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domingo, 28 de junho de 2015

Rota de Fuga (Parte 3 - Epílogo)


- Vocês não podem estar aqui. Essa área é classificada como de segurança nacional. É proibida a permanência de civis, além de ser muito perigoso…
Os rapazes não sabiam o que dizer. O soldado recitava, com uma certa dificuldade, o discurso que, provavelmente, aprendera durante seu treinamento. Estava caído no chão, com algumas queimaduras estranhas na pele das mãos e do rosto. Pela boca, escorria um fio de sangue, mas ele havia sido, certamente, preparado para proteger o lugar, com a sua vida, se fosse necessário. Ele não sacou a arma, nem fez menção de tentar. Parecia saber que estava morrendo rapidamente. Tentou levantar-se, mas o esforço só piorou sua condição. Ele tossiu e soltou uma golfada de sangue, antes de perder a consciência. Os rapazes evitaram aproximar-se, mais por medo, do que incapacidade ou respeito às regras. Um som intermitente saía de algum lugar na sala, mas eles não conseguiam distinguir de onde vinha.
- Que lugar é esse? E de onde vem este som? Parece algo que eu já ouvi antes, mas não consigo lembrar-me de onde…
- Não sei. Parece um depósito, pela quantidade de caixas empilhadas. Aquilo ali…
O rapaz hesitou em concluir a frase, mas prosseguiu, ao ver que o ponteiro do aparelho, que emitia aquele som quase contínuo, oscilava de um lado ao outro, sem parar. Estava encostado ao corpo do soldado desacordado.
- …é um contador Geiger? Parece com um daqueles que vimos nas aulas de Ciências.
Ao ser afastado de onde estava, o contador diminuiu a ação. O rapaz aproximou-o mais uma vez do corpo do soldado e o som voltou a ser aquele ra-ta-tá-tá intermitente.
- Ele foi submetido à radiação. Este lugar pode estar totalmente contaminado. Temos que sair daqui.
- Olha aquilo. O que deve haver lá dentro?
Havia uma porta metálica, que levava a um outro compartimento, na parte traseira daquela sala, onde haviam muitas prateleiras com comida não perecível, água e outros víveres, provavelmente estocados para o caso de alguma emergência ou acidente... e aquela era uma emergência, com certeza.
- Vamos ver se a comida e a água estão aproveitáveis. Se não estiverem, não podemos usá-las. Qualquer sinal de radiação deve nos fazer mal. Acho que será melhor manter sempre o aparelho connosco, daqui para diante. Pode ser-nos muito útil.
Constataram que, dentro daquela sala, porém, tanto a água quanto a comida desidratada estavam boas, sem qualquer sinal de radiação. Também havia algumas barras de chocolate, que podiam cair bem numa hora de enganar o estômago, se fosse conveniente. Os rapazes pegaram alguns pacotes e encheram a mochila. Também pegaram um pouco de antisséptico e gaze. Numa outra caixa, mais afastada, havia algumas bolsas com alças ao tiracolo. Eles tomaram uma delas, encheram com comida e água e apressaram-se a deixar o lugar, antes que a radiação lhes causasse algum mal.
Ao passarem pelo soldado, perceberam que ele já não respirava. Havia uma grande mancha de sangue a espalhar-se no peito da farda. Já não havia nada que eles pudessem fazer, mesmo que quisessem.
- Vamos embora daqui. Este lugar causa-me uma má impressão. E é perigoso demais…
- Tive uma ideia. Ainda tens a bússola?
- Acho que tenho. Aqui.
- Segundo as aulas de Geografia, a cidade fica ao noroeste.
- Como é que lembras disso?
- Como é que não lembras? É para isso que levamos as bússolas, quando acampamos no mato… Pela orientação da agulha, se o norte é naquela direção, este túnel segue para o noroeste… Deve levar-nos à cidade. Era esta, com certeza, a ‘rota de fuga’ deste lugar e o depósito, uma das últimas possibilidades de abastecimento, em caso de acidente. Eles pensaram em quase tudo.
- Claro. São engenheiros e cientistas. Será que sobrou alguém?
- Claro que sim... Não faça perguntas idiotas. Vamos embora daqui, antes que mais alguém nos pare.
Caminharam pelo extenso corredor por algum tempo, sem ver ou ouvir qualquer coisa, além do som dos próprios passos a ecoar no piso de concreto. Às vezes parecia que a estrutura rangia, quando eles passavam e eles, então, apressavam o passo, receosos que a mesma quebrasse.
Mais à frente, à esquerda, viram um outro corredor lateral, depois de terem caminhado algumas dezenas de metros. Um sinal indicava, com uma seta: Laboratório de Pesquisas e Desenvolvimento. Enveredaram por ali, mas antes que chegassem a algum lugar, viram que a estrutura havia entrado em colapso e, boa parte dela, havia começado a desabar. Uma espessa porta metálica bloqueava-lhes o caminho. Era controlada e aberta por um sistema eletrónico de segurança, com um código a digitar, mas como não havia eletricidade, não havia forma de mover um centímetro sequer da pesada porta. Eles tentaram forçar a entrada, mas foi em vão.
Na parte que havia quebrado, conseguiram ver o tamanho da cratera deixada e o estado que ficara o edifício subterrâneo da base. A destruição era total. A cratera engolira todo o edifício principal, que havia na parte central.
A estrutura estremeceu e um som, já conhecido deles, fê-los olharem-se, em pânico. O piso começava a quebrar por baixo dos pés deles. Os dois nem pensaram muito. Correram dali o mais rápido que conseguiram. Já de volta ao corredor, pisando terreno mais firme e pensando estarem fora de perigo, pararam para avaliar a situação.
- Temos que parar de entrar nestas frias, a cada esquina, apenas por curiosidade. É melhor mantermo-nos no túnel e evitarmos mais perigos. Quero sair daqui o quanto antes.
- Vamos embora, então. Se a única saída for à cidade e, para o nosso bem, é melhor que seja, temos muito chão a percorrer... Isso, se não encontrarmos mais obstáculos pelo caminho. Pelas minhas contas, se caminharmos cerca de cinco quilômetros por hora, devemos estar lá em pouco mais de dez horas.
- Dez horas? Não sei se vou aguentar…
- Desculpa. Havia-me esquecido das horas, com esta agitação toda. É melhor comermos alguma coisa e descansar um pouco, antes de continuarmos. Como está o ferimento?
Ao invés de responder, o rapaz parou, com uma expressão estranha no rosto e, apesar de estar sem os óculos, tinha os olhos parecendo fixos num ponto atrás do amigo.
O outro voltou-se, para ver o que se passava e ficou tão estarrecido quanto o rapaz que havia sido ferido. Não esperavam por aquela. Não depois de tudo que já haviam passado.
