Primeiro havia uma luz. Depois a
escuridão. Em seguida, pareceu que ouvia, ao longe, um grito exasperado.
Aparentemente, alguém clamava seu nome, insistentemente e em alta voz.
- Acorda, homem. Estiveste a sonhar e a gritar. Calma, agora…
Ele estava coberto por suor e tremia
violentamente. O velho sintoma, já bastante conhecido seu, voltara a
incomodar-lhe. Sentia uma forte pontada de dor, nas têmporas. Abriu os olhos,
devagar, tentando focar a visão, que ia-se tornando nítida aos poucos. Viu o
homenzinho com um semblante muito perturbado a olhar-lhe de muito perto. A
terrível dor de cabeça, que o afligia, quase o impedia de pensar e aumentava o
estado de confusão em que estava.
- Foi só um sonho…
- Mas foi horrível!
- Calma, agora. Deve ser o efeito do antídoto e do stress que viveste nas
últimas horas. Ainda tens alguma febre. Tens que descansar.
- Foi tudo tão real. Um pesadelo dos piores.
O homenzinho olhou para a mesa,
encostada à parede do quarto. Virou-se para o outro que jazia todo coberto de
suor e disse, com uma expressão estranha no rosto.
- A caixinha desapareceu.
Os dois homens entreolharam-se. O que
estava deitado passou a mão à volta do pescoço. Havia uma marca bastante vermelha,
como se algo houvesse roçado, com muitíssima pressão, ali naquela região. Sentia
um gosto estranho na boca e fortes náuseas. Virou-se para o lado e vomitou um
líquido quase transparente com alguns vestígios muito escuros.
O outro olhou-o, com o cenho
franzido, ao observar mais marcas, muito evidentes, no corpo do homem deitado e
a estranha mistura vinda do interior do seu estômago.
***
- Vitória, finalmente! Agora eu tenho o que mais queria. Ninguém conseguirá
deter a minha doce destruição! Este será o lugar ideal para minhas criaturas,
que já dominam o outro lado e estão-se reproduzindo em grande velocidade… e eu
serei a rainha de tudo isso… a criatura mais poderosa deste mundo…
A Sibila, em sua forma humana, deu
uma sonora gargalhada. Sua risada, sua pele pálida e seus longos e negros cabelos,
completamente desgrenhados, davam-lhe a impressão de que ela estava muito longe
de ser tanto humana, quanto sã. Na mão tinha a caixinha metálica, que
ostentava, com orgulhoso prazer e que fizera questão de buscar no quarto do
homem que viera do outro lado do mundo.
Ela tinha de certificar-se que
traria o seu prêmio, em mãos… mas não sem antes subjugar sua vítima, que dormia
seu profundo e agitado sonho e que teve, injetada em sua boca, uma negra
peçonha, cujo único intuito era aumentar o estado de desvario em que já se
encontrava. O homem teria sérias dúvidas sobre o que realmente acontecera e o
que havia alucinado.
A venenosa satisfação e a insuportável
empáfia da mulher pareciam haver aumentado nas últimas horas, depois que se
apossara da caixinha. Ela sabia bem que os delírios ainda iam demorar para
desaparecer, especialmente depois da segunda dose e, também, porque o antídoto
havia sido ministrado muito tempo depois da injeção do veneno na corrente
sanguínea da sua vítima.
A estranha mulher-serpente, então, abriu
a caixinha, bem devagar, para prolongar o prazer mórbido que sentia com sua
conquista. Os pequenos casulos luziram com a parca luz do ambiente, pois
estavam quase prontos a eclodir. Por sobre a quase transparente e fina
superfície de cada um, uma finíssima camada viva, movia-se em frenesi, com a
entrada da luz e do ar, sem ser percebida a olho nu. A Sibila tomou um dos
casulos com as pontas dos dedos e observou-os bem de perto.
Um ruído nas imediações da sala
chamou a atenção de quem lá se encontrava. A mulher fez sinal aos quatro homens
corpulentos que a observavam vangloriar-se. Dois deles saíram para ver o que
acontecia. O olhar dos outros personagens fixaram-se à entrada, assim que eles
cruzaram o limiar e desapareceram na escuridão. Houve um breve silêncio…
De repente, o mundo pareceu vir
abaixo. Uma série de rosnados, berros, sibilos, estrondos e sons de coisas a
quebrar, seguiu-se. Os dois homens que ainda estavam na sala saíram para fora e
entraram na escuridão além do portal. Os berros eram tão altos e aquela mistura
incompreensível de sons tão variados, que confundiram a estranha e esquelética
mulher, que, impaciente e com os olhos a flamejarem de ódio, dirigiu-se, apressada,
para onde os ruídos vinham, a fim de pôr um fim naquela algazarra.
