domingo, 26 de junho de 2016

Acerca de Ana Maria (Parte 2 de 2)


A porta, a bater com mais força que o habitual, deixou meus sentidos em estado de alerta, mas não consegui ouvir mais que os sons tranquilizantes e impessoais do vento e do mar. Estava do lado de fora, a trabalhar na pequena horta que cultivava na parte de trás da casa e não era possível filtrar muito do que se passava lá dentro.

O som do motor do carro foi desaparecendo na distância e sendo sobreposto pelo monocórdio e lânguido marulhar das ondas naquele ir e vir contra as areias da praia. Esperei um pouco e, depois de um tempo, mais ou menos calculado, para não parecer óbvio, entrei.

Ele estava de pé, junto à janela, a olhar para fora e não virou quando eu me aproximei, como seria de esperar.

- Aconteceu alguma coisa?

- Nada importante.

Eu tinha certeza que aquela afirmação não estava nada perto da verdade, mas respeitei a reticência da resposta e deixei-a passar como se não tivesse importância.

- OK. Preciso ir ao mercado. Vens comigo?

Na verdade, eu não precisava de nada que não pudesse esperar, mas queria ter certeza de que estava tudo bem. Como não queria voltar a perguntar diretamente, fingi não dar mais relevância ao caso que merecia, para não parecer invasivo.

- Não. Preciso fazer umas coisas. Mas se lembrares, compra laranjas, que já não temos nenhuma.

- Vou lembrar, claro.

A voz parecia muito baixa e grave. Eu percebi que não me olhou, quando o telefone tocou e ele atendeu. Apressou-se a ir para a varanda, falar com privacidade, o que não surpreendeu-me de todo, mas sentia que alguma coisa havia mudado.

Será que ele não confiava mais em mim, ou estava, tão-somente, a tentar resolver o problema sozinho?

Ainda avistei-o a andar de um lado para o outro, com o telefone ao ouvido e a gesticular nervosamente. Decidi sair e deixá-lo na casa, enquanto ia ao supermercado da aldeia, que ficava a menos de dez minutos dali, de carro. Ambos precisávamos de tempo.

Quando voltei, ele estava a caminhar na praia, com os pés na água, como se a brincar com as ondas, como fazia quando era criança e sempre que precisava pensar. Já era além do fim da tarde e eu decidi que deveria tratar de arranjar algo para jantarmos.

O que nós dois tínhamos em comum, além de muitas outras coisas, era a tendência a ficar sós quando queríamos pensar em algo sério e tomar decisões. Se precisasse conversar, ele sabia que eu estava à mão…

Quando finalmente entrou, eu estava a arranjar a mesa, para jantarmos. Ele parecia drenado de tanto pensar. Não perguntei nada, apenas esperei que falasse, enquanto eu me ocupava com os talheres, os pratos e, também, com as panelas.

- Ela ganhou uma bolsa para estudar… na América… A bolsa é patrocinada por uma grande empresa e há grandes possibilidades de que lhe deem um emprego quando os estudos acabarem.

- É uma oportunidade enorme e incomum…

- É, sim. Mas não é isso que me incomoda.

- Então?…

- Ela disse que precisava de um tempo para concentrar-se nos estudos e carreira. Eu apoio totalmente esta decisão, mas não queria que isto pusesse um fim ao que nós temos. Nenhum argumento foi forte suficiente para convencê-la a mantermos o relacionamento, apesar da distância, entretanto. Isso não é certo, pai.

- Ela tem o direito de optar. É a vida e a carreira dela. Mas hoje em dia, com a tecnologia que temos à mão, é tão mais fácil conversarem e manterem os contactos, mesmo à longa distância…

- Eu sei, pai. E as passagens não são tão inacessíveis assim…

- Pois não. Sempre arranja-se uma promoção ou outra… Vocês brigaram?

- Discutimos por divergir as opiniões em relação a ficarmos em contacto ou não. Ela disse que íamos manter contacto, sempre que lhe fosse possível, mas pediu tempo e espaço e que eu respeitasse a decisão dela…

- É justo.

- Não é. Não é nada justo.

- Dê tempo ao tempo… e à ela… ou nunca terás perdão… As mulheres não gostam que as decisões delas sejam questionadas…

- E se levar tempo demais?

- Vais ter que aceitar e aprender a viver com isso…

Ele soltou um suspiro de impotência… ou desespero. No fundo, sabia o fim que aquela história ia ter, mas negava-se a aceitar o óbvio.

***

Eu fiquei apreensivo com a decisão que ele tomara. Eu jamais faria o mesmo, mesmo porque eu sou teimoso demais para ir contra um “dá-me espaço” daqueles, como ela pediu…

Como os contactos entre eles haviam ficado cada vez mais espaçados, ele resolveu que deveria ir vê-la, na América e fazer-lhe uma surpresa. Achava que quando se vissem, tudo voltaria ao normal.

A falta de notícias desde que viajara, deixava-me com um mau pressentimento…

***

- Oh! Meu Deus!

- Eu tentei avisar-te, mas sabia que não ias ouvir-me… Nem sempre o coração ouve a voz da razão… Nós somos muito parecidos mesmo!

- Pai, eu perdi a cabeça! Isso nunca me aconteceu!

Eu olhei para a expressão de desespero, tão claramente estampada na sua face e esperei. Não havia nada que eu pudesse dizer ou fazer.

- O que faço agora?

- Não fazes nada… já fizeste…

Ele baixou a cabeça e pareceu-me que estava enterrando-se num buraco sem fundo…

Aquela angústia cortava-me a alma, mas ele tinha que bater no fundo, sozinho, para poder levantar-se. Não há nada pior que a decepção, para acabar com nossos sonhos e fazer-nos enxergar a vida com olhos menos míopes e lentes mais grotescamente verdadeiras. A crua realidade é, muitas vezes, mais dura que achamos ter forças para suportar. Viver, enfrentar e conviver com nossos erros é, também, um ato de coragem, sem precedentes. Às vezes, as forças esvaem-se, a vontade de viver vai-se junto, mas é preciso ser muito bravo, para levantar-se.

Ele estava a aprender, da pior maneira e muito cedo, para o meu gosto, a ser um adulto…

Eu não aprovei a decisão dele antes e não apoiava o que ele fez, então.

Fiquei ali, parado, a acompanhá-lo com os olhos, enquanto ele saía pela porta de trás e ia na direção da praia. Sabia que ele precisava daquele momento de solidão… ou muitos momentos daqueles… Seu caminhar parecia o de um velho, de tão pesado e arrastado…

Duas lágrimas desceram, quentes, dos meus olhos, pela face abaixo. Sentia que ele precisava de mim e queria estar lá para ele, mas não podia invadir seu martírio interior, sem que ele me desse permissão para fazê-lo. Por mais que eu quisesse protegê-lo, naquela hora, não seria capaz, sequer, de aliviar uma minúscula gota de sua angústia. Resisti e não fui atrás dele…

De longe, enquanto seguia a silhueta conhecida, a caminhar solitária, na beira do mar, imaginava o tumulto que devia ter criado, quando perdeu a cabeça e a razão e partiu para cima do rapaz que estava com Ana Maria, em atitudes muito mais íntimas que poder-se-ia esperar de um simples amigo.

Ele podia ter agido de maneira mais nobre, mas um coração partido não quer saber de nobreza ou raciocínio lógico. Se não fosse a moça a chamar-lhe à razão e expulsá-lo da esplanada onde estava com o tal “amigo”, ele teria sido preso por assédio e violência… ainda mais na América! 

Foi mesmo irresponsável! 

Mesmo para um rapaz tão centrado como ele sempre havia sido, sentir-se traído, fê-lo perder, completamente, a estribeira... não que ele não tivesse certa dose de razão...