***
- Será que aquele depósito tem ferramentas?
- É bom que tenha, ou nunca sairemos daqui. Lá se vão as dez horas de caminhada…
- Não contava com essa. Pensei que teríamos o túnel livre até o povoado. É muito azar. Aquela é nossa única alternativa. Não há outra saída.
As explosões haviam enfraquecido as vigas de sustentação do túnel. Algumas partes haviam caído e outras apresentavam risco iminente. Os dois rapazes não tinham ideia do perigo que ainda corriam, até que uma boa parte do teto rompeu-se à frente deles e bloqueou o túnel completamente. A saída, que antes parecia fácil, estava fora de alcance dos dois, naquele momento. 
Havia uma alternativa… Uma única alternativa: escavar, até conseguir sair daquela situação.
***
- Preciso descansar. Já faz tanto tempo que cavamos. Ainda não conseguimos nada. Será que vamos conseguir sair daqui?
- Cala-te... Claro que vamos. Por isso não podemos desistir. Este túnel tem que ser a nossa saída… 
- Se tivéssemos uma forma de cavar mais rápido…
- Acho que há…
Pela expressão na face do rapaz, o plano era, ou brilhante, ou louco. De todas as formas, parecia ser imprudente e arriscado demais.
- Tens certeza que isso vai dar certo? Podemos quebrar isso tudo e ficar soterrados de uma vez. Sem contar com o perigo de ficarmos sem ar…
- Não tens outra ideia melhor, tens? Vamos a isso!
O rapaz atirou uma granada de mão contra o monte de terra que haviam estado a escavar e correu na direção oposta. Havia visto duas delas na cintura do soldado morto, dentro do armazém. Se conseguissem abrir uma passagem no meio do túnel, ainda conseguiriam transpor e correr para longe dali, antes que as estruturas desabassem todas, por estarem enfraquecidas demais. A granada poderia ter o efeito oposto ao que eles desejavam, mas era uma hipótese, entre as poucas que haviam.
Quando a poeira baixou, correram para ver se conseguiram atingir o objetivo. Uma grande cratera havia sido aberta no monte de terra, mas não havia sido suficiente para proporcionar-lhes a liberdade. Foi decepcionante. O rapaz sentou-se, desanimado, sobre um monte de terra. Sentia vontade de chorar e desistir, mas não queria demonstrar fraqueza ao amigo, que já tinha sido ferido por culpa da curiosidade de ambos. Tinha que mostrar-se forte, mesmo sabendo que estavam condenados a ficar naquele lugar. Pousou a cabeça entre as duas mãos e sentiu que podia enterrar-se ali. Desejou que aquilo fosse somente um sonho mau... um pesadelo… mas não era…
O outro aproximou-se e tocou-lhe no ombro.
- Foi uma boa tentativa. Fizemos o que podíamos. Vamos descansar dentro do armazém e depois continuamos a cavar. Pelo menos o teto não cedeu… ainda… Estou cansado e com fome. Vamos parar um pouco.
- Tinha que ter dado certo. Não podia dar errado. Agora estamos mesmo enrascados…
O teto, acima do monte de terra que havia sido explodido, fez um som conhecido e começou a abrir uma rachadura, que desceu pela parede, correu pelo chão e começou a desabar, ali na frente deles. Um dos rapazes começou a correr. O outro seguiu-o, mas ao olhar para trás, para certificar-se que estavam a salvo e longe do perigo, parou e gritou ao outro:
- Volta! Olha aquilo!
Havia uma pequena fenda ao lado direito, junto à parede. Não era suficiente para passarem, mas eles conseguiam ver através dela. O corredor estava praticamente desimpedido, do outro lado. Mas a parede era de betão sólido. Não havia como cavar à volta.
- Nós ainda temos uma granada…
- Ah, não! Nós vamos morrer soterrados.
O rapaz não ouviu o aviso do outro. Colocou a granada na fenda, com extremo cuidado, mas certificando-se que ficava bem presa. Amarrou um barbante no gatilho e puxou o fio de uma distância que considerou suficientemente segura. A granada demorou um pouco e explodiu, como era de esperar.
Quando conseguiram chegar perto, viram que havia espaço suficiente para passarem, mas a estrutura estava começando a desabar, novamente. Eles passaram e o teto caiu logo atrás deles, cerrando o que havia atrás, incluindo a única fonte de comida e água que tiveram. Os dois correram como desesperados pelo corredor escuro, sem olhar para trás e sem intenção de parar tão cedo.
***
- Ainda não vimos ninguém, além do soldado a morrer... E não foi uma visão espetacular. Nunca havia visto nada parecido.
- Nem eu. Mas acho que é melhor não encontrarmos mais ninguém. Somos intrusos aqui. Queres parar um pouco?
Eles haviam perdido a noção do tempo, completamente, desde que entraram naquela aventura. Mas ao consultar as horas, viram que deviam estar na cama há muitas horas. Não foi necessária resposta. Os dois arranjaram-se contra a parede e deitaram as cabeças sobre as mochilas. Adormeceram quase imediatamente, tão grande era o cansaço físico que sentiam.
***
Quando o rapaz que havia perdido os óculos acordou, ouvia um som conhecido, mas não conseguia associar a nada, de tão atordoado que estava. Uma vibração constante reverberava em seu estômago, dando-lhe a impressão que não comia há muitos dias. Quando conseguiu focar os olhos, viu que o amigo estava de pé a olhar, com uma cara muito assustada, para um clarão que se aproximava e que o cobria de uma estranha luminosidade, como se fosse ele um ser  totalmente feito de luz.
- Estamos ferrados. Levanta-te devagar. Não digas nada!
- O que é aquilo?
- Nossa salvação ou nossa morte!
O jeep blindado aproximou-se e parou a poucos centímetros dos dois. Um soldado saiu do volante e veio na direção dos dois, com uma arma em punho, mas quando viu o estado crítico em que os rapazes estavam, guardou a arma e mudou a estratégia.
- Venham comigo! Preciso ver se ainda há alguém lá na base.
- Não há mais nada lá e o túnel está bloqueado em vários pontos. A estrutura desabou, junto com todo o resto.
- E como vocês entraram aqui e como escaparam?
Os rapazes contaram, brevemente, sua inusitada história, com algumas pequenas reticências, tentando evitar maiores problemas. O soldado não disse muito. Virou o rumo do carro e foi na direção da qual viera. Ao contrário do que os rapazes pensavam, a saída estava bem mais longe do que cinquenta quilômetros do centro da base. Por precaução, resolveram não perguntar nada, pelo menos até que estivessem seguros e fora dali.
Muitos quilômetros adiante, havia uma grande porta de metal, ainda fechada. Por cima dela, em letras brancas, num fundo vermelho, estava escrito: SAÍDA. 

