Uma brisa amena de final de
Primavera soprava na esplanada à beira do rio, perto da foz. Ele havia saído do
trabalho à hora mais ou menos certa - coisa bastante rara nos últimos tempos -
e decidira beber uma taça de um suave e fresco vinho verde e relaxar um pouco,
antes que o fim-de-semana começasse. Não estava interessado nos transeuntes,
mas em olhar as águas a correrem na direção do mar. Aquela visão deixava-o
relaxado e absorvia-lhe os pensamentos, levando sua imaginação para terras
quase nunca dantes percorridas. Sentia a mente sensivelmente vazia. Não queria
pensar em nada; só deixar os odores do fim da tarde preencherem suas narinas, o
sabor do vinho fresco a aguçar-lhe os sentidos e os sons do anoitecer tomarem
conta do ambiente à sua volta. Ele desligara a parte do cérebro que distinguia
as vozes e conversas. Estava mais interessado nos outros sons, menos ouvidos na
vida normal: o gralhar das gaivotas, a água a correr, um cão a ladrar ao longe,
a peculiar e característica música da noite a chegar…
Um solitário saxofonista, vestindo
um colete aberto preto sobre uma t-shirt branca e usando um chapéu coco, também
preto, começara a tocar uma melodia bastante melancólica, cujas notas ele alongava
com exímia destreza – quase como num ‘noturno’
- na calçada, bem próximo de onde o homem estava. A música sempre mexera com seus
sentidos e aquela fazia sua imaginação vaguear, completamente solta e sem qualquer
tipo de amarras.
Um grupo de jovens, provavelmente
estudantes, aproximou-se em algazarra, rindo alto e fazendo-o voltar à terra.
Uma das moças esbarrou no pé da sua cadeira, ao passar e, voltando-se, pediu
desculpas, sorrindo e ficou a olhá-lo, sem seguir adiante. Tinha olhos muito
claros e um sorriso encantador. Ele sorriu de volta e ficaram a olhar-se, por
uns pouquíssimos segundos, até que alguém a chamou pelo nome.
- Elena! Vamos!
Ela voltou para o grupo e ele ficou
a observar enquanto os jovens afastavam-se, ainda às galhofas. A maioria das
pessoas trajava roupas leves, camisas de mangas arregaçadas, t-shirts ou
blusinhas de mangas curtas. A temperatura estava por volta dos 23 graus
Centígrados - o que, para o homem de meia-idade, bastante pálido e com ralos
cabelos castanhos, já há muito tornando-se brancos à altura das têmporas, ainda
era bastante calor – especialmente àquela hora do dia.
Levantou-se, pagou a conta e decidiu
caminhar até o parking, que ficava a uma boa distância de onde estava, quase no
outro extremo da movimentada ribeira. Uma fina faixa de luz ainda tingia o
horizonte com cores quentes e fortes, mas o céu acima dele já exibia fortes
matizes de índigo, salpicado de minúsculos pontos brilhantes.
Quando desceu a rampa, já onde
estava o carro estacionado, viu que um pequeno grupo de homens, vestidos com
casacos escuros, que iam até a altura dos joelhos, caminhava na sua frente.
Estranhou as vestimentas, já que não estava nem um pouco frio. Eles caminhavam,
sem olharem uns para os outros e sem conversarem.
Alguém passou por ele, bateu contra seu
braço e passou adiante, sem ao menos pedir desculpas. Viu que era um outro
homem vestido da mesma maneira dos outros que caminhavam à sua frente e que
apressava-se em juntar-se ao grupo. O estranho foi que eles não o
cumprimentaram quando ele aproximou-se, nem ele, tampouco, ao grupo. Apenas
continuaram a caminhar, lado a lado, sem se olharem, até um carro preto
estacionado perto do seu. Os quatro estranhos entraram, quase ao mesmo tempo e
quase automaticamente, cada um por uma das portas do veículo.
O homem olhava-os de uma maneira
distraidamente interessada, se é que isto era, de alguma maneira, possível.
Chegou ao seu carro mesmo a tempo de ver o outro veículo passar por ele e pela
primeira vez percebeu o tipo que estava ao volante, já que era a única janela
aberta e os outros vidros estavam levantados e eram cobertos por uma película
escura. O condutor tinha cabelos muito negros e pele azeitonada, sem ser
bronzeada e olhos parcamente emoldurados por quase inexistentes sobrancelhas. Ainda
conseguiu ver que o outro homem, sentado ao seu lado, tinha características físicas
bastante similares, mas não se pareciam um com o outro. Deviam ser da mesma
origem étnica, pensou.
Um calafrio correu-lhe pela espinha
quando percebeu que o motorista virou-se para fitá-lo, ao passar. Era o mesmo
homem que esbarrara no seu braço, mas tinha uma expressão ameaçadora no olhar. O
estranho havia reduzido a marcha ao aproximar-se e, assim que olhou o outro,
acelerou e foi em direção à saída do estacionamento. O homem apressou-se em
entrar no carro, já resolvido a sair dali o quanto antes. Seu sensor de perigo
já estava a girar em amarelo.
Apesar de um pouco assustado pelo
que vira, ele estava, também, um tanto intrigado com o incidente, afinal havia
sido abalroado pelo sujeito e ele ainda decidira encará-lo, como se quisesse
ameaçá-lo ou intimidá-lo. O sangue subiu-lhe à cabeça, quando pensou naquilo.
Viu o veículo parado no semáforo à sua frente, mas o condutor furou o sinal,
assim que percebeu não vir nenhum outro carro das ruas adjacentes.