***

- Pai?

- Ahn?

- É sempre assim?

- Assim como, meu filho?

- Dolorido. Dói sempre assim?

- Só quando a gente ama… ou amou… muito… Só quando há muito amor… ou então muita mágoa… é que dói tanto assim…

- Não é muito justo.

- Nunca é!

Ele sentou-se no degrau da varanda, cobriu o rosto com as duas mãos e chorou como uma criança.

Para mim, na verdade, ele ainda era uma criança… a minha criança, aprendendo a viver com as injustas agruras da vida. Por mais que eu tentasse consolá-lo, não iria conseguir minimizar o que ele experimentava naquele momento.

Infelizmente, quando é assim, a dor tem que ser sentida.

Ele nunca mais ia ser o mesmo. Aquela agonia ia, invariavelmente, passar, com o tempo, com outro amor, com outras visões do mundo, mas ia deixar suas cicatrizes, profunda e indelevelmente tatuadas na memória dele. Era como um batismo de fogo e aflição a marcar-lhe, para sempre, mas, também, a amadurecer-lhe os sentimentos e a ensinar-lhe a encarar a vida sob vários ângulos diferentes.

Eu daria minha alma para que ele nunca tivesse que sofrer, mas não tinha qualquer poder sobre aquilo, por isso apenas sentei-me ao seu lado, passei o braço por sobre seu ombro e puxei-o para perto de mim.

Ele não ofereceu resistência, nem mostrou-se envergonhado ao abrir sua fragilidade diante do pai, chorando daquele jeito.

Abraçado a ele, não me contive e chorei também…


***

sábado, 18 de junho de 2016

Acerca de Ana Maria (Parte 1 de 2)


- Ana Maria?

- É.

- É um bonito nome. Como ela é?

- Tem olhos esverdeados e cabelos castanho-claros, que lhe caem como uma cascata pelas costas. É tão cheia de vida, que me faz sentir que eu posso tudo, quando estou com ela.

- E podes… se quiseres…

- Só de pensar nela, eu me sinto tão bem… Ela é música e dança ao mesmo tempo.

- Estás mesmo apaixonado!

- Acho que sim. Eu penso nela o dia inteiro… o tempo todo…

- Estás irremediavelmente infectado. Não há vacina contra isso e a cura é difícil…

Ele riu. Eu também.

Era bom ver que havia crescido, tornando-se um homem responsável e bom e, agora, apaixonado pela menina Ana Maria. Só agora dei-me conta que o tempo passou tão rápido, que eu mal percebi. Há tão pouco tempo era apenas um menino a brincar com blocos de legos e bonecos de super-heróis com poderes sobre-humanos e a fazer-me perguntas sobre tudo. Agora, devo admitir, já é um ‘homem feito’, como dizia meu pai.

A imagem que me vinha à cabeça, quando o ouvia falar daquela forma, sobre o objeto de sua afeição, era de um passarinho que aprendera a voar e agora já podia abandonar o ninho e fazer seus voos solo.

Era engraçado, mas assustador, ao mesmo tempo.

Quando nasceu, confesso que senti uma emoção que não conseguia descrever. Parecia tão frágil e tão desprotegido, que comoveu-me completamente. Eu só queria ser o melhor provedor e o melhor exemplo para ele. Queria que ele sentisse orgulho de mim, num futuro, para o qual eu nem sabia como prepará-lo para enfrentar. Ao mesmo tempo, senti um amor tão grande, que minha vida deixou de ter importância, a não ser por ele. Quanta coisa eu poderia ensiná-lo e quanta coisa eu iria aprender com ele, no decorrer da sua história… da nossa história.

Tive um lampejo e uma dúvida que nunca ia conseguir responder: será que eu estava preparado?

Não estava. Sabia que não estava. O simples facto de olhar para ele, enquanto brincava, dormia, sorria ou chorava, já me enchia de emoções, que eu nunca iria saber como explicar. Com o tempo, deixei de tentar entender aquelas emoções… contentei-me com senti-las e deixá-las encher meu coração até transbordar…

Eu sabia que a vida não ia ser justa, às vezes, nem as pessoas, mas eu queria que ele tivesse, sempre, a oportunidade e o discernimento para tomar suas próprias decisões e que ele nunca tivesse motivos para arrependimento.

É claro que, por mais que desejasse, jamais iria conseguir protegê-lo de tudo. Ele ia ter que enfrentar muita coisa sozinho e eu devia prepará-lo, da melhor forma possível, mas não era um super-herói, nem um deus todo-poderoso... Era somente seu pai. Quando pensava naquilo, sentia-me tão pequeno e impotente, que doía-me a alma e meus olhos enchiam-se de lágrimas.

Ele cresceu saudável e deu-me muito poucos motivos para preocupações. Não foi o tipo de filho que eu fui. Não era rebelde, nem revoltado. Era uma criança tranquila e centrada, um menino sempre curioso e estudioso, perguntador e interessado em quase tudo que lhe passava à frente de seus olhos. Era, ao mesmo tempo, tímido e aventureiro, mas nunca demonstrava medos.  Assim como eu, ele adorava os animais e respeitava-os, como parte de nossas vidas. Passava tempos a observar o comportamento dos nossos gatos, de modo a compreender suas formas de comunicar suas necessidades e suas demonstrações de afeto. Era um rapaz muito perspicaz e atencioso e tinha um coração enorme, compassivo e muito generoso.

A tal menina Ana Maria tinha muita sorte e, se soubesse estimulá-lo a mostrar, sempre, o melhor lado dele, tinha tudo para ser muito feliz.

***
- Pai, essa é a Ana Maria.

Eu olhei para aquela criaturinha de pé, à minha frente, ao lado do meu filho tão cheio de si e visivelmente apaixonado e apreensivo. Via-se ambas as emoções contraditórias estampadas em sua face e olhos. Ele era tão transparente quanto eu.

A menina tinha olhos grandes, de uma tonalidade interessante de verde e longos cabelos a cair-lhe em cachos pelas costas. Bem como ele havia descrito e, talvez, muito mais agradável aos olhos que eu houvera imaginado, não sei por que motivo. Talvez por puro instinto de proteção à minha cria, havia avaliado mal a descrição que ele fizera da moça.

Era fácil ver a razão pela qual ele estava apaixonado. Além da beleza natural, ela emanava uma tranquilidade enorme. Senti uma ponta de ciúmes, mas também um alívio, ao perceber que os dois davam-se bem e, pelo jeito, estavam felizes.

Ao olhar para eles, assim, tão jovens e tão bem, eu não pude impedir de pensar em mim também e no meu futuro. Ainda tinha muita vida pela frente e tinha muitos planos e projetos, mas não contava com sua partida, ainda. Embora não fosse o que eles tivessem sequer mencionado, meu instinto de pai já fazia os filmes todos na minha cabeça. Já via-me a viver sozinho, com dois gatos a correr de um lado para o outro e um estúdio cheio de pinturas espalhadas por todo canto.

Será que me dariam netos, logo? Será que eu seria um bom avô? Eu tinha tanto receio de não corresponder às suas expectativas…

Alguns anos depois, eu, provavelmente, lembraria sorrindo dos dias em que temia o futuro deles e avaliaria que havia sido tão tolo quanto ingénuo. Assim como nós sobrevivemos, nossos filhos e netos também sobreviverão aos reveses que colocam-se em nossos caminhos. A vida é uma grande e eficiente mestra. Só nos dá aquilo que sabe que teremos força para suportar. Apesar de todos os receios, também não podia negar que as alegrias que eu recebera compensaram todas as noites em claro e os dias de vigília. Eu podia considerar-me um verdadeiro afortunado.