Os corações dos dois deram um salto. Estavam, finalmente, livres de perigo...
O soldado desceu do jeep e foi até a porta. Havia uma alavanca que ele começou a girar e a porta começou a mover-se, lentamente. A luz lá fora era muito pouco intensa. Chovia. Já no carro, o homem disse-lhes:
- Ponham os cintos de segurança... Preparem-se.
- Meu Deus! O que aconteceu aqui? Onde estão as plantações?
- Estamos passando pelo que sobrou delas. Viraram cinzas... assim como todo o resto.
O contador Geiger começou a vibrar e o ponteiro parecia enlouquecido, ratatatando sem parar.
- Estamos um pouco além da cidadela. Já não há mais nada lá. Tenho que levá-los à base principal, longe do perigo. O carro é revestido de chumbo, mas tenho que passar rápido por essa região.
- Não, por favor. Precisamos voltar para casa. Nossos pais devem estar preocupados.
- Não posso. Já não há nada lá. Foi tudo destruído na explosão. A população foi tomada de surpresa pela sequência de  explosões. Morreram todos num raio de mais de cinquenta quilômetros. Sinto muito rapazes. Vocês agora vão ter que vir comigo, até a base. Não há alternativa.
O jeep blindado deslizou em alta velocidade pela estrada, passou por um posto de controlo, muito além e rumou para a base. No banco de trás, um rapaz chorava sem parar, com a cabeça enterrada no ombro de um outro, que tinha lágrimas nos olhos, mas mantinha uma expressão séria e fechada, tentando manter-se forte a todo custo.
O soldado não disse mais nada. Não havia nada que ele pudesse dizer. Imaginava o tamanho da tragédia e o peso que aqueles dois rapazes iriam carregar pelo resto de suas vidas. Mais adiante, parou em outro posto de vigia, trocou umas poucas palavras com o guarda, que mantinha o controlo da guarita e entrou na grande base militar.
A chuva, fina e fria, caía sem parar. 

