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domingo, 16 de novembro de 2014

Uma Garrafinha Azul (Parte 2 de 2: Ένα μικρό μπλε μπουκάλι (Éna mikró ble boukáli))


Nós havíamos combinado que voltaríamos àquela mesma região, no começo do Verão seguinte. Ela começava a falar na viagem, semanas antes da data da partida, sempre cheia de planos… detalhados… e que não eram poucos.

Eu achava incrível como ela havia amadurecido naquele ano. Desabrochara como uma rara flor. Era uma miúda inteligente e tinha uma beleza reconhecida por todos, para meu orgulho. Era minha vida.

Ainda não era meio-dia, quando chegamos à praia. Como era de esperar, ela saiu correndo, descalça e a chutar a água salgada e fresca. Voltava a ser a minha menina, que tinha uma enorme fascinação pelo mar. Eu a acompanhei, a passos lentos, pois não tinha vontade de correr. À beira da água, eu gostava mesmo era de caminhar, bem devagar. Perdi-a de vista quando ela venceu a curva da baía, mas sabia para onde se dirigia. Em pouco tempo avistei a silhueta conhecida, a mover-se lentamente à minha frente. Perguntei-me o porquê de estar a caminhar tão devagar, mas logo percebi a razão.

Havia um homem jovem sentado sobre um tronco, na praia, a olhar, muito sério, um ponto além do horizonte, com olhos tão azuis quanto o céu que se estendia por sobre nós. Tinha cabelos negros e fartos, lisos, mas estavam desalinhados pelo vento. Vestia uma camisa branca, com as mangas arregaçadas até os cotovelos e as velhas calças jeans com as bainhas enroladas para cima, estavam um pouco molhadas. O rapaz, que já havia, com certeza, passado dos vinte, mas estava longe dos trinta anos de idade, percebeu nossa chegada, mas não saiu do lugar. Minha filha apertou minha mão, quando viu que ele tinha uma garrafinha azul na mão.

***

- No fim do verão passado, encontrei-a, no outro lado da baía. Tinha esperanças de encontrar a dona, mas não sabia como. Decidi que devia mandá-la de volta ao mar. Tive pena, mas não tinha direito de mantê-la comigo. Quem sabe outro tivesse mais sorte que eu. Mas o poema era tão bonito, que hesitei…

- Poema?

- Sim.

Olhei o rubor tingir a face da minha menina, agora comportando-se como uma jovem mulher. Ela desviou o olhar. Eu a conhecia bastante bem. Aquele tipo de reação só poderia significar uma coisa. Ele também não conseguia disfarçar, satisfatoriamente, o interesse que sentia. A conversa fluía, como se fôssemos conhecidos de longa data. Estávamos sentados na esplanada de um pequeno restaurante, não muito longe da nossa kitchenette, a relaxar e bebericar, enquanto a comida não era servida. Sobre a mesa, jazia uma garrafinha azul, com um velho pedaço de papel, enrolado, dentro. Eu o havia convidado para almoçar connosco, uma atitude que jamais tomaria, se estivesse numa cidade grande. Ali, naquela vila, porém, onde todos pareciam conhecer-se, acreditei que deveria ser a atitude mais educada e inofensiva a tomar.

- Voltei para cá, depois de formar-me. Meu pai, viúvo e de idade avançada, precisou de ajuda e eu resolvi estabelecer-me por cá, por enquanto. Trabalho em um consultório na ilha. Um dia terei o meu, mas preciso de experiência e dinheiro, para investir… Este fim-de-semana teremos uma festa grega. A comunidade mantém certas tradições. Vai ser divertido. Vocês deviam vir.

Minha filha olhou-me, sorrindo. Era evidente que já havia tomado a decisão dela. Eu sorri de volta. Pisquei o olho e ela sorriu, largamente. Festa grega… pensei em danças na rua, pratos quebrados, vinho tinto e muitos frutos do mar…

- Nós viremos.

Ele sorriu, em aprovação. Ela estava radiante.