***

Respirar o ar da noite e o cheiro do mar era uma coisa que fazia-me bem, desde que eu era uma criança. Ficar um tempo sozinho a olhar o mar, mesmo sem ver direito o que se passava na escuridão à minha frente, ajudava-me a pensar e manter a sanidade. Era minha rotina, pouco antes de deitar... um tempo todo meu, para recarregar as baterias e centrar meus pensamentos e rever os acontecimentos do dia.

- Eu amo o mar. Dá-me uma tranquilidade tão grande!

- Eu também…

Eu virei-me e observei a moça que estava de pé na areia, com o olhar perdido em algum ponto muito longe, naquela imensidão escura e não tão silenciosa à nossa frente. A monotonia das ondas a baterem na praia era como um mantra hipnotizante e tranquilizador. Ela tinha razão e eu tinha que reconhecer. Aquela vasta massa de água a mover-se no seu incessante vai-e-vem, realmente, dava uma serenidade muito grande na gente…

Ao olhá-la, não sei por qual razão, imaginei-a como o próprio mar… mas desconfiava que havia mais mistério nela que podia-se ver a olho nu. O reflexo na superfície nunca mostra a profundidade do oceano, nem o que se esconde por baixo daquele manto de água em perpétuo movimento… 

- O que vocês estão fazendo aí, parados? Não me diga que tu também tens a mania de ficar na praia a olhar o mar, antes de ir deitar. Essa eu não sabia…

Ela riu. Eu também. Meu filho passou o braço pela cintura da moça e beijou-lhe a face. Ela recostou a cabeça no ombro dele e eu vi que era hora de deixar os dois a sós. Pedi licença, usando a desculpa de ser bastante tarde e estar cansado e deixei-os ali fora.

A casa ficava muito próxima à uma área da praia limitada por um agrupamento de rochas de cada lado e um pequeno caminho abria-se dos fundos do quintal até a areia fofa e branca, dando uma sensação de que aquele pedaço da praia era todo nosso.

Não demorou muito para os dois entrarem também, mas eu já havia-me retirado para o quarto e deitado, embora não tivesse conseguido adormecer imediatamente. Fiquei a olhar o teto, por uns tempos, ainda, com uma sensação estranha a inquietar-me a mente. Por alguma razão que eu não conseguia explicar, ficara com a impressão que havia alguma coisa nela que eu deveria conhecer melhor, mas não conseguia descobrir o que poderia ser…

O cansaço venceu-me, finalmente, depois de muito tempo, sem consolar-me o espírito…

***

- Tu estás vestido como ele, mas não és ele…

O grande animal não retrucou, mas tentou sorrir. Apesar de perceber que eu não era enganado facilmente, virou-se e continuou a caminhar nas duas pernas traseiras, como um humano, sem dar importância ao que eu havia falado. Era mais ou menos da minha altura e bem mais gordo que eu. Segui-o de perto, da praia até a porta da casa, observando como teve cuidado em parecer-se com Ginger, o gato, incluindo a cauda, que arrastava pelo chão coberto de velhos tijolos, dispostos em um mosaico simples, mas harmonioso. O pelo parecia haver sido costurado, muito justo, à volta do corpo, de modo a não parecer falso, mas eu sabia que não era natural, porque não havia brilho, nem vida, como numa cobertura original.

Quando chegou ao topo do lance de três estreitos degraus, ele virou-se, olhou-me e sorriu. Era um sorriso estranho, meio malicioso, que me intrigou, por parecer esconder uma má intenção ou algo que eu não sabia o que era, mas que não me deixava confortável.

Ele empurrou a porta e entrou.

Eu arregalei os olhos… e acordei…


- Sabia que havia alguma coisa errada!

***

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Dragões


"O dragão vermelho veio do sul, onde o sol amorna as tardes e as folhas todas, ainda tão rubras e escarlates, lutam por manter-se presas aos ramos das árvores; onde a natureza ainda acorrenta o Outono, como se tentasse manter o cinzento Inverno à distância, como se fosse, de alguma forma, possível. "*

"O dragão castanho veio do oeste, onde o mar apaga os rastos dos homens serenos e das ruidosas gaivotas e carrega mensagens quase anônimas em garrafas de vidro, para quebrá-las, sem atingir seus destinos, contra as rochas e os recifes, como se quisesse manter os náufragos da vida, amigos e amantes, separados para sempre ". *

O saguão do aeroporto estava cheio de transeuntes, empurrando os mais diferentes tipos de malas rodadas e carrinhos de bagagens. Eu cruzei, lentamente, a grande porta de correr, mas com os meus olhos procurando cuidadosamente por um rosto conhecido. Ele estava de pé, ereto e elegante, mais alto que maioria das pessoas que ali se enfileiravam, a esperar por seus amigos, clientes, parentes ou colegas... Eu sorri e caminhei a passos firmes, em sua direção. Ele devolveu-me um sorriso cortês e espontâneo.

Eu pensei, cá, com meus botões: 'que homem bonito'...

Quando me aproximei, ele simplesmente apertou minha mão, olhando seriamente para o meu rosto e corando ligeiramente. Dei um passo adiante e abracei-o, como fazem os amigos que não se vêem há muito e sussurrei-lhe ao seu ouvido.

- ‘Have I told you lately that I love you?' **

- Não, não disse... não que eu lembre...
- Acabei de dizer.

Ele sorriu timidamente. Naquele momento, todos os meus problemas, as inseguranças e todos aqueles medos que eu vinha sentindo em minha cabeça, durante a viagem para encontrar-me com um homem praticamente desconhecido, desapareceram completamente. Eles simplesmente esvaneceram no ar, com a doçura espontânea daquele primeiro contato.

- Vamos sair daqui... rápido!

***
- Tu sabes que eu nunca...

- Shhh... Não digas nada. Basta fechar os olhos, por agora.

Ele obedeceu. Seus músculos estavam tensos sob sua pálida pele. Eu sabia que ele estava pronto, mas não muito confortável, então eu beijei, muito levemente, sua cabeça, sua testa e suas pálpebras.

Ele simulou um sorriso, ainda meio sem graça, mas não refutou, não lutou contra e nem disse nada, que pudesse comprometer a magia estranha daquele momento especial.

Eu, então, beijei seu rosto e rocei, muito suavemente, meus lábios nos dele. Ele esperou. Olhei para suas belas feições e beijei-lhe novamente os lábios, muito de leve, quase sem tocar, mas deixando-o sentir que eu estava lá, muito mais presente que jamais estivera. Ele respirou fundo e fingiu beijar-me de volta. Tomei a dianteira e avancei, desta vez com mais entusiasmo e senti que ele abriu a boca um pouco, para que eu pudesse sentir seu sabor. Seu beijo, um tanto inseguro no começo, logo encheu-se de desejo e luxúria. Seus braços envolviam-me com firmeza, mas também com doce e afetuosa paixão.

Ele olhou-me nos olhos, como se estivesse-me vendo pela primeira vez. Talvez tenha sido, mesmo, a primeira vez que ele me via assim, tão perto de si e com tamanha abertura.

Estávamos em pé, no centro da sala. Nossos braços entrelaçavam-se à volta de nossos corpos inquietos, em exploração mútua. Ele tocou meu rosto e eu movi minha cabeça para o lado e beijei seus longos e pálidos dedos. Ele segurou minha mão nas suas e fez o mesmo. Aquele gesto despretensioso e tão simples era, ao mesmo tempo, tão íntimo e tão intenso, que acabou acendendo um súbito fogo dentro de nós. Ele resmungou o que pareceu-me algo como 'eu te amo', segurando-me em seus braços, firmemente. Então, beijou-me com tal impetuosidade, que eu senti todo o seu corpo estremecer. Ele estava ávido e eu também. Nossas bocas colaram-se. Eu simplesmente segurei seu corpo contra o meu, sentindo-o reagir de uma maneira que eu já não podia controlar... não que eu quisesse ou fosse tentar...