Aqueles dois jovens, sobreviventes de uma inverosímil hecatombe, sentiam como se estivessem tendo um pesadelo. Não sabiam, entretanto, se aquele sonho ruim já terminara ou se apenas começava...


sábado, 30 de maio de 2015

Rota de Fuga (Parte 1)


O sol de verão castigava a cabeça daquele jovem robusto, de tez muito clara e cabelos quase loiros, vestido com uma farda em tecido estampado com padrões abstratos, em vários tons de cáqui e verde. O suor escorria-lhe pela face arredondada, barbeada às pressas, fazendo-a avermelhar.

Era começo da tarde e ele desejava um banho frio, urgentemente. Seu desejo, porém, só seria possível bem mais tarde, após anoitecer e ele terminar o turno. Passava dias e dias naquele lugar, a caminhar de um lado para o outro, sem muito o que fazer, a não ser vigiar o local.

Ele odiava o calor. Odiava aquela roupa abotoada até a altura do peito, quase no pescoço. Odiava ter que usar aquela t-shirt branca por baixo da farda. Ele, simplesmente, odiava estar ali, ao sol, a transpirar, numa função com muito pouca ação e que não exigia nada dele, além de muita paciência.

Aprendera a observar os mais ínfimos movimentos ao longo da área, distraindo-se da aborrecida tarefa que tinha de executar todos os dias, o dia todo. Seus olhos treinados percebiam as mínimas atividades dos pequenos predadores da região, que vinham sempre a busca de alguma comida ou em perseguição de algum roedor, réptil ou mesmo insetos.