***

Nikos Vertis e Nikos Oikonomopoulos, Antonis Remos, Vasilis Karras, Paola, Giorgos Mazonakis, Pantelis Pantelidis, Melisses e muitos outros cantores gregos modernos, tocavam noite adentro, nos autofalantes da praça. Os restaurantes estavam abertos e as mesas colocadas do lado de fora. As pessoas vestiam-se de branco e dançavam nas ruas, que estavam fechadas ao trânsito. Quando colocaram a canção mais pungente de Natasa Theodoridou a tocar, o rapaz tomou a mão da minha menina e convidou-a a dançar ali mesmo, no meio da rua. Outros casais faziam o mesmo. Eu lembrei que a mãe dela adorava aquela canção.

“Να 'Σουν Θάλασσα, να μην σ’άλλαζα” (Na soun thalássa, na mi̱n s’ állaza)… ‘Se tu fosses o mar, eu nunca te mudaria’… dizia a cantora, em dueto com Sarbel, com sua voz grave e em perfeito contraste com a dela.

Eu senti uma nostalgia enorme e meus olhos inundaram-se com lágrimas, ao lembrar a última vez que dançamos, exatamente aquela mesma canção. Engoli em seco, tentando desfazer aquele nó que me apertava a garganta, mas não consegui. Sentei-me à uma mesa vazia, com os pensamentos muito longe dali.

- Eles formam um casal tão bonito…

Eu virei-me, para ver quem havia falado. Uma mulher um pouco além da meia-idade, dona de uma das tabernas que participavam do festival, olhava, com ar sonhador, os casais a dançar no meio da rua. Sua atenção estava mais voltada ao jovem de cabelos muito negros e pele morena e à mocinha de cabelos castanhos, emoldurando a face de pele muito clara, decorada com expressivos olhos verdes, que dançavam bem à nossa frente.

- É verdade…

Eu poderia sentir alguma espécie de ciúme ou um instinto protetor qualquer, mas não era o que se passava na minha cabeça naquele momento. Eu os olhava e via outras pessoas, de um passado quase recente. Não era delírio. Era uma névoa que misturava nostalgia, lembranças, sonho e vida real. Na minha visão, ela parecia flutuar e transformar-se na mãe, a dançar com um homem que eu conhecia muito bem... e que já não era o mesmo que a observava, naquele momento. Eu havia mudado... e bastante… No fundo, eu tinha medo que a história, de alguma forma, se repetisse...

No sirtáki dançam-se juntas a forma lenta (argó) e a rápida (grígoro) do hassápiko, que é uma das mais conhecidas manifestações populares, nos festivais de rua. Nas extremidades, como não formam um círculo fechado, os dançarinos giram lenços nas mãos livres. Na tradição, é importante não deixar a mão livre, para não ser segura por algum demónio.

Normalmente, um grande agrupamento se forma, no ponto mais divertido da noite, quando ouvem-se os primeiros acordes do sirtáki de Zorba, como naquele momento.

Um jovem de cabelos muito claros adiantou-se e puxou minha filha pela mão, sendo seguido por uma corrente de outras mãos, que começaram a formar um cordão enorme, no meio da avenida. Um outro cordão de pessoas, com os braços dados, formou-se à frente do primeiro. Nosso amigo esteve na extremidade daquele, mas como distraiu-se e deixou o lenço que segurava ser carregado por um outro, um homem mais velho apressou-se a tomar seu lugar e a festa continuou, como se nada houvesse acontecido. O rapaz franziu o cenho, inicialmente, mas logo voltou ao normal, pois assim ficava mais próximo da posição onde a mocinha dançava e, aparentemente, esqueceu o ocorrido. A multidão ensaiava os passos popularizados por Anthony Quinn, no famoso filme de 1964. Em pouco tempo, todos já seguiam, perfeitamente, a sequência tradicional, como um grande grupo de artistas do bailado. Embora para alguns fosse a primeira vez, para outros, era mais uma… e era divertido para ambos...

- Deem, aos gregos, comida, bebida e música e eles dançarão, felizes, a noite inteira.