- Deixa-me olhar para ti.

Sua face estava corada. Seus olhos mais azuis. Eu desabotoei-lhe o colarinho da camisa, com dedos inquietos e nervosos e segui fazendo o mesmo com os outros botões, um após o outro, parando, cada vez que abria o próximo. Tentava, mas era quase impossível desviar meus olhos da densa camada de pelos ruivos, harmoniosamente distribuída em seu largo peito, sobre a pele sardenta e quase pálida demais.

Incrível como a primeira vez que se está com uma pessoa pode ser uma maravilhosa viagem de exploração e descoberta, mesmo para alguém que já tenha experimentado aquilo antes. Aquele homem tinha o corpo forte e incrivelmente atraente.

Comecei a abrir meus próprios botões, mas ele segurou minhas mãos e pôs-se a fazer o mesmo que eu havia acabado de fazer com ele, roçando os lábios em meu pescoço, muito levemente. Com os dedos tépidos, empurrou o tecido que ainda me cobria os ombros, fazendo-o deslizar e cair no chão. Senti calafrios pelo corpo todo e ele, aproveitando-se da situação, roçou a barba já um tanto crescida, por cada centímetro da minha pele arrepiada, numa carícia estranha e, ao mesmo tempo, bem-vinda. Segurei-lhe a cabeça entre as minhas mãos e beijei-lhe, mais uma vez, mas ele desvencilhou-se, com delicada firmeza e seguiu, a descer pelo meu peito e mamilos, barriga e umbigo, com seus lábios mornos e atrevidos, abrindo caminho pelo meu corpo, já totalmente desejoso dele. Ele parou ali mesmo abaixo do meu umbigo e beijou levemente o trilho de finos pelos que crescia para baixo e escondia-se, discretamente, para dentro do cós dos meus melhores ‘blue jeans’. Suas mãos quentes abriram caminho entre minhas roupas e minha pele, já totalmente incendiada pelas chamas daquela paixão.

Ele parava vez ou outra para beijar minha boca, enquanto cingia-me num abraço apertado. Depois, correu as pontas dos dedos pelas minhas costas e puxou-me para mais perto dele ainda.

Eu senti o fogo do dragão a queimar-me, com desejo docemente sensual e, em seguida, ouvi-o sussurrar.

- Eu sei que tu és a única pessoa que pode desvendar o segredo. Tua experiência, teu cuidado e teu amor são as coisas que eu sempre procurei e o fato de virem em forma do pacote mais sexy que eu poderia desejar, torna tudo ainda mais emocionante e gratificante.

- Teus olhos são muito gentis e vêem-me melhor do que eu realmente sou. Tu és tão especial, que eu sinto que eu sou um pouco especial também.

- E tu és. Agora, guia-me nesta doce aventura...


- Com certeza. Apenas deixa-te ser amado...

Minhas mãos mornas acariciaram seu belo e robusto corpo. Eu não cansava de beijar o pescoço, ombros e costas e todo o resto daquele homem, com total atenção e luxúria.

Ele fechou os olhos, saboreando o momento e as carícias, cheio de genuíno deleite. Eu só queria estar com ele, para satisfazer seus anseios mais profundos e para agradá-lo o melhor que pudesse. Eu sabia que aquele momento já estava sendo muito bom para nós dois, mas eu queria que ele se sentisse contente e satisfeito e só desejava que fosse, de alguma forma, memorável...
***

- Fazer amor contigo foi a experiência mais incrível que eu poderia sonhar, mas sabes o que eu acho que fantasiava mais, antes deste encontro?


- Diga…

- Eu acho que ansiava por este momento especial, depois que tudo está terminado, quando nossos corpos estão cansados e consumidos, quando podemos simplesmente deitar nus e abraçados, não precisando falar, mas sabendo que estamos juntos como amantes... Ser capaz de dormir contigo, poder olhar-te, abraçar-te e proteger-te. Ter meus braços em torno de ti, sentir o perfume suave do teu pescoço e cabelos e acariciar a tua pele nua...Desejar fazer mais amor, mas apenas, por agora, desfrutar da paz e tranquilidade de ter-te no meu abraço protetor...

Estávamos nos olhando e ele abriu o sorriso mais encantador que conseguiu e puxou-me para junto dele, aninhando o meu corpo entre seus braços e peito, beijando minha testa, meu rosto e meus lábios. Eu deitei nele minha cabeça e, então, fechei os olhos, sentindo as asas do meu dragão escarlate a envolver-me completamente.

Aquele era o lugar onde eu sentia-me mais confortavelmente em casa...


***


- Como assim?

- NYC, meu amor. Vens comigo?

- Eu não sei o que dizer…

- Diga que sim, então...

Seus profundos olhos azuis encontraram os meus, pela milionésima vez. Seu rosto estava um pouco pálido e bastante sério, provavelmente de expectativa. Minha mente trabalhava em alta velocidade, tentando encontrar as palavras certas para lhe responder. Em vez disso, eu simplesmente perguntei-lhe.

- Isso é uma proposta?

- Não é de casamento, mas é, ainda, uma proposta...

Ele riu de mim, quando eu corei inesperadamente.

- Bem, pelo menos não estás de joelhos.

- Não por esse motivo, não...

- Não te atrevas! Acho que é melhor verificar melhor o meu passaporte, então...


***

- Isso é loucura, não é?


- Se for, então não há nenhuma cura ou saída, criatura que eu amo tanto... Mas esta loucura só é boa porque eu estou contigo...

Estávamos caminhando de mãos dadas à beira-mar, desfrutando a brisa amena do fim de tarde de verão. Eu sentia meu corpo tão cheio de vida e aquilo era, ao mesmo tempo, tão bom e tão libertador, que eu poderia levantar os pés do chão e voar. O simples toque das peles de nossas mãos já era suficiente para inflamar uma série de sensações incontroladas, algumas delas muito perceptíveis.

Ele olhou-me e disse, em voz baixa, enquanto segurava-me em um de seus mais ternos abraços, daqueles que eu tanto amava:

- Tu nunca terás de sentir solidão ou tristeza, enquanto eu estiver vivo e por perto...

O dragão vermelho abriu suas largas asas, mergulhou no ar e voou para o céu.

O dragão castanho, ligeiramente menor que o outro, bateu suas asas quase douradas e seguiu o ruivo amante, de muito perto. Seus olhos estavam húmidos, com lágrimas de puro contentamento e admiração.

Embora pudesse tentar, não conseguiria, jamais, nem realmente, esconder o carinho que sentia pelo seu rubro companheiro, que voava tão livre e tão feliz, a apontar o caminho à sua frente…
***

* (Originalmente de "A Efigie do Dragão", ligeiramente modificado para esta história)

** (Originalmente de Van Morrison "Have I told you lately that I love you?"

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Dragons



“The red dragon came from the south, where the sun warms up the afternoons and the still crimson and scarlet leaves struggle to remain attached to the trees branches; where nature still shackles autumn, as if trying to keep the grey winter away, as if it could ever be possible.” *

“The brown dragon came from the west, where the sea wipes out the traces of quiet men and noise seagulls and conveys anonymous messages in glass bottles to shatter them, without reaching their destinations, against the rocks and the reefs, as if to keep the castaways of life, friends and lovers, forever apart.” *


The airport hall was filled with passers-by, pushing the most different wheeled luggage and carts. I crossed the sliding door slowly, but with my eyes searching carefully for a known face. He was standing tall right behind the line of people waiting for their friends, clients, relatives or colleagues… I smiled and walked firmly to his direction. He smiled back.