Deviam estar com pressa, pensou. Com
aquele tipo de condução, não admiraria se causassem um acidente e, entre dentes
e em voz alta, desejou mesmo que se envolvessem em um. Era sua veia vingativa
falando mais alto que ele. Observou-os subir a rua, esperou o sinal abrir e
seguiu seu caminho, já entretido com suas músicas favoritas a tocar no CD player.
A alameda estava iluminada por fortes
luzes amarelas, o que dava uma atmosfera surrealista ao local. Por uns
instantes, esqueceu do sucedido há poucos minutos, pois adorava passar por
entre as árvores, naquela região, a caminho de casa. Seu estômago roncou e ele deu-se
conta que havia passado do horário usual do jantar. Havia estado a tarde toda
em reunião e não tinha tido tempo de comer nem uma fruta. Estava com fome. Ele,
agora, pensava somente no que iria preparar para comer, quando chegasse em casa.
De repente, um vulto saltou à frente
do carro e passou correndo do lado esquerdo para o direito da rua. Ele pisou no
freio, automática e violentamente. Por sorte não vinha ninguém atrás de si, que
pudesse causar um inconveniente acidente de viação. Se o que cruzara seu
caminho era um gato, devia ser um animal enorme, pensou o homem, ainda com o
coração acelerado. Olhou para o lado direito, tentando distinguir se avistava qualquer
sinal dele, quando viu o veículo preto estacionado num pequeno complexo de
edifícios comerciais, ao qual nunca havia prestado atenção anteriormente.
Sua curiosidade acendeu-se novamente
e, apesar de saber que não era a coisa mais certa a fazer, resolveu ir até lá,
estacionando o mais longe possível do tal veículo preto. Por sorte, seu carro
não era mais que um modelo dos mais populares, de cor bastante comum, que
passaria quase despercebido, no meio dos outros ali estacionados, muitos da
mesma cor cinzenta. Havia uma loja de conveniência, um pequeno restaurante ‘take-away’, uma lojinha de equipamentos
informáticos e outras menores, perto de uma razoavelmente maior, de móveis e
uma farmácia. Bem ao fundo, um tanto separado das lojas, havia uma construção
diferente das outras, um pouco mais escura e rústica. Devia ser algum
restaurante típico ou talvez até mesmo um bar. Perguntou-se por que razão nunca
havia-se dado conta da existência daquele lugar. Percebeu que o conglomerado de
estabelecimentos estava construído ao pé de um pequeno bosque, que havia no
lado oeste e que dava, ao complexo, um certo ar de tranquilidade.
Estava ainda a olhar para o fundo e
para o edifício escuro, quando viu o grupo de homens a caminhar com passos
firmes e apressados, naquela direção. Ainda estavam vestidos com os casacos
escuros, o que destoava dos outros transeuntes, que usavam trajes mais leves. A
indumentária tornava-os bastante chamativos e inconfundíveis, como um grupo de
pinguins a caminhar sobre o gelo extremamente branco.
Esperou que entrassem pela escura porta
de madeira e foi atrás, um pouco hesitante, mas cheio de curiosidade . A
construção era, por dentro, ainda mais sombria e rústica, que vista por fora.
Era feita de madeira bruta e tinha dois lances de escadas firmes, separados um
do outro por uma curva em noventa graus, com tábuas muito espessas, suportadas
por fortes vigas de troncos brutos e cilíndricos, de cor muito escura, como se
pintadas com um pigmento de sépia queimada. Ele subiu, com cuidado e constatou
que no andar de cima havia uma espécie de bar.
Aparentemente, os personagens que havia
seguido conversavam com um outro homem, que ele não conseguia ver claramente, já
que os quatro estavam de costas voltadas para a porta, formando uma barreira à sua
visão e o outro estava de frente para eles. Lembrou-se da forma com que o
motorista havia olhado para si, com evidente hostilidade e decidiu que não
podia deixar-se revelar. Eles estavam em maior número, de qualquer forma. Resolveu
que o melhor a fazer, era mesmo sair dali o quanto antes. Deu meia volta e desceu
as escadas, apressado, mas com cuidado, tentando fazer o mínimo barulho
possível. Sua fuga foi subitamente protelada antes de chegar à porta de saída,
lá em baixo, pois viu que alguém entrava por uma quase invisível porta lateral.
Encostou-se na parede e pôs-se a observar, da penumbra, sem deixar-se ser
visto.
Um homenzinho, visivelmente velho e vestido
com roupas castanho-escuras, bastante surradas, acabara de entrar. Tinha a pele
espessa e marcada, como a de um ancião, que trabalha ao sol, como os
agricultores ou pescadores. Tinha olhos escuros, sobrancelhas muito espessas e
lábios finos, quase inexistentes, numa boca larga. Trazia, pendurada do cinto, uma
espécie de machadinha de lâmina estreita e chata.
Ele puxou-a do cinto e, sobre a
lâmina, colocou uma pequena borboleta azul, morta, com as asas abertas, que estava
embrulhada num papel pardo, que tirou de um dos bolsos do casaco de couro
castanho.
O homem de cabelos castanhos, que ainda estava escondido, franziu a testa e arregalou os olhos, pois aquilo pareceu-lhe,
realmente, muito estranho.
Mas ele não estava minimamente preparado para o que veria na sequência dos acontecimentos. O que o homenzinho fez, então, deixou-o completamente boquiaberto… isso
para dizer o mínimo.
***