- Vejo que é uma grande verdade…

Eu concordava com a senhora, que ainda observava a multidão a brincar, com os olhos um pouco distantes, como se cheios de saudosismo. Quanta história haveria de estar escondida por detrás daquele olhar cansado e nostálgico …

Quando a dança acabou, minha filha correu ao meu encontro, ofegante e a rir, com as faces rosadas. Era evidente que estava a divertir-se muito. Sentou-se ao meu lado e passou o braço no meu, encostando a cabeça no meu ombro. Eu recostei a minha sobre a dela e ficamos a olhar as pessoas a passar. Pouco tempo depois vimos o rapaz aproximar-se de nós, com dois copos de bebida nas mãos. Sentou-se e ofereceu um deles à rapariga, que aceitou, sorrindo. Ele também tinha as faces afogueadas.

- Vamos ao Zorbás? Há música ao vivo e é menos agitado que a rua.

Eu não estava muito animado para ficar num lugar fechado, mas tendo em conta que ela estava tão excitada por concordar, resolvi acompanhá-los. O Zorbás ficava numa das ruas fora do rebuliço da festa e, por isso mesmo, menos movimentadas, o que nos dava um pouco de paz. Quando entramos, entretanto, o lugar estava apinhado de gente a rir e a beber. Alguns dançavam alegremente, mas a maioria somente bebia e conversava. Havia um grupo no palco, a tocar músicas modernas. Passei os olhos à nossa volta, captando os detalhes do lugar. A decoração era simples, mas bastante interessante. Pequenos quadros emoldurados de paisagens e temas típicos da Grécia estavam dependurados nas paredes de pedra nua, à nossa volta. Apesar da pouca luz, alguns pontos estratégicos por sobre as mesas e no bar, assim como no palco, podiam ser vistos com clareza suficiente. Estávamos de pé no meio do recinto, a observar o que se passava. O rapaz pediu licença e deixou-nos. Eu assumi que havia saído para buscar alguma bebida.

Só dei-me conta que ele, ao invés disso, sentara-se numa banqueta de pés altos, no centro do palco, quando começou a cantarolar os primeiros acordes de Thelo na me niosis. A canção, gravada por Nikos Vertis, estava muito bem interpretada na voz do nosso amigo mais recente. Eu não esperava que ele fosse tão afinado e tivesse a voz tão clara. Os outros músicos pareciam conhecê-lo, pela forma como o tratavam. Ele não tirava os olhos da minha filha, enquanto cantava, como se o fizesse somente para ela.

- Να 'ξερες τα βράδια πως μισώ          
  Που με τιμωρούν που σε 'χω χάσει      
  Θέλω να σε δω το ομολογώ                  
  Άλλη τέτοια νύχτα ας μη περάσει         


*(Na 'xeres ta vrádia po̱s misó̱
   Pou me timo̱roún pou se 'cho̱ chásei
  Thélo̱ na se do̱ to omologó̱
 Álli̱ tétoia nýchta as mi̱ perásei)*

- Sabes o que significa?

- Não. Parece triste, por um lado e, mesmo assim, muito bonita e tocante…

- É uma canção de amor… Fala da agonia, que a separação de dois amantes deixa, especialmente quando a noite chega. Tens razão. É romântica e triste, ao mesmo tempo.

- Pois é…

***

*Se soubesses como eu odeio a noite
  Porque sou punido por perder-te
  Eu admito que quero ver-te
  E não quero passar outra noite assim...

***

Pelo jeito que ela tinha toda a sua atenção voltada para o cantor e sorria, enrubescida, tive a impressão que minhas férias daquele verão iam ser, de alguma forma, mais solitárias que haviam sido nos últimos anos. Percebi que eu não estava realmente preocupado, quando aquele pensamento formou-se na minha mente. Quando a performance acabou, ele voltou a juntar-se a nós, sorrindo. Minha menina recebeu-o com um abraço e, consequentemente, com um terno beijo. Vi que estava sendo demais na cena e resolvi dar a noite por encerrada. Ela parecia radiante e, por mais estranho que pudesse parecer, aquilo me deixava feliz. Pedi desculpas e retirei-me. Na saída, esbarrei num rapaz de cabelos muito claros, que entrava apressado e visivelmente alcoolizado.