I thought to myself: ‘how handsome’

When I reached him, he simply shook my hand, looking at my face and blushing slightly. I moved forward and hugged him like long-time-no-see friends do and whispered in his ear.

- ‘Have I told you lately that I love you?’ **

- No, you haven’t… not that I can remember now…

At that moment, all my troubles, the insecurities and all the fears I had in my head, during the trip to meet that man disappeared completely. They simply vanished in the air with the sweetness of the first contact.

-  Let’s leave… quick!

***

- You know I have never…

- Shhh… Don’t say anything. Just close your eyes for now.

He obeyed. His muscles were tense under his pale skin. I knew he was ready, but not really comfortable, so I kissed, very lightly, his head, his front and his eyes. 

He smiled. 

I kissed his face and rubbed my lips on his. He waited. I looked at his handsome features and kissed his lips with tender and soft care, almost not touching them, but letting him feel I was there. He took a deep breath and pretended to kiss me back. I took the lead and kissed him again, this time with more passion and I felt he opened his mouth a bit, so I could taste him. His kiss was soft and insecure in the beginning, but he soon gave in to desire and lust, holding me in his embrace and sweet loving passion. 

He opened his eyes and looked into mine, as if seeing me for the first time. Maybe it was the first time he saw me like that. 

We were standing in the centre of the room. Our bodies were touching, our arms around each other. He touched my face and I moved my head and kissed his long-fingered and pale hand. He held my hand in his and kissed it back. That unpretentious gesture was so simple and at the same time so intimate, it kind of ignite the fire inside us. He held me back in his arms, firmly and strongly. Then he kissed me with such a passion, I felt his whole body shake. He was hungry. So was I. Our mouths locked, our tongues interlocked. He mumbled what I though was something like ‘I love you’. I moaned and held his body against mine, feeling it react in a way I could not control… not that I would ever try to…

- Let me look at you.

His face was flushed. His eyes bluer. I unbuttoned his shirt collar, his other buttons one after the other, stopping once each one was released and looking at his amazing ginger furred chest, his lovely pink nipples and his pale skin. I caressed his torso with uneasy fingers. 

Amazing how the first time one is with another can be so enticing and such a marvellous journey of exploration and discovery, even for someone who had experienced that before. I took his shirt off and enjoyed the view of his bare torso. That big boy was incredibly handsome and strong. His body was a dream.

I started unbuttoning my shirt, but he held my hands and moved forward doing the same I’d just done with him, kissing my neck as soon as he pushed the fabric off over my shoulders and let the garment fall to the floor. I got goose bumps and quivered slightly. He kissed every inch of my skin, tasted and smelled the scent of my trembling body. I held his head in my two hands and kissed his scalp, while he went down my chest and nipples, stomach and navel, with his lips and tongue, opening his way onto my eager self. He stopped right there below my navel and lightly licked the path of fine hair growing downwards and hiding through the blue jeans around my waist. His warm hands reached down, unbuckling the belt and undoing my trousers. My skin was on fire. He caressed me and then kissed my mouth over and over again, holding me in his tight embrace. Our bodies were touching, our hands uneasy around each other. He moved his fingertips down my back and held me closer to him. 

I felt the dragon’s fire burning me with sweet lustful yearning and then I heard him whisper.

- I know you are the one who will unlock the secret. Your experience, your care, your love are all the things I've been seeking and the fact they all come in the form of the sexiest package I could wish for make it even more exciting and fulfilling.

- Your eyes are too kind. They see me better than I really am. You’re so special I feel I am somewhat special too.

- You are. Love me now, my sweet guide…


- Yes, my ginger furred lover. Just let yourself be loved…

My warm hands caressed his sturdy and beautiful body. I kissed his neck, shoulder and back and pushing him over to the large bed, kissed the rest of that man with utter attention and lust.

He closed his eyes, savouring the moment, while giving himself in to my touch and caresses, full of genuine desire. I just wanted to be with him, to fulfil his deeper desires and to please him the best I could. I knew it would be great for both of us, because we loved and respected one another very much, but I wanted him to be content and satisfied. I wanted it to be memorable…

***

- You know, making love with you was the most amazing experience I could ever dream of, but do you know what I think I fantasised most?

- Tell me…

- I think I longed for this special moment after we are finished, when both our bodies are spent, when we can just lie together naked and holding each other, not needing to speak, but just knowing we are together and we have our lover next to us, with us… to be able to have you sleep with me, to have you in front of me, so I can spoon you and protect you, my arms around you, to smell your neck and hair and to caress your naked skin… to look forward to more lovemaking but just, for now, to enjoy the peace and tranquillity of having you in my embrace…

We were looking at each other. He opened the most wonderful grin and pulled me towards him, nesting my body into his arms and kissing my front, then my face and my lips. I rested my arms around his body, my head on his ginger chest and then I closed my eyes, feeling I was surrounded by that red dragon’s sheltering wings. 

That was the place I felt I really belonged…

***

- What do you mean?

- NYC, my love. Will you come with me?

- I don’t know what to say…

- Say yes, then…

His deep blue eyes met mine. His face was paler and quite serious with expectation. I was appalled but my mind was working in high speed, trying to find the words to answer him. Instead, I asked.

- Is that a proposal?

- Not for marriage, sweetheart, but still a proposal…

He laughed at me, when I blushed unexpectedly.

- Well, at least you’re not kneeling.

- Not for that reason, no…

- Don’t you ever! I think I’d better check my passport then…


***

- Is this any kind of madness?

- If it is, then there is no cure or way out, my lover... But it is good being this mad as long as I am with you…

We were walking hand in hand along the seashore. I haven’t had felt so alive in quite a long time and that was so good and so liberating at the same time. The simple rubbing on the skins of our hands was enough to ignite a series of uncontrolled sensations, some of them very noticeable. 

He held me in his arms and said, softly, while holding me in an embrace:

- You will never have to be alone again, my dear lover, while I am alive and around...


The red dragon unfolded his broad wings, dove into the air and reached up the sky. 

The slightly smaller brown dragon flapped his almost golden wings and followed close. His eyes were moist. He tried but could not really hide the affection he had towards his ginger lover flying so free and so happy and leading the way. 

His tears, he knew, however, were of pure enjoyment…

***

* (Originally from "A Efígie do Dragão")
** (Originally from Van Morrison's "Have I told you lately that I love you?"

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Cantigas de Roda (Parte 3 - Epílogo)


Ai, bota aqui
Ai, bota ali o seu pezinho
O seu pezinho bem juntinho com o meu
E depois não vá dizer
Que você já me esqueceu…

- Dança comigo. São dois pra lá e dois pra cá…

- Eu ainda sei dançar bolero!

Não disse aquilo com irritação, nem impaciência, mas com convicção. Eu sabia os passos de poucas danças de salão, mas bolero era fácil demais… e eu lembrava…

Estávamos casados há quase oito anos e os últimos dois haviam sido, mesmo, uma derrocada completa. Os poucos momentos que ainda partilhávamos, tanto por estarmos muito envolvidos nos nossos projetos profissionais, quanto por arranjarmos desculpas para não estarmos mais juntos que o necessário, eram, quase sempre, um grande exercício de tolerância e paciência.

Era assim que sentia naquela ocasião…

Sabíamos que não havia futuro no nosso relacionamento, o que era, por um lado, bastante triste, mas também libertador, ao mesmo tempo.

Ela, uma educadora promissora e extremamente ambiciosa, com ideias avançadas, estava mais ligada às decisões profissionais dos adolescentes, com programas que mais enquadravam-se ao estilo militar, enquanto eu desenvolvia um programa experimental para crianças, num estilo mais natural e quase ingénuo.

