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terça-feira, 12 de abril de 2016

Cantigas de Roda (Parte 2)


A canoa virou, por deixá-la virar

Foi por causa da menina que não soube remar.

Se eu fosse peixinho e soubesse nadar,

Tirava um amiguinho do fundo do mar…


As crianças formavam dois círculos, um que corria por fora, com os alunos mais velhos e outro por dentro, com os menores e mais novos. O círculo do meio rompeu-se e eles começaram a dançar em fila, formando uma espiral que girava para dentro, enquanto o círculo de fora os protegia, girando em sentido contrário. 

- Eles não estão preparados para a vida lá fora! Não, com este programa ingénuo. Vão levar um choque quando mudarem de sistema…

- Eles estão preparados para a vida! Ponto final. São crianças especiais.

- Os pais tem que saber que não vai funcionar, sem algumas mudanças essenciais… 

- Esta insistência é por vingança? É por isso?

- Não mistura as coisas… claro que não é…

- Eu não quero estas crianças no teu programa insano! Não estão sendo talhadas para isso. Esqueça. Eu já te disse que não te quero por cá, com tuas ideias malucas! 

- Olhe para eles! Eles não temem nada. O instinto protecionista em relação aos mais novos que eles têm é natural neles! Basta um toquezinho no programa educacional e eles mostram que vale toda a pena investir neles. 

- Eles são crianças. Não são cobaias. Nós queremos o melhor para eles, em termos de criatividade, colaboração mútua e coragem, é claro… mas coragem no sentido mais lato… coragem para enfrentar a vida sem preconceitos e sem temer as dificuldades ou os perigos da vida.

- Exatamente! É mesmo deles que nós precisamos!

- Chega desta conversa. Não há mais discussões. O programa foi aprovado como está e não vai mudar. O conceito original é diferente das tuas intenções. Saia, agora, por favor. Já te havia dito que não te queria por aqui. 

- Isso vai mudar. Podes ter certeza. Esta conversa não está acabada.

- Está, sim. Agora, saia, por favor.

Ao ouvir meu tom de voz, mostrando impaciência e uma certa agressividade, Ginger levantou a cabeça e ficou a observar-nos, alerta para o que acontecia. Ela virou-se e saiu, sem dizer mais nada. Estava claro que uma mulher daquelas não se dava por vencida, com uma simples negativa. 

Eu fiquei ali, de pé e parado, a olhar a não bem-vinda silhueta desaparecer na distância, enquanto a luz do sol, batendo direta contra minha face, quase feria-me os olhos. Senti uma leve pressão contra a perna e curvei-me para acariciar a cabeça do animalzinho, que parecia dizer-me para ficar tranquilo, como se pudesse proteger-me de todos os males. Desejei que assim fosse, para o futuro da nossa escola e para o bem daquelas crianças.

***

Passarás, passarás

Algum dia ficarás

Se não for o da frente 

Há de ser o de trás...

Queres céu ou inferno?


- É tarde demais!

- Não diga isso! Nunca é tarde demais! 

- Eu não sou um otimista e desconfio daquele tipo de pessoas. Sabes bem disso.

- O programa pode estar ameaçado, mas não está perdido. Quem sabe possamos chegar a um consenso, com ambos os lados cedendo um pouco. Tudo é possível…

- Não neste caso. Achas que aquela louca vai ceder em alguma coisa? Ela nem começou ainda… e eu temo pelas nossas crianças. Olhe para elas. Não sabem o perigo que correm. Não temem nada. Não é justo estragar tudo, por causa daquela… 

Engoli em seco e calei-me antes de dizer um imprecativo. Estava dentro das instalações da escola, afinal, e tinha que manter a linha e respeitar os códigos de ética. Estava possesso pela raiva e precisava muito esforço para não perder, completamente, a calma. Mas minha vontade era de usar nomes muito feios ao referir-me àquela mulher.

