descansava enquanto não conseguia. A hora de dormir era sagrada. Precisava que eu desligasse a TV e apagasse as luzes. Passava uma vistoria pela casa toda e, somente depois, vinha para o meu lado, avisando quando entrava no quarto. Os horários das refeições também eram, obviamente, controlados, especialmente ao acordar e aos fins-de-semana.

Tiger era super carinhoso, sempre presente, sempre atento a tudo que acontecia à sua volta e, também e especialmente, a mim, seu brinquedo favorito.

Nasceu em África, morou cerca de seis anos no Brasil, veio a morrer em Portugal, depois de quase sete anos a conviver comigo nesta terra distante.

Meu tigre foi-se, para sempre, desta vida, mas estará sempre vivo na minha memória e no meu coração. Ele abriu-me a alma para uma espécie de sentimento que eu não sabia existir. Mostrou-me que o amor tem que ser assim, sempre: incondicional e ilimitado.

Saudades do meu príncipe... 

Ele será, eternamente, uma memória querida, que guardarei por toda a vida e que me fará, sempre, sorrir, ao ser lembrado!




sábado, 2 de agosto de 2014

Obliviar (Fase Dois do Esquecimento)


Do calor suave

da tua sublime boca,

eu bebo

um poderoso veneno:

frio, incolor,

e com um delicado

e doce-amargo sabor…

Uma estranha fisgada 

de dor

liberta-me

das melancólicas

e angustiantes garras

 das memórias sombrias,

que continuavam insistindo

em ascender

do meu imperecível passado.

Aquelas recordações,

algumas ainda mais vivas

do que outras,

começam lentamente

a dissipar-se

em uma bem-vinda,

acrómica e amena

névoa

de esquecimento,

que acaba,

eventualmente,

esvanecendo no ar

e recuperando-me da dor,

(mas não sem deixar

algumas das suas cicatrizes

mais dolorosas

e profundas)...

Chega de reminiscências

não solicitadas,

levantando vivas

das pálidas dunas

no deserto

da minha mente.

Chega de lembranças

de uma realidade,

que costumava ser boa

para absolutamente nada.

O que ficou foi, tão-somente,

um desolado vazio...

(o imenso

e confortável

vácuo do oblívio)...

Minha vida está, agora,

mais do que pronta

para ser reforjada  

e moldada,

uma vez mais,

à sua singular e distinta

forma e cor...

Por fim

E depois de tudo...


domingo, 27 de julho de 2014

Oblivion (Phase Two)



From the soft warmth

of your exquisite mouth,

I drink a powerful,

drab,

cold

and bitter-sweet poison

of forgetfulness.

An eerie sting

of pain

heals me

from the dreary

and throbbing claws

of gloomy memories

that keep on insisting

to ascend

from my abiding past.

Those memories,

some previously more vivid

than others,

then, slowly

start fading

into a sweet

and colourless haze

of welcome oblivion,

that ends up,

eventually,

vanishing into the air

and healing my pain,

but not without leaving

some of its deep scars…

No more unsolicited

reminiscences

coming up alive

into the pale

deserted

sand dunes

of my mind.

No more recollections

of a reality

that used to be good

for nothing at all.

There is now only

a desolate emptiness left…

the immense

and comfortable void

of Lethe…

My life is now

more than ready

to be shaped

and wrought

back again

into its unique

and distinct outline

and colour...

after all...

domingo, 20 de julho de 2014

Obliviar (Fase Um do Esquecimento)



Tu ainda lembras de mim,

Minha criança?

Lembras como eu costumava

Olhar-te, sem conseguir

Esconder

Toda a afeição

Que eu sentia por ti?

Sabias que,

Às vezes,

Eu ainda penso

Em ti,

Minha criança?

(...E que meus olhos

Não conseguem

Disfarçar

O vazio

Que ficou no meu coração

Quando partiste?...)

Tu ainda lembras

Daquele último abraço,

Minha criança?

(Aquele que separou

Nossas vidas

Por todo este sempre?)

Alguma vez pensaste

Quão triste

Eu senti-me,

E por tanto tempo,

Desde aquele dia?

Mas, então,

Por alguma razão

Que eu não consigo explicar,

O Universo decidiu

Que ia dar-me

Uma outra chance

E, embora tu ainda vivas

Em algum compartimento

Secreto

No meu coração,

As lembranças que eu tinha

De ti

Foram-se tornando,

Vagarosa,

Mas firmemente,

Apenas doces recordações,

Que vão-se desbotando

Numa névoa

Irreversível

De esquecimento...

domingo, 13 de julho de 2014

Oblivion (Phase One)



Do you still remember me, 
my child? 
Do you remember how
I used to look at you 
and how I would not be able
To hide 
all the affection I felt 
towards you? 
Did you know 
I still think of you, 
every now and then, 
my child? 
My eyes cannot disguise
the emptiness my heart was left 
when you were gone… 
Do you still remember 
that last embrace, 
my child? 
The one which separated 
our lives 
for good 
and forever? 
Have you ever thought 
how miserable I had felt 
for such a long time 
since that day? 
But, then, somehow 
and for a reason
I cannot really understand,
the Universe has decided 
to give me another chance 
and although you still live 
in some secret place 
in my heart, 
your memories have turned into 
just sweet recollections 
that are slowly,
but definitely, 
fading into 
a misty 
and irreversible 
state of oblivion…