Eu não gostava das ideias, nem da quase insaciável sede de status e posses que ela tinha, mas nossos projetos eram independentes e iam em direções muito diferentes, praticamente opostas, por isso um não interferia nos projetos do outro, mesmo que discordássemos dos métodos que um e outro utilizávamos. Com o tempo, aquilo que fez crescer a atração entre nós - nossas tão evidentes diferenças - também nos afastou, tornando a convivência praticamente insuportável.

Aquele foi nosso último bolero.

***

Marcha soldado, cabeça de papel
Se não marchar direito, vai preso
No quartel…

As crianças falaram, por dias, a respeito do acampamento e do que viram por lá. Imaginei que, em suas casas, as famílias tiveram, também, que partilhar a excitação dos alunos e ouvir as histórias com atenção. Alguns pais comentaram que foi difícil aquietarem os filhos, mas estavam bastante satisfeitos com o sucesso do empreendimento. As crianças passaram a semana a desenhar o que viram durante a experiência. O riacho, a montanha, os animaizinhos, as tendas, os coleguinhas, a fogueira… muitos detalhes do que eles experimentaram viraram um grande painel artístico, exposto nas paredes das salas de aula. 

Os dois rapazes, entretanto, desenharam soldados e jipes do exército, o que me preocupou um pouco, pois foi o que pareceu havê-los marcado bastante. Os dois vieram conversar comigo, no intervalo do almoço. Foi justamente o tema da conversa que me causou uma inquietação maior que os desenhos dos mesmos.

***

O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou…

- O que aconteceu com o que sentíamos um pelo outro? Por que nos afastamos tanto?

- Não foi de uma hora para a outra. Foi um longo e doloroso processo, apesar das tentativas para que desse certo.

- O que houve com o que havia de bom entre nós? Aquela nossa amizade… o amor…

- Que amor? Nunca houve amor entre nós. Não se ama quem se é forçado a aceitar na casa ou na vida, por circunstâncias que não por opção espontânea. Sabes por que eu nunca te disse: eu te amo? Porque nunca senti que te amasse. Mesmo assim eu lutei pelo nosso relacionamento. Até tentei amar-te, mas tu derrubaste tudo, quando eu menos esperava e tão mais cedo que eu poderia aceitar. Aquela linha muito ténue que havia entre o amor e o ódio partiu-se, agora, de vez. Eu já não me importo contigo ou com tuas coisas, tua vida ou teus problemas. Na verdade, o que sinto por ti é mais um misto de desprezo e ojeriza, como nunca senti por ninguém…

Ela estava sentada na cama, com o computador aberto no colo e eu de pé, encostado à soleira da porta do quarto. Ao ouvir aquelas palavras, que estiveram presas na minha garganta por tanto tempo, ficou vermelha de raiva e chamou-me de covarde, por não haver levantado a discussão antes. Eu, como de tantas outras vezes antes, desliguei a parte do cérebro que se importava com a irritação… ou qualquer coisa que viesse dela… e não disse mais nada. Não valia a pena discutir, nem mesmo gastar meu tempo com qualquer tipo de preocupação ou empatia. Estava tudo acabado, mesmo, entre nós.

Virei as costas e saí, apesar de ouvir seus protestos, mas já não ia fazer diferença nenhuma. Abri a porta, entrei no carro e saí. Não voltei nunca mais…

***

- Como assim, soldados? Nosso projeto não passa por isso e seria um desperdício enorme do investimento que fizemos até agora. Mas como vocês estão quase em idade de mudar de escola, talvez seja interessante conversar com a orientadora pedagógica e avaliar as afinidades de vocês. Pode ser somente um interesse momentâneo…

- Não é só momentâneo. Nós queremos, mesmo, ser soldados…

- Vou encaminhar os dois, em separado, para a orientadora pedagógica, que é psicóloga, então… Ela saberá como avaliar as vocações e os interesses de vocês… e bem melhor que eu…

Os dois meninos sorriram. Mostravam-se satisfeitos com aquela decisão. Pareciam mesmo decididos a ir adiante com aquela ideia. Eu só rezava para que a minha ex-mulher não aparecesse por lá tão cedo, nem soubesse do tipo de interesses que começava a nascer nas cabeças de nossos alunos, devido a um incidente gerado durante uma inocente viagem de lazer.

A assustadora ideia de deixá-la aplicar seus loucos métodos de treinamento militar, em crianças tão jovens, não era pior que tê-la a vangloriar-se de que estava certa e que ela sabia o tempo todo que eu era apenas um ingénuo pedagogo, completamente fora do meu tempo… e dos processos que envolviam a educação moderna…

Será que eu havia sido tão ingénuo e estivera, mesmo, errado, o tempo todo?

***

Se eu tirasse uma pedra olê, olê, olá
Se eu tirasse uma pedra, olê, seus cavaleiros…
Uma pedra não faz mal, olê, olê, olá
Uma pedra não faz mal, olê seus cavaleiros…
Se eu tirasse duas pedras, olê, olê, olá…

- Acho que precisamos conversar. É bastante urgente!

- É sobre os meninos?

- Sim. Melhor vires à minha sala.

A orientadora pedagógica confirmou, em pouco tempo de conversa, minhas suspeitas e meus receios. Por mais que eu quisesse negar, apesar de haver dado o melhor de mim no projeto, sentia como se estivesse a perder uma batalha. Pelo menos eu deveria ficar feliz por saber que aqueles dois rapazes tinham as mentes livres de medos… o que poderia ser um grande benefício para o treinamento no exército, por torna-los destemidos e curiosos, mas não achava que era justo, depois de todo o investimento na educação deles, que o potencial criativo dos mesmos fosse usado para fins diferentes da intenção inicial.

Eu tinha que deixá-los ir adiante em suas vidas, de todo jeito, após o período em nossa escola. O que acontecesse com eles, depois que estivessem em outro estabelecimento de ensino, não era nem minha responsabilidade, nem tampouco tinha autoridade para influenciar ou mudar qualquer coisa. Sabia que quando tivessem que fazer suas decisões, em termos de carreiras, os alunos iam optar por aquelas que lhes pudessem dar um futuro promissor e sustentável.

O primeiro grupo a estar pronto para sair, formava-se naquele ano, dentro de poucos meses. Será que duas das pedras, naquela muralha de educação, comprometeriam a solidez da estrutura? Estariam eles preparados para enfrentar a decisão que haviam tomado, embora ainda muito cedo, em suas vidas?

Resolvemos que faríamos uma pequena cerimónia de formatura, para celebrar o sucesso do projeto e para encaminhá-los a outros tipos de vida escolar mais padronizados com a estrutura educacional vigente no país.

No dia da formatura daquela primeira turma, haviam muitos convidados, entre pais e outros educadores de outros colégios. As crianças estavam excitadas e alvoroçadas, como um bando de pardais. O programa havia sido elogiado pela maioria e eu estava, também, ansioso e irrequieto, como se fosse um dos alunos. Tinha os músculos do pescoço bastante tensos e temia uma surpresa desagradável…

***

Sereno eu caio, eu caio
Sereno deixai cair
Sereno da madrugada não deixou meu bem dormir
Minha vida ai ai ai
É um barquinho ai ai ai
Que navega sem leme e sem luz.
Quem me dera ai ai ai
Que eu tivesse ai ai ai
O farol dos teus olhos azuis.

- Eu sabia que tu ias fazer aquilo. Minhas suspeitas estavam certas e meu instinto avisou-me, mas não tinha como impedir-te de fazer uma das tuas, tinha?

- Claro que não! Foi uma pequena intervenção, homem. O melhor para aqueles meninos é o programa que eu desenvolvi. Eles são soldados, desde o berço…

- Tu estás cada dia mais louca!