Um movimento incomum, num canto, perto de um dos rolos de arame farpado que cercavam o lugar, que ele tinha vigiar e proteger, chamou-lhe a atenção. Primeiro, pensou que fosse um coelho ou um pássaro, mas um pequeno reflexo, quase imperceptível, fê-lo desconfiar que poderia haver algo mais, daquela vez.

Se aquele reflexo fosse de alguma superfície de vidro polido, poderia ser de alguém, que estivesse escondido, a espreitar. Aquela era uma área que de segurança nacional, cuja entrada era proibida a civis. Ele puxou a arma do coldre, destravou o gatilho e começou a caminhar na direção do brilho.


- Acho que ele nos viu. Corre!

- Mas que diabos foi aquilo? Ele atirou em nós?

- Não faça perguntas tolas. Claro que são tiros. Ele é o guarda, afinal… Agora, corre!

O som dos tiros e as balas, a passarem perto dos dois rapazes e ricochetearem nas paredes de concreto, dava-lhes mais que motivos suficientes para correrem o mais rápido que pudessem, sem olhar para trás. Se não o fizessem, perderiam segundos preciosos na fuga. Haviam invadido terreno proibido e sabiam que, se fossem capturados, não seriam poupados.

O tal guarda não parecia nem um pouco interessado em capturá-los. Estava mais predisposto a abatê-los de vez e acabar com a possibilidade de ter a base invadida por intrusos curiosos, como aqueles dois rapazes irresponsáveis e intrometidos. Ele fora treinado para o combate e as saídas estratégicas, não para perseguir adolescentes em fase escolar, vestidos com calções e t-shirts coloridas.

Se a base fosse descoberta, eles iriam ter que explicar muita coisa. Ao mesmo tempo, matar civis poderia gerar um conflito ainda maior. A solução era eliminar, completamente, quaisquer vestígios que pudessem colocar a operação em risco.

Ele odiava correr, especialmente atrás de intrusos. Já bastava ter que ficar de pé o dia todo, debaixo daquele sol de verão, vestido com farda e botas, sentindo o corpo a ferver e agora ainda tinha que correr atrás dos rapazes, debaixo daquele calor infernal.

Ele execrava aquilo tudo: a maldita operação, a maldita base "secreta" e, agora, os malditos adolescentes.

Ele adorava, entretanto, ter uma hipótese de poder atirar em alguém… já que havia sido treinado para aquilo e nunca tivera oportunidade para tal.

A base fora edificada no meio do nada, entre algures e nenhures. Era uma estrutura praticamente invisível, tanto vista de cima, quanto da estrada. Estava construída no topo de um monte, numa cratera escavada com o fim de ficar longe da vista de curiosos. A maior parte das operações ficava na parte subterrânea. Quanto mais estratégico e importante o sector, mais profunda era a área. Era como um arranha-céu invertido.

O povoado mais próximo devia ficar a mais de cinquenta quilômetros daquele lugar. Os rapazes descobriram o local, por acaso, quando ouviram e seguiram o som de um helicóptero, enquanto acampavam no meio da mata.

Logo chegaram a uma área, cercada por centenas de metros de arame farpado, enrolados em espirais, ao longo da grande construção, que por fora, parecia nada mais que um vasto campo de concreto.

Adolescência e curiosidade andam sempre de mãos dadas. As consequências daquela perigosa e displicente  parceria nem sempre eram boas. Era aquele o caso.

Os dois rapazes fugiam, sem olhar para trás, tentando sair do campo de visão do atirador. O guarda era alguns anos mais velho que eles e tinha porte físico bem mais avantajado, além de haver sido treinado militarmente. Com uma arma na mão, colocava, obviamente, os dois em desvantagem.

Eles só tinham uma alternativa: correr… ou então, morrer… e nenhum dos dois tinha intenção de morrer tão cedo. Ainda tinham planos para a escola, carreira, mulheres, futuro.

Morrer não era uma opção. Não mesmo!

Se chegassem de volta à mata, ainda teriam alguma hipótese, pois seriam alvos menos limpos, mas tinham que correr mais e torcer para não serem atingidos até lá.

- Por ali. Depressa!

Uma outra bala passou zunindo. O rapaz, cujos óculos haviam denunciado a presença dos dois ao guarda, sentiu uma dor estranha no lado esquerdo e suas pernas fraquejaram, descontroladas. Tentou continuar correndo, mas, apesar de a adrenalina estar circulando em alta velocidade em seu sangue, ele caiu. A ausência do som dos passos próximo de si, fez o outro rapaz virar-se, para ajudar o amigo, mas já era tarde demais.