A diretora quase riu, ao ver-me no limiar de saltar a tampa. Ela conhecia a minha história e não escondia sua crença em que o programa, que eu desenvolvera com tanto esforço e precisa técnica, tinha tudo para ser bem-sucedido, depois de passado por várias fases de desenvolvimento e defesa junto à Secretaria da Educação. O programa havia sido desenvolvido durante minha tese de doutorado e, incentivado pelo orientador, passado de uma simples ideia concebida academicamente, para um programa educacional experimental, que envolvia um novo conceito de ensino para crianças de tenra idade. 

Até aquele momento, pelo menos, havíamos provado que estávamos no caminho certo. Eu, todavia, precisava de mais tempo para colher os frutos do sucesso. Não era em mim que eu pensava, mas no futuro das crianças: os filhos que eu não tive, nem ia ter, mas que estudavam ali, sob a minha orientação e tutela direta. Eram crianças que haviam sido cuidadosamente selecionadas segundo um critério bastante rigoroso e perfeccionista. 

Minha interferência havia sido, desde o início do empreendimento, total e absorvedoramente dedicada. Desde a escolha do sítio onde iríamos construir, a criação das áreas internas e externas, o programa educacional em si, a proximidade com áreas de lazer praticamente particulares e quase não frequentadas, os projetos paralelos… tudo havia sido cuidadosamente acompanhado, para seguir o projeto à risca. Algumas mudanças foram introduzidas durante a construção do estabelecimento, mas foram para melhor, como as árvores à volta do pátio, onde as aulas de verão eram lecionadas.

À luz da minha teoria, crianças com tendências artísticas tendem a ser mais livres de preconceitos e apreciam a beleza, a arte e a estética per si, sem misturar crenças, raça, nem tendências aprendidas. O contacto com animais libera os medos e receios e torna-as mais arrojadas e dispostas, além de elevar o grau de protecionismo, altruísmo e confiança nelas mesmas e nas outras. A criatividade, sendo estimulada naturalmente, eleva os níveis de inteligência emocional e facilita a resolução de problemas, pois a mente não vê barreiras intransponíveis, mas apenas desafios que podem e devem ser ultrapassados. O imediatismo não é incentivado e as ciências exatas caminham junto com a liberdade de expressão, complementando e equilibrando os lados emocional e racional das crianças, de maneira espontânea. 

O programa tinha uma grande dose de ingenuidade, por isso era imprescindível que fosse implantado em crianças de muita tenra idade, quando a personalidade ainda estava em formação. As doses de realidade dura e crua era dada em suas próprias casas e famílias. Não tínhamos alunos internos, nem os afastávamos da vida normal, mas a escola era como uma bolha de proteção ao cotidiano. Gerar cientistas artistas era produzir o melhor do melhor, no melhor ambiente. 

Não era nem justo, nem certo, converter aquelas mentes privilegiadas em soldados de elite e estrategistas, movidos à coragem e ousadia, mas desprovidos da intenção original e da relação espontânea com as mais diversas formas de beleza e arte. Queriam transformar homens e mulheres de verdade em máquinas mortíferas, treinadas por mentes perversas, egoístas e voltadas à causas tão duvidosas. 

Eu jamais iria permitir que fizessem um mal tão grande às “minhas” crianças tão especiais.

***

Se essa rua, se essa rua fosse minha

Eu mandava, eu mandava ladrilhar

Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes

Para o meu, para o meu amor passar


- Vamos juntar pedrinhas do rio, para fazermos uma calçada?


Uma ocasião programamos um acampamento com as crianças, a acontecer num fim-de-semana de verão, quando era mais propício e menos sujeito às chuvas na região. Minhas preocupações desvaneceram por dias, durante a fase de planeamento, organização, contactos e autorizações dos pais e responsáveis, comunicações com o corpo de bombeiros e polícia local e tudo o que pudéssemos para garantir o sucesso do empreendimento. Para mudar de ares, viajamos até uma região na montanha, num parque florestal. O tempo esteve perfeito e as crianças, que falaram no acampamento por umas semanas, não cabiam em si de excitação. Íamos fazer pesquisa de campo, provar um pouco da vida ao ar livre, longe da escola e pernoitar em tendas, armadas perto de um pequeno riacho, estimulando o espírito de sobrevivência na mata e aventura, como fizeram nossos antepassados. Na viagem, num ônibus alugado, estavam todos muito excitados, mas ao chegarmos perto do local, notei um certo nervosismo e o barulho diminuiu. Estavam apreensivos, mas não conseguiam esconder a curiosidade e a excitação do novo.