- Deixa de te melindrares tanto. Parece que ainda estamos casados... Isso não tem nada a ver contigo. Ainda tens que aprender a separar as coisas… de uma vez por todas!

- Tens razão. Eu nunca soube separar bem as coisas. Devia ter aprendido a ler mais sabiamente os sinais, desde há muito tempo atrás. Eu cheguei a ser envolvido na tua engenhosa trama, que me levou à uma série de reveses, sem dar-me conta daquilo. Mas, no fundo e no final, mesmo tendo sido lesado na minha saúde e na minha vida, eu sobrevivi, levantei-me, lutei e venci… por minha conta e custo. Se houve uma coisa que me deu forças, foi a certeza que um dia eu ia poder olhar-te de frente e saber que não sentia mais nada por ti. Nada mesmo. Nenhuma pena, carinho ou interesse em saber como estás, nem mesmo qualquer vestígio de ressentimentos. Um dia desejei que alguém te fizesse passar pelo que eu passei e sentir o que eu senti, não por vingança, mas para saberes como é doloroso… mas, hoje, isso não tem a menor importância. Na verdade, nunca precisei disso para tornar-me quem eu sou e isso dá-me uma satisfação enorme. Maior que qualquer coisa que tu possas compreender ou imaginar e nem espero que o faças…

Ela soltou um palavrão... dos feios... virou-se e saiu. Já havia feito o mal que queria e não tinha paciência para ouvir minhas verdades.

Minha vida, desde que nos separamos, havia-se tornado muito mais simples e minhas ambições mais voltadas à educação, à arte e à criatividade, por isso o sucesso do meu projeto era uma questão de extrema importância para mim. Era como um filho que eu houvesse imaginado, concebido e ao qual dera uma bela vida. Eu só queria que crescesse e fosse bem-sucedido, para o meu bem e o daquelas crianças.

Sim, eu sabia que haveriam certas perdas, durante o percurso, mas essas sempre existiriam. Tudo era parte de um processo complexo de educação e de vida.

Do ponto de vista dos relacionamentos, o que eu precisava era manter-me sozinho e em paz. Meu trabalho absorvia boa parte dos meus dias e, o restante do tempo, tinha um projeto pessoal mais ambicioso, mas sem pressa de concluir: um livro de contos, com ilustrações em aguarelas e desenhos a carvão e sépia, feitos por mim mesmo.

***

Ciranda, cirandinha,
Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta,
Volta e meia vamos dar…

Para os dois meninos, fascinados pelo exército, o projeto funcionou durante uns tempos. Os pais acabaram mudando para uma região muito próxima daquela onde acampamos uma única vez, afastando-os do treinamento para a vida militar, pelo menos até que vida os colocou, inusitadamente, frente a frente com uma situação bem mais crítica.

Embora a família tenha mudado o rumo das vidas deles, o destino tratou de alinhá-los, novamente, com perversidade de mestre, levando consigo o que lhes era mais caro e jogando-os de volta nos braços do exército… só que para o resto de suas vidas!

Uma base militar, secreta, para confirmar as suspeitas deles, havia, mesmo, sido construída no topo da montanha…

A descoberta da mesma foi-lhes tanto o azar, quanto a sorte deles…


terça-feira, 12 de abril de 2016

Cantigas de Roda (Parte 2)


A canoa virou, por deixá-la virar

Foi por causa da menina que não soube remar.

Se eu fosse peixinho e soubesse nadar,

Tirava um amiguinho do fundo do mar…


As crianças formavam dois círculos, um que corria por fora, com os alunos mais velhos e outro por dentro, com os menores e mais novos. O círculo do meio rompeu-se e eles começaram a dançar em fila, formando uma espiral que girava para dentro, enquanto o círculo de fora os protegia, girando em sentido contrário. 

- Eles não estão preparados para a vida lá fora! Não, com este programa ingénuo. Vão levar um choque quando mudarem de sistema…

- Eles estão preparados para a vida! Ponto final. São crianças especiais.

- Os pais tem que saber que não vai funcionar, sem algumas mudanças essenciais… 

- Esta insistência é por vingança? É por isso?

- Não mistura as coisas… claro que não é…

- Eu não quero estas crianças no teu programa insano! Não estão sendo talhadas para isso. Esqueça. Eu já te disse que não te quero por cá, com tuas ideias malucas! 

- Olhe para eles! Eles não temem nada. O instinto protecionista em relação aos mais novos que eles têm é natural neles! Basta um toquezinho no programa educacional e eles mostram que vale toda a pena investir neles. 

- Eles são crianças. Não são cobaias. Nós queremos o melhor para eles, em termos de criatividade, colaboração mútua e coragem, é claro… mas coragem no sentido mais lato… coragem para enfrentar a vida sem preconceitos e sem temer as dificuldades ou os perigos da vida.

- Exatamente! É mesmo deles que nós precisamos!

- Chega desta conversa. Não há mais discussões. O programa foi aprovado como está e não vai mudar. O conceito original é diferente das tuas intenções. Saia, agora, por favor. Já te havia dito que não te queria por aqui. 

- Isso vai mudar. Podes ter certeza. Esta conversa não está acabada.

- Está, sim. Agora, saia, por favor.

Ao ouvir meu tom de voz, mostrando impaciência e uma certa agressividade, Ginger levantou a cabeça e ficou a observar-nos, alerta para o que acontecia. Ela virou-se e saiu, sem dizer mais nada. Estava claro que uma mulher daquelas não se dava por vencida, com uma simples negativa. 

Eu fiquei ali, de pé e parado, a olhar a não bem-vinda silhueta desaparecer na distância, enquanto a luz do sol, batendo direta contra minha face, quase feria-me os olhos. Senti uma leve pressão contra a perna e curvei-me para acariciar a cabeça do animalzinho, que parecia dizer-me para ficar tranquilo, como se pudesse proteger-me de todos os males. Desejei que assim fosse, para o futuro da nossa escola e para o bem daquelas crianças.

***

Passarás, passarás

Algum dia ficarás

Se não for o da frente 

Há de ser o de trás...

Queres céu ou inferno?


- É tarde demais!

- Não diga isso! Nunca é tarde demais! 

- Eu não sou um otimista e desconfio daquele tipo de pessoas. Sabes bem disso.

- O programa pode estar ameaçado, mas não está perdido. Quem sabe possamos chegar a um consenso, com ambos os lados cedendo um pouco. Tudo é possível…

- Não neste caso. Achas que aquela louca vai ceder em alguma coisa? Ela nem começou ainda… e eu temo pelas nossas crianças. Olhe para elas. Não sabem o perigo que correm. Não temem nada. Não é justo estragar tudo, por causa daquela… 

Engoli em seco e calei-me antes de dizer um imprecativo. Estava dentro das instalações da escola, afinal, e tinha que manter a linha e respeitar os códigos de ética. Estava possesso pela raiva e precisava muito esforço para não perder, completamente, a calma. Mas minha vontade era de usar nomes muito feios ao referir-me àquela mulher.

A diretora quase riu, ao ver-me no limiar de saltar a tampa. Ela conhecia a minha história e não escondia sua crença em que o programa, que eu desenvolvera com tanto esforço e precisa técnica, tinha tudo para ser bem-sucedido, depois de passado por várias fases de desenvolvimento e defesa junto à Secretaria da Educação. O programa havia sido desenvolvido durante minha tese de doutorado e, incentivado pelo orientador, passado de uma simples ideia concebida academicamente, para um programa educacional experimental, que envolvia um novo conceito de ensino para crianças de tenra idade. 