***

Algumas horas depois, acordei no meio da madrugada, totalmente confuso, com um tumulto de sirenes e vozerio, do lado de fora do condomínio onde ficava a kitchenette. Só dei-me conta do que acontecia, quando minha filha entrou, aos prantos, com a blusa manchada de sangue. Entrei em pânico imediatamente, mas ela não estava ferida.

Um policial, que entrou com ela,  contou-me o que acontecera, já que a menina parecia estar em completo choque. Um rapaz, de cabelos muito claros e visivelmente alcoolizado, entrara no Zorbás e tentara puxar a rapariga para dançar, mas ela recusara-se, sendo defendida pelo parceiro que estava com ela. O outro não aceitou bem a rejeição e partiu para cima do nosso amigo, que esmurrou-o e saiu, antes de causar maior dano. Na porta, chamaram os seguranças, para tomarem providências e controlar o rapaz, que gritava por vingança.

Quando estavam a chegar à casa, algumas horas depois, o rapaz loiro, que os seguira, sem ser visto, puxou uma faca e enfiou-a nas costas do meu futuro genro, um par de vezes e fugiu, quando minha filha gritou, desesperadamente, por socorro. Os ferimentos foram tão profundos, que ele não resistiu até a chegada da ambulância, falecendo no local, esvaindo-se em sangue, pelos pulmões perfurados pela longa e afiada lâmina. Foi tudo muito rápido. Uma verdadeira tragédia, num dia que havia sido tão especial para o jovem casal. Estávamos todos absolutamente horrorizados e revoltados.

***

- Por que, pai? Por que a vida é assim cruel?

- Não sei, filha...

Choramos abraçados, como duas crianças, consolando-nos pelo passado recente e pelo passado distante. A história, que se repetia, tinha a crueldade de demónios que tomam nossas mãos, quando os lenços, inadvertidamente, caem delas.

***

Evitamos voltar ao lugar nos três anos subsequentes, após o trágico acidente. Por insistência dela, porém, retornamos no começo do verão do quarto ano.

Assim que parei o carro na beira da praia, já tão conhecida nossa, o menino de cerca de três anos, com cabelos muito negros, pele clara e olhos azuis, como o céu que se estendia por sobre nós, saltou, impaciente, correndo descalço pela praia, como se fosse um filho de pescador. Ao chegar à beira da água, parou. Ele deu um passo curto e molhou as pontas dos pés. Meio passo atrás, virou-se, olhou-nos e correu na direção das ondas, que quebravam próximas, com seu som característico. Ele ria e saltava as ondas, molhando a roupa toda, sem preocupar-se. A mãe sorriu, divertida, apesar do olhar triste.

- É mesmo meu filho...

- Sem dúvida nenhuma. Meu neto tem uma afinidade muito grande com o grande dragão...

Ela sorriu, mas eu percebi que uma lágrima teimosa, caiu-lhe pelo canto do olho.

O menino correu pela beira da água, até desaparecer na curva da baía. Minutos depois, voltava com uma garrafinha azul numa das mãos e um velho pergaminho, atado com uma linha vermelha, na outra. Disse que havia encontrado a garrafa na praia, meio enterrada na areia, perto de um tronco caído. O papelzinho tinha um pequeno poema escrito.


"Quando me vires,

saberás quem sou,

pela forma como eu te olhar.

Se hesitares em chegar-te,

pensa que eu posso ter esperado

muito tempo

por este encontro

e que já não posso esperar mais.

Se me abraçares,

fá-lo por inteiro,

como se nossos corpos

fossem um só.