A montagem do acampamento foi um sucesso, com todos muito empenhados em ajudar e dividir as tarefas. Logo ficamos cientes que eles esqueceram completamente dos apetrechos eletrónicos modernos e estavam mais interessados em saber como funcionava uma bússola, como orientar-se pela posição do sol e coisas similares. Acredito que, por ser uma coisa nova para eles, meninos e meninas da cidade, estavam todos com pressa de ver como funcionava a montagem das tendas, a organização do lanche e almoço, as atividades de pesca, os banhos numa área escolhida com cuidado, onde o rio formava uma piscina natural, sem corredeiras nem perigos, as excursões de observação dos pássaros e animaizinhos da região, a ‘siesta’ depois do almoço… Tudo fora muito bem recebido e com excitação crescente. Era diferente das idas à praia ou ao parque. Era mais selvagem e livre, por isso mesmo, mais estimulante. Observei como os alunos mais velhos mantinham o instinto protetor aos mais novos e aquilo deixou-me bastante satisfeito. Era natural neles. Um bom sinal.

À noite, sem micro-ondas e apenas com um fogão improvisado, fizemos a refeição à volta da fogueira, em assentos e mesas também improvisadas. Depois, ainda ali, sentados confortavelmente, contamos histórias sobre nossos antepassados e como eles viviam, naturalmente, naquela região, caçando, pescando, plantando, colhendo, construindo suas cabanas, que depois evoluíram para casas sofisticadas. Não demorou muito para os rostos fatigados, mas sorridentes, começarem a mostrar um visível cansaço físico. O toque de recolher foi quase um despertar e as tendas foram imediatamente invadidas e os sacos-camas preenchidos por corpinhos cansados e felizes. 

Quando o sol estava alto, na manhã seguinte, os professores e as auxiliares, que estavam acampados à volta das tendas dos miúdos, levantaram-se e tocaram o toque de despertar. Coisas banais como lavar-se, pentear-se, vestir-se e preparar-se para o pequeno-almoço, viraram uma verdadeira algazarra, mas sem nenhuma resistência. Quem iria pensar que despertar as crianças e preparar a refeição fosse ser tão divertido?

O programa da manhã era simples. Os mais novos iriam ficar mais próximos do acampamento, a brincar na piscina, enquanto os maiores iriam fazer excursão à mata, em grupos pequenos e separados. O objetivo era, durante o almoço, trocarem experiências e contarem o que viram. Como a turma era pequena, não foi difícil arranjar as equipas, que rumaram para cada um dos quatro pontos cardeais principais. 

Dois dos meninos, amigos inseparáveis, que foram para o norte, contaram que viram uma área, no topo da montanha, sendo preparada para virar uma base militar. A imaginação deles era fértil. Perguntados como eles chegaram à aquela conclusão, o menino de óculos disse que viu soldados armados a cuidar da área, facto que não foi confirmado pelo professor-monitor, mas que foi veementemente confirmado pelo amigo inseparável. Aquela não era uma área com interesse militar, pelo que nós soubéssemos. Não fazia sentido. Mesmo assim, a história gerou um grande rebuliço nos alunos, cujas mentes livres de amarras, viajavam em tempo e espaço, construindo teorias e possibilidades. 

Partimos de volta, depois do almoço, no pequeno autocarro alugado. A maioria dormiu a ‘siesta’ durante a viagem. Somente os dois amigos, ainda excitados pelo que disseram haver testemunhado, viram um jipe do exército passar na direção oposta à que íamos. O menino de óculos puxou-me o braço e disse:

- Viu como nós estávamos certos? Aquele é um jipe do exército!

Eu fiquei a olhar o carro desaparecer na distância, um pouco intrigado pelo que acabara de ver e, não só por dar asas à teoria dos dois pequenos amigos, mas por ser obrigado a concordar que algo sério podia estar a passar naquela região…