domingo, 2 de novembro de 2014

Uma Garrafinha Azul (Parte 1 de 2)


- Fala-me do mar. Eu gosto de ouvir as histórias e de imaginar como deve ser… imenso… talvez até assustador…

- É mesmo como um imenso lago, mas com as águas sempre revoltas, mesmo quando parece calmo. É salgado, profundo… e frio… No meio da noite, quando os ruídos todos desaparecem, pode-se ouvir seu rugir, como se fosse um dragão inquieto, a reclamar a posse de algo que sempre havia sido seu, mas que lhe fora roubado por algum deus cruel e injusto…

- Eu quero conhecer o mar. Levas-me, um dia?

Ela olhava-me com os olhos de súplica, sonhadores e cheios de uma antecipação estranha e extremamente doce.

- …Por favor?

- Levo, sim. Um dia…

E seus verdes olhos miravam um ponto distante, a desejar a viagem… a imaginar um grande dragão pardo, deitado sobre um imenso areal, preso na angústia de um vazio inexplicado, a rugir inquieto e impotente, atormentado por sonhos de liberdade e a lamentar uma grande perda.

Eu nascera na ilha, numa sexta-feira de Outono. Talvez por este motivo, sempre tivera um estreito e íntimo contacto com o mar e os ventos, durante toda a minha vida. Eram tão parte de mim, como o sangue que me corria nas veias. Quando menino, a primeira coisa que fazia, ao levantar, era abrir a janela e olhar o mar, para ver de que lado o vento soprava. Neto de pescador, aprendi a ler os sinais da natureza, para ter uma previsão aproximada do tempo.

O avô levantava cedo e ia para o mar, buscar a rede que havia colocado na noite anterior. Eu sempre o via, de longe, na canoa, a recolher a rede com os peixinhos, que ele sempre trazia, no tempo em que abundavam na baía. Muitas vezes mandava alguns para o nosso almoço. Eu era uma criança, mas sabia da afinidade que tínhamos com o mar e os peixes. Minha mãe dizia que ele descendia de espanhóis.

Era um homem alto, mas já andava meio curvado pelo peso dos anos. Tinha o nariz adunco e usava óculos com aro de tartaruga. A cabeça calva, estava sempre coberta por um chapéu de feltro, clássico e cinzento. Vestia sempre camisas brancas, com as mangas arregaçadas e calças cinzentas. Em dias de gala, ou de missa, vestia um terno preto, de risca de giz e o chapéu, também preto, reservado para aquelas ocasiões. Era engraçado vê-lo alinhado, quando na maioria dos dias, parecia vestir a mesma roupa. O avô morava no continente, para onde nos mudamos, quando eu tinha cinco anos de idade.

A ilha ficava sempre à nossa vista, quando abríamos as janelas, que tinham face para o leste. O pai ensinara-me a nadar. No mar. Eu adorava passar horas dentro da água quase morna da baía, a nadar, mergulhar, aprender a segurar o fôlego dentro da água. No verão, as águas eram sempre verdes, exceto em dias de vento sul, quando ficavam turvas e pardacentas. No inverno, em dias claros, o mar parecia um espelho. Em dias de vento tinha o mesmo tom pardacento, com as ondas a quebrar-se, violentas, contra as rochas e as paredes das casas, construídas muito próximas da linha das marés. Eu passava horas a olhar o mar, com os pensamentos longe, sendo embalado pelo som característico das ondas, que lambiam as areias, constante e insistentemente. Adorava caminhar pela orla, com os pés dentro da água, a pisar a areia fofa e branca. O mar era meu elemento mais natural. Era onde eu me sentia mais à vontade, mais tranquilo e mais seguro, dentro do limite do respeito que tinha, pela sua grandeza e força indomada.

Ela nunca havia estado frente a frente com uma energia tão poderosa e tão incompreendida, como aquela imensidão verde escura, salpicada de linhas brancas, entrecortadas, na distância.