Quando me beijares,

então,

que seja como um último,

mesmo que seja o primeiro,

pois o primeiro,

bem pode ser,

também,

o derradeiro."


domingo, 2 de novembro de 2014

Uma Garrafinha Azul (Parte 1 de 2)


- Fala-me do mar. Eu gosto de ouvir as histórias e de imaginar como deve ser… imenso… talvez até assustador…

- É mesmo como um imenso lago, mas com as águas sempre revoltas, mesmo quando parece calmo. É salgado, profundo… e frio… No meio da noite, quando os ruídos todos desaparecem, pode-se ouvir seu rugir, como se fosse um dragão inquieto, a reclamar a posse de algo que sempre havia sido seu, mas que lhe fora roubado por algum deus cruel e injusto…

- Eu quero conhecer o mar. Levas-me, um dia?

Ela olhava-me com os olhos de súplica, sonhadores e cheios de uma antecipação estranha e extremamente doce.

- …Por favor?

- Levo, sim. Um dia…

E seus verdes olhos miravam um ponto distante, a desejar a viagem… a imaginar um grande dragão pardo, deitado sobre um imenso areal, preso na angústia de um vazio inexplicado, a rugir inquieto e impotente, atormentado por sonhos de liberdade e a lamentar uma grande perda.

Eu nascera na ilha, numa sexta-feira de Outono. Talvez por este motivo, sempre tivera um estreito e íntimo contacto com o mar e os ventos, durante toda a minha vida. Eram tão parte de mim, como o sangue que me corria nas veias. Quando menino, a primeira coisa que fazia, ao levantar, era abrir a janela e olhar o mar, para ver de que lado o vento soprava. Neto de pescador, aprendi a ler os sinais da natureza, para ter uma previsão aproximada do tempo.

O avô levantava cedo e ia para o mar, buscar a rede que havia colocado na noite anterior. Eu sempre o via, de longe, na canoa, a recolher a rede com os peixinhos, que ele sempre trazia, no tempo em que abundavam na baía. Muitas vezes mandava alguns para o nosso almoço. Eu era uma criança, mas sabia da afinidade que tínhamos com o mar e os peixes. Minha mãe dizia que ele descendia de espanhóis.

Era um homem alto, mas já andava meio curvado pelo peso dos anos. Tinha o nariz adunco e usava óculos com aro de tartaruga. A cabeça calva, estava sempre coberta por um chapéu de feltro, clássico e cinzento. Vestia sempre camisas brancas, com as mangas arregaçadas e calças cinzentas. Em dias de gala, ou de missa, vestia um terno preto, de risca de giz e o chapéu, também preto, reservado para aquelas ocasiões. Era engraçado vê-lo alinhado, quando na maioria dos dias, parecia vestir a mesma roupa. O avô morava no continente, para onde nos mudamos, quando eu tinha cinco anos de idade.

A ilha ficava sempre à nossa vista, quando abríamos as janelas, que tinham face para o leste. O pai ensinara-me a nadar. No mar. Eu adorava passar horas dentro da água quase morna da baía, a nadar, mergulhar, aprender a segurar o fôlego dentro da água. No verão, as águas eram sempre verdes, exceto em dias de vento sul, quando ficavam turvas e pardacentas. No inverno, em dias claros, o mar parecia um espelho. Em dias de vento tinha o mesmo tom pardacento, com as ondas a quebrar-se, violentas, contra as rochas e as paredes das casas, construídas muito próximas da linha das marés. Eu passava horas a olhar o mar, com os pensamentos longe, sendo embalado pelo som característico das ondas, que lambiam as areias, constante e insistentemente. Adorava caminhar pela orla, com os pés dentro da água, a pisar a areia fofa e branca. O mar era meu elemento mais natural. Era onde eu me sentia mais à vontade, mais tranquilo e mais seguro, dentro do limite do respeito que tinha, pela sua grandeza e força indomada.

Ela nunca havia estado frente a frente com uma energia tão poderosa e tão incompreendida, como aquela imensidão verde escura, salpicada de linhas brancas, entrecortadas, na distância.