O guarda estava de pé, com a arma em punho, a apontar para os dois. O rapaz ferido fechou os olhos. O outro não falou nada. Ficou, somente, a olhar para aquele jovem, de faces avermelhadas, que não demonstrou qualquer emoção, quando firmou o dedo no gatilho e começou a apertá-lo.

Um estrondo ecoou na cabeça do rapaz que estava agachado junto ao amigo caído. Ele mantinha os olhos fixos na arma, que, de repente, passou a apontar em outra direção…

O chão havia estremecido com tanta violência, que o guarda perdera o equilíbrio. O rapaz ainda conseguiu ver a estranha expressão na face do outro, quando uma rachadura abriu-se na terra, engolindo-o, bem ali, à frente deles. O rapaz puxou o amigo pelos braços e viu que ferimento em seu lado esquerdo sangrava. Para sua surpresa, os olhos do outro abriram, revelando uma expressão bastante confusa, como se não percebesse o que havia acontecido, apenas poucos segundos antes.

- Consegues caminhar? Temos que fugir, antes que seja tarde demais…

- Acho que sim.

O chão estremeceu uma outra vez, com mais violência que anteriormente. A cavidade começou a alastrar-se, não só em diâmetro, mas rompendo estranhas fendas, que corriam, como braços, em todas as direções e em velocidade incontrolada. Boa parte do campo, onde estavam, ia afundando rapidamente, amplificando ainda mais o perigo.

- Vamos embora. Rápido!

O rapaz ferido, apoiado pelo outro, levantou-se, ainda com um pouco de dificuldade, mas conseguiu caminhar. A terra tremeu por baixo deles. Eles viram a cratera ceder e as fendas abrirem, como se fossem perigosos tentáculos, que cresciam, como se estivessem em busca de suas impotentes presas.

Os dois começaram a correr, tentando ser, ainda, mais rápidos que antes.

Em poucos segundos, porém, o chão faltou-lhes completamente e eles foram sugados para dentro da cratera, sem conseguirem agarrar-se a nada, enquanto a terra os engolia rapidamente…


***

sábado, 16 de agosto de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 1: Intro)


Uma brisa amena de final de Primavera soprava na esplanada à beira do rio, perto da foz. Ele havia saído do trabalho à hora mais ou menos certa - coisa bastante rara nos últimos tempos - e decidira beber uma taça de um suave e fresco vinho verde e relaxar um pouco, antes que o fim-de-semana começasse. Não estava interessado nos transeuntes, mas em olhar as águas a correrem na direção do mar. Aquela visão deixava-o relaxado e absorvia-lhe os pensamentos, levando sua imaginação para terras quase nunca dantes percorridas. Sentia a mente sensivelmente vazia. Não queria pensar em nada; só deixar os odores do fim da tarde preencherem suas narinas, o sabor do vinho fresco a aguçar-lhe os sentidos e os sons do anoitecer tomarem conta do ambiente à sua volta. Ele desligara a parte do cérebro que distinguia as vozes e conversas. Estava mais interessado nos outros sons, menos ouvidos na vida normal: o gralhar das gaivotas, a água a correr, um cão a ladrar ao longe, a peculiar e característica música da noite a chegar…

Um solitário saxofonista, vestindo um colete aberto preto sobre uma t-shirt branca e usando um chapéu coco, também preto, começara a tocar uma melodia bastante melancólica, cujas notas ele alongava com exímia destreza – quase como num ‘noturno’ - na calçada, bem próximo de onde o homem estava. A música sempre mexera com seus sentidos e aquela fazia sua imaginação vaguear, completamente solta e sem qualquer tipo de amarras.

Um grupo de jovens, provavelmente estudantes, aproximou-se em algazarra, rindo alto e fazendo-o voltar à terra. Uma das moças esbarrou no pé da sua cadeira, ao passar e, voltando-se, pediu desculpas, sorrindo e ficou a olhá-lo, sem seguir adiante. Tinha olhos muito claros e um sorriso encantador. Ele sorriu de volta e ficaram a olhar-se, por uns pouquíssimos segundos, até que alguém a chamou pelo nome.

- Elena! Vamos!