Quando chegamos ao local que eu amava, desde criança e parei o carro, nós saltamos e caminhamos, lado a lado, até a beira do penhasco. Eu podia sentir a apreensão e a ansiedade que emanava dela, enquanto tentava controlar o ritmo de seus passos. Ela, então, abriu um sorriso imenso e inspirou o ar salino, com ambos, o nariz e a boca. Parecia faminta de mar e aquele momento era um grande marco em sua vida, quando ia finalmente conhecer o grande e inquieto dragão, que rugia, intrépido e inconformado, lá em baixo.

Ela, então, meteu a mão dentro da bolsa, donde resgatou uma pequena garrafa azul, que tinha, dentro, um rolinho de papel amarrado com uma linha vermelha e com um detalhe, que eu considerei de um requinte excepcional: a rolha estava lacrada com cera. Ela pensara em tudo, por incrível que pudesse parecer-me. A intenção de manter a mensagem protegida, seca e intacta, com aquele subtil pormenor, surpreendeu-me, a ponto de achar graça da esperteza dela. Eu não teria pensado naquilo… jamais...

- O que tens aí?

- É uma mensagem que eu escrevi. Coisa minha… não vale a pena incomodar-se com isso.

Ela jogou a garrafinha ao mar, antes mesmo que eu pudesse pensar em fazer qualquer coisa. 

De cima do penhasco, ficamos, os dois, a olhar o mar a bramir lá em baixo, com sua fúria incontida, seus braços de ondas e suas mãos de espuma, a receber e a carregar, para longe, a garrafinha que continha uma inocente mensagem secreta. Ela levantou a mão, mas parou o movimento a meio, quando deu-se conta que eu havia percebido seu gesto quase involuntário.

- A quem tu ias saudar? Neptuno? Ou ias acenar um adeus à garrafinha? Eu não acredito que, na tua idade, ainda acredites em deuses do mar e mensagens secretas. Deves estar brincando comigo…

Ela enrubesceu, com uma irritação quase fingida. Olhou-me e soltou um imprecativo qualquer, entre dentes. Depois disse-me em voz alta:

- Não adianta conversar contigo sobre certas coisas. Tu és muito pragmático… não tens imaginação. Quando eu era criança, tu eras bem mais… aceitável… Sabes o que mais? Falta-te fantasia. Por isso tua vida é tão previsível e sem cor.

- Pois é verdade. Assim, pelo menos, sei exatamente onde piso. Não achas que seja melhor?

Ela virou-se, impaciente e caminhou de volta ao carro. Não tinha muitos argumentos contra minha triste realidade. Eu ri alto. Meus olhos acompanharam aquela jovem mulher, a seguir, com passos firmes, para longe de mim, enquanto meus pensamentos desbobinavam os fios do tempo, tentando encontrar um ponto de referência. Virei-me de volta para o penhasco, a olhar o imenso e infinito mar e disse, para mim mesmo, em voz baixa:

- Onde foi que eu perdi a capacidade de sonhar e de fantasiar, afinal? Quando foi que deixei de ouvir o dragão a rugir sobre as areias da praia, acorrentado em seus próprios medos e angústias? Quando foi que os meus próprios problemas cegaram-me, ante a beleza da imaginação e da minha capacidade de sonhar?

- Vamos!

Ela estava ao volante, a buzinar. Tinha uma necessidade premente de chegar à praia. Queria molhar os pés na água salgada. Apressei-me a entrar no carro, ao seu lado. Ela parecia uma criança, num dia do aniversário, correndo para o local da festa. Eu ri dela. Ela simplesmente conduziu até o fim da estrada e, quase sem assegurar-se que o carro estava mesmo parado, saltou e tratou de livrar-se dos sapatos, enquanto corria na areia fina e fofa, que rangia a cada passo que dava.

Parou quando chegou a beira da linha da água. Eu a observava de longe, estudando sua reação. Ela deu um passo curto e molhou as pontas dos pés. Meio passo atrás, virou-se, olhou-me e correu na direção das ondas que quebravam próximas. Ela ria e saltava as ondas, molhando a roupa toda, sem preocupar-se. Eu via a mesma criança que ouvia as histórias sobre os dragões e o grande e imenso mar, a enfrentá-los, destemida, apesar do choque inicial e a portar-se como se fosse tão íntima deles quanto eu havia sido, desde meus tempos de menino.