Antes mesmo que chegasse ao pretendido
destino, a Sibila parou. Deu um pequeno passo atrás, quando viu que dois grandes
animais vinham na sua direção. Um enorme e pardo felino, com olhos
azuis-acinzentados e outro, um pouco menor, com olhos verdes muito claros,
avançaram pela sala adentro. O animal menor trazia, à volta do pescoço, uma
espécie de colar, com um delicado pingente de lápis-lazúli. Ambos vinham
acompanhados por uma dezena de mangustos e dirigiam-se diretamente à mulher,
com ar não menos ameaçador que o dela, que agora já havia mudado sua expressão
feroz por uma outra, completamente diferente e não muito congruente com o
contexto em que se encontravam.
O corpo humano da Sibila começou a contorcer-se,
com estranhos e incontroláveis espasmos. Ela transmutou-se de volta à sua forma
original, e rastejou pelo piso da sala, a menear seu longo e roliço corpo e
abrindo a boca, como se tentasse respirar e não conseguisse. A serpente ofegava
e tentava gritar, mas nenhum som saía de sua garganta.
Os felinos aproximaram-se,
ameaçadores, mas neste mesmo momento, os mangustos avançaram para cima da
reptílica figura, com ferocidade descomunal e em selvagem investida. Ela não
teve nem tempo de defender-se…
Não muito tempo depois, um estranho
homenzinho, vestido com roupas bastante surradas, em um tom muito escuro de castanho,
cruzou o portal da imensa sala e juntou uma caixinha que estava caída ao chão,
bem como uns pequenos casulos e colocou-os de volta no pequeno compartimento metálico,
suspirando aliviado. Fechou o artefacto com cuidado e saiu, sem dar mais
atenção que a necessária à cena horrenda a desenrolar-se nos subterrâneos do
edifício.
Atrás de si, uma jovem mulher, com
olhos quase transparentes, de tão claros, aprumou-se e rearranjou a túnica
cinzenta e o colar de lápis-lazúli, seguindo-o, em silêncio e sem olhar para
trás. Atrás da mocinha, um homem, com um casaco pardo, mais escuro e com olhos
azuis-acinzentados, seguia, sem dizer nenhuma palavra.
***
- Foi uma operação muitíssimo arriscada.
- Eu sei, mas tinha que ser, no mínimo, credível, ou estaríamos em apuros
maiores. Ela não sabia que os casulos estavam cobertos com os ácaros letais à
sua espécie. Eu tinha que ter certeza que ela respiraria alguns, para que a
ação fosse efetiva. Não pensei que fossem agir tão rápido, entretanto. Quem
poderia dizer que animaizinhos tão infimamente pequenos poderiam acabar assim,
tão rápido e tão efetivamente, com uma população de víboras desta estirpe…
- Mas ela podia tê-los destruído, sem entrar em contato com eles e acabado
com o plano. Foi muito arriscado mesmo.
- Eu contava com a sua grande arrogância, porém, e com a ajuda de nossos
amigos do horto… Enfim, eu estava certo… felizmente…
A caixinha estava aberta sobre a
mesa de madeira no centro do horto. Os pequenos casulos listrados haviam sido
cuidadosamente pendurados nos ramos de uma série de árvores. Estavam prontos a
eclodir e dar vida à uma série de novas borboletinhas. Estas deveriam viajar para
o outro lado e se encarregariam de aumentar sua própria população e a esperança
de vida, polinizando a vegetação e espalhando o vírus destruidor de serpentes.
No final, o objetivo era recuperar a vida da floresta, anulando parte da
devastação da mesma, causada pelos desígnios egoístas da Sibila.
- A continuidade ou a destruição da vida depende de coisinhas muito
pequenas e frágeis, mas que tem uma ação universal, quando acontecem
naturalmente. O problema é que uma vez perdido o equilíbrio, outras ações,
muito maiores, tem que ser tomadas e cuidados também muito maiores são
necessários para tentar retomar a harmonia perdida. Essa é a nossa função por
cá…
- Mas para isto, algumas medidas radicais tem que ser tomadas, também.
- Sem dúvidas. O importante é não destruir nada, para que o equilíbrio não
se perca e não tenhamos que refazer… com bem mais dificuldade e muito mais
tempo...Como estão as dores de cabeça? Sofreste bastante com toda esta
aventura...
- Estou bem melhor... acho... Na verdade, com esta excitação toda das
últimas horas, havia-me até esquecido das dores…
- Espero que esteja resolvido e que não mais sintas os sintomas, agora que
tratamos do problema.
O homem olhou o outro com uma
interrogação enorme nos olhos. Não havia percebido a intenção nas palavras do
outro. O velho sorriu e apontou para caixinha.