Ela voltou para o grupo e ele ficou a observar enquanto os jovens afastavam-se, ainda às galhofas. A maioria das pessoas trajava roupas leves, camisas de mangas arregaçadas, t-shirts ou blusinhas de mangas curtas. A temperatura estava por volta dos 23 graus Centígrados - o que, para o homem de meia-idade, bastante pálido e com ralos cabelos castanhos, já há muito tornando-se brancos à altura das têmporas, ainda era bastante calor – especialmente àquela hora do dia.

Levantou-se, pagou a conta e decidiu caminhar até o parking, que ficava a uma boa distância de onde estava, quase no outro extremo da movimentada ribeira. Uma fina faixa de luz ainda tingia o horizonte com cores quentes e fortes, mas o céu acima dele já exibia fortes matizes de índigo, salpicado de minúsculos pontos brilhantes. 

Quando desceu a rampa, já onde estava o carro estacionado, viu que um pequeno grupo de homens, vestidos com casacos escuros, que iam até a altura dos joelhos, caminhava na sua frente. Estranhou as vestimentas, já que não estava nem um pouco frio. Eles caminhavam, sem olharem uns para os outros e sem conversarem.

Alguém passou por ele, bateu contra seu braço e passou adiante, sem ao menos pedir desculpas. Viu que era um outro homem vestido da mesma maneira dos outros que caminhavam à sua frente e que apressava-se em juntar-se ao grupo. O estranho foi que eles não o cumprimentaram quando ele aproximou-se, nem ele, tampouco, ao grupo. Apenas continuaram a caminhar, lado a lado, sem se olharem, até um carro preto estacionado perto do seu. Os quatro estranhos entraram, quase ao mesmo tempo e quase automaticamente, cada um por uma das portas do veículo.

O homem olhava-os de uma maneira distraidamente interessada, se é que isto era, de alguma maneira, possível. Chegou ao seu carro mesmo a tempo de ver o outro veículo passar por ele e pela primeira vez percebeu o tipo que estava ao volante, já que era a única janela aberta e os outros vidros estavam levantados e eram cobertos por uma película escura. O condutor tinha cabelos muito negros e pele azeitonada, sem ser bronzeada e olhos parcamente emoldurados por quase inexistentes sobrancelhas. Ainda conseguiu ver que o outro homem, sentado ao seu lado, tinha características físicas bastante similares, mas não se pareciam um com o outro. Deviam ser da mesma origem étnica, pensou.

Um calafrio correu-lhe pela espinha quando percebeu que o motorista virou-se para fitá-lo, ao passar. Era o mesmo homem que esbarrara no seu braço, mas tinha uma expressão ameaçadora no olhar. O estranho havia reduzido a marcha ao aproximar-se e, assim que olhou o outro, acelerou e foi em direção à saída do estacionamento. O homem apressou-se em entrar no carro, já resolvido a sair dali o quanto antes. Seu sensor de perigo já estava a girar em amarelo.

Apesar de um pouco assustado pelo que vira, ele estava, também, um tanto intrigado com o incidente, afinal havia sido abalroado pelo sujeito e ele ainda decidira encará-lo, como se quisesse ameaçá-lo ou intimidá-lo. O sangue subiu-lhe à cabeça, quando pensou naquilo. Viu o veículo parado no semáforo à sua frente, mas o condutor furou o sinal, assim que percebeu não vir nenhum outro carro das ruas adjacentes.

Deviam estar com pressa, pensou. Com aquele tipo de condução, não admiraria se causassem um acidente e, entre dentes e em voz alta, desejou mesmo que se envolvessem em um. Era sua veia vingativa falando mais alto que ele. Observou-os subir a rua, esperou o sinal abrir e seguiu seu caminho, já entretido com suas músicas favoritas a tocar no CD player.

A alameda estava iluminada por fortes luzes amarelas, o que dava uma atmosfera surrealista ao local. Por uns instantes, esqueceu do sucedido há poucos minutos, pois adorava passar por entre as árvores, naquela região, a caminho de casa. Seu estômago roncou e ele deu-se conta que havia passado do horário usual do jantar. Havia estado a tarde toda em reunião e não tinha tido tempo de comer nem uma fruta. Estava com fome. Ele, agora, pensava somente no que iria preparar para comer, quando chegasse em casa.