Quando chegamos ao local que eu amava, desde criança e parei o carro, nós saltamos e caminhamos, lado a lado, até a beira do penhasco. Eu podia sentir a apreensão e a ansiedade que emanava dela, enquanto tentava controlar o ritmo de seus passos. Ela, então, abriu um sorriso imenso e inspirou o ar salino, com ambos, o nariz e a boca. Parecia faminta de mar e aquele momento era um grande marco em sua vida, quando ia finalmente conhecer o grande e inquieto dragão, que rugia, intrépido e inconformado, lá em baixo.

Ela, então, meteu a mão dentro da bolsa, donde resgatou uma pequena garrafa azul, que tinha, dentro, um rolinho de papel amarrado com uma linha vermelha e com um detalhe, que eu considerei de um requinte excepcional: a rolha estava lacrada com cera. Ela pensara em tudo, por incrível que pudesse parecer-me. A intenção de manter a mensagem protegida, seca e intacta, com aquele subtil pormenor, surpreendeu-me, a ponto de achar graça da esperteza dela. Eu não teria pensado naquilo… jamais...

- O que tens aí?

- É uma mensagem que eu escrevi. Coisa minha… não vale a pena incomodar-se com isso.

Ela jogou a garrafinha ao mar, antes mesmo que eu pudesse pensar em fazer qualquer coisa. 

De cima do penhasco, ficamos, os dois, a olhar o mar a bramir lá em baixo, com sua fúria incontida, seus braços de ondas e suas mãos de espuma, a receber e a carregar, para longe, a garrafinha que continha uma inocente mensagem secreta. Ela levantou a mão, mas parou o movimento a meio, quando deu-se conta que eu havia percebido seu gesto quase involuntário.

- A quem tu ias saudar? Neptuno? Ou ias acenar um adeus à garrafinha? Eu não acredito que, na tua idade, ainda acredites em deuses do mar e mensagens secretas. Deves estar brincando comigo…

Ela enrubesceu, com uma irritação quase fingida. Olhou-me e soltou um imprecativo qualquer, entre dentes. Depois disse-me em voz alta:

- Não adianta conversar contigo sobre certas coisas. Tu és muito pragmático… não tens imaginação. Quando eu era criança, tu eras bem mais… aceitável… Sabes o que mais? Falta-te fantasia. Por isso tua vida é tão previsível e sem cor.

- Pois é verdade. Assim, pelo menos, sei exatamente onde piso. Não achas que seja melhor?

Ela virou-se, impaciente e caminhou de volta ao carro. Não tinha muitos argumentos contra minha triste realidade. Eu ri alto. Meus olhos acompanharam aquela jovem mulher, a seguir, com passos firmes, para longe de mim, enquanto meus pensamentos desbobinavam os fios do tempo, tentando encontrar um ponto de referência. Virei-me de volta para o penhasco, a olhar o imenso e infinito mar e disse, para mim mesmo, em voz baixa:

- Onde foi que eu perdi a capacidade de sonhar e de fantasiar, afinal? Quando foi que deixei de ouvir o dragão a rugir sobre as areias da praia, acorrentado em seus próprios medos e angústias? Quando foi que os meus próprios problemas cegaram-me, ante a beleza da imaginação e da minha capacidade de sonhar?

- Vamos!

Ela estava ao volante, a buzinar. Tinha uma necessidade premente de chegar à praia. Queria molhar os pés na água salgada. Apressei-me a entrar no carro, ao seu lado. Ela parecia uma criança, num dia do aniversário, correndo para o local da festa. Eu ri dela. Ela simplesmente conduziu até o fim da estrada e, quase sem assegurar-se que o carro estava mesmo parado, saltou e tratou de livrar-se dos sapatos, enquanto corria na areia fina e fofa, que rangia a cada passo que dava.

Parou quando chegou a beira da linha da água. Eu a observava de longe, estudando sua reação. Ela deu um passo curto e molhou as pontas dos pés. Meio passo atrás, virou-se, olhou-me e correu na direção das ondas que quebravam próximas. Ela ria e saltava as ondas, molhando a roupa toda, sem preocupar-se. Eu via a mesma criança que ouvia as histórias sobre os dragões e o grande e imenso mar, a enfrentá-los, destemida, apesar do choque inicial e a portar-se como se fosse tão íntima deles quanto eu havia sido, desde meus tempos de menino.