***

- Ouves?

- Uhum… Está calmo… Parece que ronrona…

Deitada no banco da varanda, ela tinha os olhos fechados, a cabeça recostada nas minhas pernas e sorria. Deu um salto, com os olhos arregalados, a olhar-me como se tivesse tido o lampejo de uma brilhante ideia.

- Onde será que está a garrafinha? Será que alguém a achou?

- Deve estar no outro lado da praia. Normalmente as marés carregam os pedaços de madeira de um lado ao outro… a garrafinha não deve estar muito longe…

Ela ficou séria. Pareceu-me grandemente decepcionada.

- Oh. Pensei que ia bem mais longe…

- Às vezes vai… depende das marés…

Tentei deixá-la esperançosa, mas eu não tinha certeza do que dizia. Ela deitou a cabeça nas minhas pernas, outra vez, e ficou a ouvir o silêncio da noite e o ressonar, baixinho, do dragão… Adormeceu ali mesmo. Tomei-a no colo e deitei-a na cama que ela mesma havia preparado, depois de jantar. Eu tinha que dormir na sala, porque a pequena kitchenette que alugamos, para uma semana, tinha apenas um quarto.    

Todas as manhãs, saíamos a caminhar pela praia, abraçados, a molhar os pés na água. Almoçávamos na aldeia, passeávamos, mas o mar era nosso ponto mais frequente. Ficávamos horas e horas a olhar as ondas a quebrar, ou as gaivotas a voar, a sentir a quietude da vida e sem dizermos nada.

Na manhã do dia da partida, quando acordei, não a vi. A porta estava destrancada. Era cedo ainda. Ela saíra, sozinha, a caminhar. Preparei um café fresco e esperei um pouco, mas não havia sinal dela. Antes de ficar preocupado demais, vesti uma sweatshirt e saí a procurá-la na praia. Segui as poucas pegadas deixadas na areia, por um par de pés pequenos. Deviam ser dela. Encontrei-a sentada sobre um tronco caído, a olhar a linha do horizonte, com a expressão mais sonhadora que jamais havia visto.

Ela parecia diferente. Eu aproximei-me e sentei-me ao seu lado, sem dizer nada. Estávamos ambos a olhar o horizonte. Ela suspirou.

- Nunca chegamos a encontrar a garrafinha. Deve ter sido levada para mais longe… Isso é bom…. Acho…

Eu passei o braço por trás dela e puxei-a para mim. Ela recostou a cabeça no meu peito e ficou quieta.

- Queres falar sobre isso?

- Não.

Respeitei sua privacidade e seu secretismo. Ela não acreditava que eu pudesse compreender a fantasia que criara e a mensagem que, talvez, nunca viesse a saber o teor que continha. Levantei-me e convidei-a para caminhar de volta, para comer alguma coisa.

 - Podemos ficar um dia a mais? Quero ter certeza que não vou encontrar a garrafinha destruída, na praia.

Eu levantei o sobrolho e ela fez um muxoxo.

- Por favor…

- Não era este o plano, mas tudo bem. Temos que ver se podemos ficar na kitchenette por mais esta noite.

Ela deu um salto e, sorrindo, abraçou-me, beijando-me a face.

- Obrigada.

Eu tentava ser um pai complacente, desde que ela perdera a mãe, fazendo-lhe algumas vontades e restringindo outras. Ela não era muito exigente, mas o mar era uma questão à parte. Era um desejo que tinha desde menina, quando ainda acreditava em fantasias e dragões. 

Reconheci que eu mesmo não tinha vontade de voltar. Estava tão bem, ali na praia. Ela, portando-se, definitivamente, como minha única e legítima filha, demonstrou uma afinidade descomunal, com um elemento com o qual entrava em contacto pela primeira vez. O mar era nosso elemento natural. Estava no nosso sangue, sem dúvida alguma. 


O meu avô teria orgulho da bisneta.


1 comentário:

  1. O tema é um pouco diferente do que costumo escrever... mas é uma história que me traz muito mais que um tema diferente...

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