De repente, um vulto saltou à frente do carro e passou correndo do lado esquerdo para o direito da rua. Ele pisou no freio, automática e violentamente. Por sorte não vinha ninguém atrás de si, que pudesse causar um inconveniente acidente de viação. Se o que cruzara seu caminho era um gato, devia ser um animal enorme, pensou o homem, ainda com o coração acelerado. Olhou para o lado direito, tentando distinguir se avistava qualquer sinal dele, quando viu o veículo preto estacionado num pequeno complexo de edifícios comerciais, ao qual nunca havia prestado atenção anteriormente.

Sua curiosidade acendeu-se novamente e, apesar de saber que não era a coisa mais certa a fazer, resolveu ir até lá, estacionando o mais longe possível do tal veículo preto. Por sorte, seu carro não era mais que um modelo dos mais populares, de cor bastante comum, que passaria quase despercebido, no meio dos outros ali estacionados, muitos da mesma cor cinzenta. Havia uma loja de conveniência, um pequeno restaurante ‘take-away’, uma lojinha de equipamentos informáticos e outras menores, perto de uma razoavelmente maior, de móveis e uma farmácia. Bem ao fundo, um tanto separado das lojas, havia uma construção diferente das outras, um pouco mais escura e rústica. Devia ser algum restaurante típico ou talvez até mesmo um bar. Perguntou-se por que razão nunca havia-se dado conta da existência daquele lugar. Percebeu que o conglomerado de estabelecimentos estava construído ao pé de um pequeno bosque, que havia no lado oeste e que dava, ao complexo, um certo ar de tranquilidade.

Estava ainda a olhar para o fundo e para o edifício escuro, quando viu o grupo de homens a caminhar com passos firmes e apressados, naquela direção. Ainda estavam vestidos com os casacos escuros, o que destoava dos outros transeuntes, que usavam trajes mais leves. A indumentária tornava-os bastante chamativos e inconfundíveis, como um grupo de pinguins a caminhar sobre o gelo extremamente branco.

Esperou que entrassem pela escura porta de madeira e foi atrás, um pouco hesitante, mas cheio de curiosidade . A construção era, por dentro, ainda mais sombria e rústica, que vista por fora. Era feita de madeira bruta e tinha dois lances de escadas firmes, separados um do outro por uma curva em noventa graus, com tábuas muito espessas, suportadas por fortes vigas de troncos brutos e cilíndricos, de cor muito escura, como se pintadas com um pigmento de sépia queimada. Ele subiu, com cuidado e constatou que no andar de cima havia uma espécie de bar.

Aparentemente, os personagens que havia seguido conversavam com um outro homem, que ele não conseguia ver claramente, já que os quatro estavam de costas voltadas para a porta, formando uma barreira à sua visão e o outro estava de frente para eles. Lembrou-se da forma com que o motorista havia olhado para si, com evidente hostilidade e decidiu que não podia deixar-se revelar. Eles estavam em maior número, de qualquer forma. Resolveu que o melhor a fazer, era mesmo sair dali o quanto antes. Deu meia volta e desceu as escadas, apressado, mas com cuidado, tentando fazer o mínimo barulho possível. Sua fuga foi subitamente protelada antes de chegar à porta de saída, lá em baixo, pois viu que alguém entrava por uma quase invisível porta lateral. Encostou-se na parede e pôs-se a observar, da penumbra, sem deixar-se ser visto.

Um homenzinho, visivelmente velho e vestido com roupas castanho-escuras, bastante surradas, acabara de entrar. Tinha a pele espessa e marcada, como a de um ancião, que trabalha ao sol, como os agricultores ou pescadores. Tinha olhos escuros, sobrancelhas muito espessas e lábios finos, quase inexistentes, numa boca larga. Trazia, pendurada do cinto, uma espécie de machadinha de lâmina estreita e chata.

Ele puxou-a do cinto e, sobre a lâmina, colocou uma pequena borboleta azul, morta, com as asas abertas, que estava embrulhada num papel pardo, que tirou de um dos bolsos do casaco de couro castanho.

O homem de cabelos castanhos, que ainda estava escondido, franziu a testa e arregalou os olhos, pois aquilo pareceu-lhe, realmente, muito estranho. 

Mas ele não estava minimamente preparado para o que veria na sequência dos acontecimentos. O que o homenzinho fez, então, deixou-o completamente boquiaberto… isso para dizer o mínimo.

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