- Fala-me do mar. Eu gosto de ouvir as histórias e de imaginar como deve
ser… imenso… talvez até assustador…
- É mesmo como um imenso lago, mas com as águas sempre revoltas, mesmo
quando parece calmo. É salgado, profundo… e frio… No meio da noite, quando os
ruídos todos desaparecem, pode-se ouvir seu rugir, como se fosse um dragão
inquieto, a reclamar a posse de algo que sempre havia sido seu, mas que lhe
fora roubado por algum deus cruel e injusto…
- Eu quero conhecer o mar. Levas-me, um dia?
Ela olhava-me com os olhos de súplica, sonhadores e cheios de uma
antecipação estranha e extremamente doce.
- …Por favor?
- Levo, sim. Um dia…
E seus verdes olhos miravam um ponto distante, a desejar a viagem… a
imaginar um grande dragão pardo, deitado sobre um imenso areal, preso na
angústia de um vazio inexplicado, a rugir inquieto e impotente, atormentado por
sonhos de liberdade e a lamentar uma grande perda.
Eu nascera na ilha, numa sexta-feira de Outono. Talvez por este motivo,
sempre tivera um estreito e íntimo contacto com o mar e os ventos, durante toda
a minha vida. Eram tão parte de mim, como o sangue que me corria nas veias.
Quando menino, a primeira coisa que fazia, ao levantar, era abrir a janela e
olhar o mar, para ver de que lado o vento soprava. Neto de pescador, aprendi a
ler os sinais da natureza, para ter uma previsão aproximada do tempo.
O avô levantava cedo e ia para o mar, buscar a rede que havia colocado na
noite anterior. Eu sempre o via, de longe, na canoa, a recolher a rede com os
peixinhos, que ele sempre trazia, no tempo em que abundavam na baía. Muitas
vezes mandava alguns para o nosso almoço. Eu era uma criança, mas sabia da
afinidade que tínhamos com o mar e os peixes. Minha mãe dizia que ele descendia
de espanhóis.
Era um homem alto, mas já andava meio curvado pelo peso dos anos. Tinha o
nariz adunco e usava óculos com aro de tartaruga. A cabeça calva, estava sempre
coberta por um chapéu de feltro, clássico e cinzento. Vestia sempre camisas
brancas, com as mangas arregaçadas e calças cinzentas. Em dias de gala, ou de
missa, vestia um terno preto, de risca de giz e o chapéu, também preto,
reservado para aquelas ocasiões. Era engraçado vê-lo alinhado, quando na
maioria dos dias, parecia vestir a mesma roupa. O avô morava no continente,
para onde nos mudamos, quando eu tinha cinco anos de idade.
A ilha ficava sempre à nossa vista, quando abríamos as janelas, que tinham
face para o leste. O pai ensinara-me a nadar. No mar. Eu adorava passar horas
dentro da água quase morna da baía, a nadar, mergulhar, aprender a segurar o
fôlego dentro da água. No verão, as águas eram sempre verdes, exceto em dias de
vento sul, quando ficavam turvas e pardacentas. No inverno, em dias claros, o
mar parecia um espelho. Em dias de vento tinha o mesmo tom pardacento, com as
ondas a quebrar-se, violentas, contra as rochas e as paredes das casas,
construídas muito próximas da linha das marés. Eu passava horas a olhar o mar,
com os pensamentos longe, sendo embalado pelo som característico das ondas, que
lambiam as areias, constante e insistentemente. Adorava caminhar pela orla, com
os pés dentro da água, a pisar a areia fofa e branca. O mar era meu elemento
mais natural. Era onde eu me sentia mais à vontade, mais tranquilo e mais
seguro, dentro do limite do respeito que tinha, pela sua grandeza e força
indomada.
Ela nunca havia estado frente a frente com uma energia tão poderosa e tão
incompreendida, como aquela imensidão verde escura, salpicada de linhas brancas,
entrecortadas, na distância.