***

- Ouves?

- Uhum… Está calmo… Parece que ronrona…

Deitada no banco da varanda, ela tinha os olhos fechados, a cabeça recostada nas minhas pernas e sorria. Deu um salto, com os olhos arregalados, a olhar-me como se tivesse tido o lampejo de uma brilhante ideia.

- Onde será que está a garrafinha? Será que alguém a achou?

- Deve estar no outro lado da praia. Normalmente as marés carregam os pedaços de madeira de um lado ao outro… a garrafinha não deve estar muito longe…

Ela ficou séria. Pareceu-me grandemente decepcionada.

- Oh. Pensei que ia bem mais longe…

- Às vezes vai… depende das marés…

Tentei deixá-la esperançosa, mas eu não tinha certeza do que dizia. Ela deitou a cabeça nas minhas pernas, outra vez, e ficou a ouvir o silêncio da noite e o ressonar, baixinho, do dragão… Adormeceu ali mesmo. Tomei-a no colo e deitei-a na cama que ela mesma havia preparado, depois de jantar. Eu tinha que dormir na sala, porque a pequena kitchenette que alugamos, para uma semana, tinha apenas um quarto.    

Todas as manhãs, saíamos a caminhar pela praia, abraçados, a molhar os pés na água. Almoçávamos na aldeia, passeávamos, mas o mar era nosso ponto mais frequente. Ficávamos horas e horas a olhar as ondas a quebrar, ou as gaivotas a voar, a sentir a quietude da vida e sem dizermos nada.

Na manhã do dia da partida, quando acordei, não a vi. A porta estava destrancada. Era cedo ainda. Ela saíra, sozinha, a caminhar. Preparei um café fresco e esperei um pouco, mas não havia sinal dela. Antes de ficar preocupado demais, vesti uma sweatshirt e saí a procurá-la na praia. Segui as poucas pegadas deixadas na areia, por um par de pés pequenos. Deviam ser dela. Encontrei-a sentada sobre um tronco caído, a olhar a linha do horizonte, com a expressão mais sonhadora que jamais havia visto.

Ela parecia diferente. Eu aproximei-me e sentei-me ao seu lado, sem dizer nada. Estávamos ambos a olhar o horizonte. Ela suspirou.

- Nunca chegamos a encontrar a garrafinha. Deve ter sido levada para mais longe… Isso é bom…. Acho…

Eu passei o braço por trás dela e puxei-a para mim. Ela recostou a cabeça no meu peito e ficou quieta.

- Queres falar sobre isso?

- Não.

Respeitei sua privacidade e seu secretismo. Ela não acreditava que eu pudesse compreender a fantasia que criara e a mensagem que, talvez, nunca viesse a saber o teor que continha. Levantei-me e convidei-a para caminhar de volta, para comer alguma coisa.

 - Podemos ficar um dia a mais? Quero ter certeza que não vou encontrar a garrafinha destruída, na praia.

Eu levantei o sobrolho e ela fez um muxoxo.

- Por favor…

- Não era este o plano, mas tudo bem. Temos que ver se podemos ficar na kitchenette por mais esta noite.

Ela deu um salto e, sorrindo, abraçou-me, beijando-me a face.

- Obrigada.

Eu tentava ser um pai complacente, desde que ela perdera a mãe, fazendo-lhe algumas vontades e restringindo outras. Ela não era muito exigente, mas o mar era uma questão à parte. Era um desejo que tinha desde menina, quando ainda acreditava em fantasias e dragões. 

Reconheci que eu mesmo não tinha vontade de voltar. Estava tão bem, ali na praia. Ela, portando-se, definitivamente, como minha única e legítima filha, demonstrou uma afinidade descomunal, com um elemento com o qual entrava em contacto pela primeira vez. O mar era nosso elemento natural. Estava no nosso sangue, sem dúvida alguma. 


O meu avô teria orgulho da bisneta.