Até aquele momento, pelo menos, havíamos provado que estávamos no caminho certo. Eu, todavia, precisava de mais tempo para colher os frutos do sucesso. Não era em mim que eu pensava, mas no futuro das crianças: os filhos que eu não tive, nem ia ter, mas que estudavam ali, sob a minha orientação e tutela direta. Eram crianças que haviam sido cuidadosamente selecionadas segundo um critério bastante rigoroso e perfeccionista. 

Minha interferência havia sido, desde o início do empreendimento, total e absorvedoramente dedicada. Desde a escolha do sítio onde iríamos construir, a criação das áreas internas e externas, o programa educacional em si, a proximidade com áreas de lazer praticamente particulares e quase não frequentadas, os projetos paralelos… tudo havia sido cuidadosamente acompanhado, para seguir o projeto à risca. Algumas mudanças foram introduzidas durante a construção do estabelecimento, mas foram para melhor, como as árvores à volta do pátio, onde as aulas de verão eram lecionadas.

À luz da minha teoria, crianças com tendências artísticas tendem a ser mais livres de preconceitos e apreciam a beleza, a arte e a estética per si, sem misturar crenças, raça, nem tendências aprendidas. O contacto com animais libera os medos e receios e torna-as mais arrojadas e dispostas, além de elevar o grau de protecionismo, altruísmo e confiança nelas mesmas e nas outras. A criatividade, sendo estimulada naturalmente, eleva os níveis de inteligência emocional e facilita a resolução de problemas, pois a mente não vê barreiras intransponíveis, mas apenas desafios que podem e devem ser ultrapassados. O imediatismo não é incentivado e as ciências exatas caminham junto com a liberdade de expressão, complementando e equilibrando os lados emocional e racional das crianças, de maneira espontânea. 

O programa tinha uma grande dose de ingenuidade, por isso era imprescindível que fosse implantado em crianças de muita tenra idade, quando a personalidade ainda estava em formação. As doses de realidade dura e crua era dada em suas próprias casas e famílias. Não tínhamos alunos internos, nem os afastávamos da vida normal, mas a escola era como uma bolha de proteção ao cotidiano. Gerar cientistas artistas era produzir o melhor do melhor, no melhor ambiente. 

Não era nem justo, nem certo, converter aquelas mentes privilegiadas em soldados de elite e estrategistas, movidos à coragem e ousadia, mas desprovidos da intenção original e da relação espontânea com as mais diversas formas de beleza e arte. Queriam transformar homens e mulheres de verdade em máquinas mortíferas, treinadas por mentes perversas, egoístas e voltadas à causas tão duvidosas. 

Eu jamais iria permitir que fizessem um mal tão grande às “minhas” crianças tão especiais.

***

Se essa rua, se essa rua fosse minha

Eu mandava, eu mandava ladrilhar

Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes

Para o meu, para o meu amor passar


- Vamos juntar pedrinhas do rio, para fazermos uma calçada?


Uma ocasião programamos um acampamento com as crianças, a acontecer num fim-de-semana de verão, quando era mais propício e menos sujeito às chuvas na região. Minhas preocupações desvaneceram por dias, durante a fase de planeamento, organização, contactos e autorizações dos pais e responsáveis, comunicações com o corpo de bombeiros e polícia local e tudo o que pudéssemos para garantir o sucesso do empreendimento. Para mudar de ares, viajamos até uma região na montanha, num parque florestal. O tempo esteve perfeito e as crianças, que falaram no acampamento por umas semanas, não cabiam em si de excitação. Íamos fazer pesquisa de campo, provar um pouco da vida ao ar livre, longe da escola e pernoitar em tendas, armadas perto de um pequeno riacho, estimulando o espírito de sobrevivência na mata e aventura, como fizeram nossos antepassados. Na viagem, num ônibus alugado, estavam todos muito excitados, mas ao chegarmos perto do local, notei um certo nervosismo e o barulho diminuiu. Estavam apreensivos, mas não conseguiam esconder a curiosidade e a excitação do novo.

A montagem do acampamento foi um sucesso, com todos muito empenhados em ajudar e dividir as tarefas. Logo ficamos cientes que eles esqueceram completamente dos apetrechos eletrónicos modernos e estavam mais interessados em saber como funcionava uma bússola, como orientar-se pela posição do sol e coisas similares. Acredito que, por ser uma coisa nova para eles, meninos e meninas da cidade, estavam todos com pressa de ver como funcionava a montagem das tendas, a organização do lanche e almoço, as atividades de pesca, os banhos numa área escolhida com cuidado, onde o rio formava uma piscina natural, sem corredeiras nem perigos, as excursões de observação dos pássaros e animaizinhos da região, a ‘siesta’ depois do almoço… Tudo fora muito bem recebido e com excitação crescente. Era diferente das idas à praia ou ao parque. Era mais selvagem e livre, por isso mesmo, mais estimulante. Observei como os alunos mais velhos mantinham o instinto protetor aos mais novos e aquilo deixou-me bastante satisfeito. Era natural neles. Um bom sinal.

À noite, sem micro-ondas e apenas com um fogão improvisado, fizemos a refeição à volta da fogueira, em assentos e mesas também improvisadas. Depois, ainda ali, sentados confortavelmente, contamos histórias sobre nossos antepassados e como eles viviam, naturalmente, naquela região, caçando, pescando, plantando, colhendo, construindo suas cabanas, que depois evoluíram para casas sofisticadas. Não demorou muito para os rostos fatigados, mas sorridentes, começarem a mostrar um visível cansaço físico. O toque de recolher foi quase um despertar e as tendas foram imediatamente invadidas e os sacos-camas preenchidos por corpinhos cansados e felizes. 

Quando o sol estava alto, na manhã seguinte, os professores e as auxiliares, que estavam acampados à volta das tendas dos miúdos, levantaram-se e tocaram o toque de despertar. Coisas banais como lavar-se, pentear-se, vestir-se e preparar-se para o pequeno-almoço, viraram uma verdadeira algazarra, mas sem nenhuma resistência. Quem iria pensar que despertar as crianças e preparar a refeição fosse ser tão divertido?

O programa da manhã era simples. Os mais novos iriam ficar mais próximos do acampamento, a brincar na piscina, enquanto os maiores iriam fazer excursão à mata, em grupos pequenos e separados. O objetivo era, durante o almoço, trocarem experiências e contarem o que viram. Como a turma era pequena, não foi difícil arranjar as equipas, que rumaram para cada um dos quatro pontos cardeais principais. 

Dois dos meninos, amigos inseparáveis, que foram para o norte, contaram que viram uma área, no topo da montanha, sendo preparada para virar uma base militar. A imaginação deles era fértil. Perguntados como eles chegaram à aquela conclusão, o menino de óculos disse que viu soldados armados a cuidar da área, facto que não foi confirmado pelo professor-monitor, mas que foi veementemente confirmado pelo amigo inseparável. Aquela não era uma área com interesse militar, pelo que nós soubéssemos. Não fazia sentido. Mesmo assim, a história gerou um grande rebuliço nos alunos, cujas mentes livres de amarras, viajavam em tempo e espaço, construindo teorias e possibilidades. 

Partimos de volta, depois do almoço, no pequeno autocarro alugado. A maioria dormiu a ‘siesta’ durante a viagem. Somente os dois amigos, ainda excitados pelo que disseram haver testemunhado, viram um jipe do exército passar na direção oposta à que íamos. O menino de óculos puxou-me o braço e disse:

- Viu como nós estávamos certos? Aquele é um jipe do exército!

Eu fiquei a olhar o carro desaparecer na distância, um pouco intrigado pelo que acabara de ver e, não só por dar asas à teoria dos dois pequenos amigos, mas por ser obrigado a concordar que algo sério podia estar a passar naquela região…