Quando chegamos ao local que eu amava, desde criança e parei o carro, nós
saltamos e caminhamos, lado a lado, até a beira do penhasco. Eu podia sentir a
apreensão e a ansiedade que emanava dela, enquanto tentava controlar o ritmo de
seus passos. Ela, então, abriu um sorriso imenso e inspirou o ar salino, com
ambos, o nariz e a boca. Parecia faminta de mar e aquele momento era um grande
marco em sua vida, quando ia finalmente conhecer o grande e inquieto dragão,
que rugia, intrépido e inconformado, lá em baixo.
Ela, então, meteu a mão dentro da bolsa, donde resgatou uma pequena garrafa
azul, que tinha, dentro, um rolinho de papel amarrado com uma linha vermelha e
com um detalhe, que eu considerei de um requinte excepcional: a rolha estava
lacrada com cera. Ela pensara em tudo, por incrível que pudesse parecer-me. A
intenção de manter a mensagem protegida, seca e intacta, com aquele subtil
pormenor, surpreendeu-me, a ponto de achar graça da esperteza dela. Eu não
teria pensado naquilo… jamais...
- O que tens aí?
- É uma mensagem que eu escrevi. Coisa minha… não vale a pena incomodar-se
com isso.
Ela jogou a garrafinha ao mar, antes mesmo que eu pudesse pensar em fazer
qualquer coisa.
De cima do penhasco, ficamos, os dois, a olhar o mar a bramir lá em baixo,
com sua fúria incontida, seus braços de ondas e suas mãos de espuma, a receber
e a carregar, para longe, a garrafinha que continha uma inocente mensagem
secreta. Ela levantou a mão, mas parou o movimento a meio, quando deu-se conta
que eu havia percebido seu gesto quase involuntário.
- A quem tu ias saudar? Neptuno? Ou ias acenar um adeus à garrafinha? Eu
não acredito que, na tua idade, ainda acredites em deuses do mar e mensagens
secretas. Deves estar brincando comigo…
Ela enrubesceu, com uma irritação quase fingida. Olhou-me e soltou um
imprecativo qualquer, entre dentes. Depois disse-me em voz alta:
- Não adianta conversar contigo sobre certas coisas. Tu és muito
pragmático… não tens imaginação. Quando eu era criança, tu eras bem mais…
aceitável… Sabes o que mais? Falta-te fantasia. Por isso tua vida é tão
previsível e sem cor.
- Pois é verdade. Assim, pelo menos, sei exatamente onde piso. Não achas
que seja melhor?
Ela virou-se, impaciente e caminhou de volta ao carro. Não tinha muitos
argumentos contra minha triste realidade. Eu ri alto. Meus olhos acompanharam
aquela jovem mulher, a seguir, com passos firmes, para longe de mim, enquanto
meus pensamentos desbobinavam os fios do tempo, tentando encontrar um ponto de
referência. Virei-me de volta para o penhasco, a olhar o imenso e infinito mar
e disse, para mim mesmo, em voz baixa:
- Onde foi que eu perdi a capacidade de sonhar e de fantasiar, afinal?
Quando foi que deixei de ouvir o dragão a rugir sobre as areias da praia,
acorrentado em seus próprios medos e angústias? Quando foi que os meus próprios
problemas cegaram-me, ante a beleza da imaginação e da minha capacidade de
sonhar?
- Vamos!
Ela estava ao volante, a buzinar. Tinha uma necessidade premente de chegar
à praia. Queria molhar os pés na água salgada. Apressei-me a entrar no carro,
ao seu lado. Ela parecia uma criança, num dia do aniversário, correndo para o
local da festa. Eu ri dela. Ela simplesmente conduziu até o fim da estrada e,
quase sem assegurar-se que o carro estava mesmo parado, saltou e tratou de
livrar-se dos sapatos, enquanto corria na areia fina e fofa, que rangia a cada
passo que dava.
Parou quando chegou a beira da linha da água. Eu a observava de longe,
estudando sua reação. Ela deu um passo curto e molhou as pontas dos pés. Meio
passo atrás, virou-se, olhou-me e correu na direção das ondas que quebravam
próximas. Ela ria e saltava as ondas, molhando a roupa toda, sem preocupar-se.