- Tínhamos um acordo. A tua parte foi bem mais difícil e causou-te uma
série de encrencas. A minha foi muito mais fácil. O que é veneno para uns, é
cura para outros…
- Mas eu não vi…
- Não se deixe convencer apenas pela impressão do que tu viste ou não. Os
sentidos, às vezes, enganam. Abra a mente e deixe-se aceitar as coisas sem
pré-conceitos. Algumas coisas não são o que aparentam ser e tu já tiveste
muitas provas disso, nestes últimos dias. Faz parte do ritual da vida preservar
a nossa e todas as outras espécies e, também, curar os males… que nós
conseguirmos. O acordo era claro: uma coisa pela outra. Agora já não terás mais
o carcinoma a incomodar-te o cérebro... E as alucinações? Ainda as tens?
- As alucinações? Como é que sabes das alucinações? Eu nunca falei…
O homenzinho sorriu, piscou o olho, virou-se
e saiu, sem responder. Foi então que o homem percebeu duas protuberâncias nas
costas do outro, cobertas pelo velho casaco castanho, já bastante puído.
***
- Eu não vou voltar a pular neste poço. Não mesmo...
- Pois eu vou. É a única saída para o outro lado... de volta para a tua
casa... o teu lar…
Ele sentiu que aquela não era bem a
constatação de uma verdade. Era um homem sozinho e solitário, que vivia para
pouco mais que a rotina confortável de seu trabalho. Tinha uma vida social
praticamente inexistente. Naquelas poucas horas em que estivera naquele mundo,
havia tido mais aventura e sentira-se mais vivo que durante toda a sua
existência.
- Meu lar? E onde fica meu lar, afinal?
A mocinha, de olhos verdes muito
claros, olhou o homem, sorrindo e desconsiderando aquela última questão. Não
hesitou e pulou, com os dois pés juntos, dentro da água cristalina. Ele viu que
não tinha muita alternativa e pulou atrás, deixando-se afundar, sem fazer
nenhum esforço enquanto submergia. A sensação era incrivelmente refrescante e
revigorante. Um redemoinho formou-se, subitamente, por baixo de dois corpos
imersos e puxou-os para o centro do mesmo. O homem fechou os olhos e deixou-se ser
sugado nas profundezas do poço, cujas águas lavavam-lhe a alma e o corpo e
davam-lhe a impressão que caía infinitamente…
***
- É quase impossível! Não consigo entender como não está mais lá!
- Tem certeza, doutor? Não é um engano?
- Tenho certeza absoluta, mas não consigo perceber. Era muito evidente…
muito visível… e agora não há nem sinal. Já refizemos os exames, porque
estávamos com dúvidas, mas os resultados só reconfirmam que já não está mais lá…
É muito estranho mesmo!
O médico examinava os resultados do
ultrassom e do raio X e não conseguia ver sinais do carcinoma que tratou por
tanto tempo, para não deixar o paciente desanimar, mas sabia que os dias do
homem de cabelos castanhos estavam contados. O tumor era fatal… até aquele
momento… E, agora, havia desaparecido por completo e ele não tinha nenhuma
explicação para aquela melhora.
- E as dores? Eram bastante fortes…
- Já não as sinto…
O médico olhou o paciente, com uma
expressão de incredulidade.
- E as alucinações?
O homem sorriu. aliviado e disse:
- Provavelmente algum milagre aconteceu… Doutor, tenho que ir. Vou
aproveitar e beber um vinho fresco, na ribeira… a celebrar a vida!
E pensou:
- (Que grande lance... um verdadeiro lance de mestre!!!)
***
- Está tudo bem?
- Ahn? Sim, está… acho…
Ele olhava diretamente nos olhos verdes
quase transparentes da menina que esbarrara na sua cadeira e que pedira
desculpas, sorrindo, fazendo-lhe uma pergunta que não esperava. Normalmente as
pessoas pedem desculpas, mas não voltam-se para saber se está-se bem. Ela ficou
a olhar o homem por uns intermináveis instantes. Ele retribuiu o sorriso. Seus
olhos foram atraídos pelo delicado colar de distinta pedra azul, que ela trazia
pendurado ao pálido pescoço.
- Elena! Vamos!
Ela já ia a caminho do rapaz que a
chamara, mas voltou correndo e, segurando-lhe o pulso, colocou algo na palma da
sua mão e fechou-lhe os dedos, para segurar o “presente” que acabara de dar-lhe.
Olhou-o nos olhos, sorriu e saiu correndo, desta vez sem olhar para trás.
Ele ainda ficou com a mão fechada
por uns segundos, a olhar a mocinha afastar-se com o grupo de amigos, da mesma
idade que ela. Abriu lentamente os dedos e viu, ali, um pequeno objeto que
conhecia bem. Teve um pensamento perturbador.
- (Isso foi verdadeiro, ou uma grande alucinação? Teria sido o efeito do
tumor, no meu cérebro? A grande verdade é que provavelmente nunca saberei…)
O pequeno casulo moveu-se na sua
mão. A continuidade da vida depende de
coisas tão imensuravelmente frágeis, pensou…