Eu via a mesma criança que ouvia as histórias sobre os dragões e o grande e
imenso mar, a enfrentá-los, destemida, apesar do choque inicial e a portar-se
como se fosse tão íntima deles quanto eu havia sido, desde meus tempos de
menino.
***
- Ouves?
- Uhum… Está calmo… Parece que ronrona…
Deitada no banco da varanda, ela tinha os olhos fechados, a cabeça
recostada nas minhas pernas e sorria. Deu um salto, com os olhos arregalados, a
olhar-me como se tivesse tido o lampejo de uma brilhante ideia.
- Onde será que está a garrafinha? Será que alguém a achou?
- Deve estar no outro lado da praia. Normalmente as marés carregam os
pedaços de madeira de um lado ao outro… a garrafinha não deve estar muito
longe…
Ela ficou séria. Pareceu-me grandemente decepcionada.
- Oh. Pensei que ia bem mais longe…
- Às vezes vai… depende das marés…
Tentei deixá-la esperançosa, mas eu não tinha certeza do que dizia. Ela
deitou a cabeça nas minhas pernas, outra vez, e ficou a ouvir o silêncio da
noite e o ressonar, baixinho, do dragão… Adormeceu ali mesmo. Tomei-a no colo e deitei-a na cama
que ela mesma havia preparado, depois de jantar. Eu tinha que dormir na sala,
porque a pequena kitchenette que alugamos, para uma semana, tinha
apenas um quarto.
Todas as manhãs, saíamos a caminhar pela praia, abraçados, a molhar os pés
na água. Almoçávamos na aldeia, passeávamos, mas o mar era nosso ponto mais
frequente. Ficávamos horas e horas a olhar as ondas a quebrar, ou as gaivotas a
voar, a sentir a quietude da vida e sem dizermos nada.
Na manhã do dia da partida, quando acordei, não a vi. A porta estava
destrancada. Era cedo ainda. Ela saíra, sozinha, a caminhar. Preparei um café
fresco e esperei um pouco, mas não havia sinal dela. Antes de ficar preocupado
demais, vesti uma sweatshirt e saí a
procurá-la na praia. Segui as poucas pegadas deixadas na areia, por um par de
pés pequenos. Deviam ser dela. Encontrei-a sentada sobre um tronco caído, a
olhar a linha do horizonte, com a expressão mais sonhadora que jamais havia
visto.
Ela parecia diferente. Eu aproximei-me e sentei-me ao seu lado, sem dizer
nada. Estávamos ambos a olhar o horizonte. Ela suspirou.
- Nunca chegamos a encontrar a garrafinha. Deve ter sido levada para mais
longe… Isso é bom…. Acho…
Eu passei o braço por trás dela e puxei-a para mim. Ela recostou a cabeça
no meu peito e ficou quieta.
- Queres falar sobre isso?
- Não.
Respeitei sua privacidade e seu secretismo. Ela não acreditava que eu
pudesse compreender a fantasia que criara e a mensagem que, talvez, nunca
viesse a saber o teor que continha. Levantei-me e convidei-a para caminhar de
volta, para comer alguma coisa.
- Podemos ficar um dia a mais? Quero ter certeza que não vou
encontrar a garrafinha destruída, na praia.
Eu levantei o sobrolho e ela fez um muxoxo.
- Por favor…
- Não era este o plano, mas tudo bem. Temos que ver se podemos ficar na
kitchenette por mais esta noite.
Ela deu um salto e, sorrindo, abraçou-me, beijando-me a face.
- Obrigada.
Eu tentava ser um pai complacente, desde que ela
perdera a mãe, fazendo-lhe algumas vontades e restringindo outras. Ela não era
muito exigente, mas o mar era uma questão à parte. Era um desejo que
tinha desde menina, quando ainda acreditava em fantasias e dragões.
Reconheci que eu mesmo não tinha vontade de voltar. Estava tão bem, ali na
praia. Ela, portando-se, definitivamente, como minha única e legítima filha,
demonstrou uma afinidade descomunal, com um elemento com o qual entrava em
contacto pela primeira vez. O mar era nosso elemento natural. Estava no nosso
sangue, sem dúvida alguma.
O meu avô teria orgulho da bisneta.