sábado, 30 de agosto de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 3: Perseguição)


Agarrado à mão da mocinha de olhos verdes muito claros, o homem tentava não perder o contacto com ela, enquanto mergulhavam, num imenso e escuro vazio, para além do fundo do baú. Os dois caíram por uns milésimos de segundos e, depois, como se sugados por um poderoso aspirador, foram arrebatados para cima, com uma violência extraordinária, na direção de uma luz muito fraca, à uma boa distância de onde estavam.

A ‘queda’, porém, foi amenizada, após uns poucos segundos, como se houvesse um campo de força que controlasse, convenientemente, a velocidade com que viajavam. Ele logo percebeu que estavam a chegar perto do seu destino. Olhou para cima e deu-se conta que uma grande sombra surgia sobre as cabeças deles, por trás da ténue luminosidade.

A sombra definiu-se melhor e ele percebeu que, acima deles, erguia-se uma cidade completa, totalmente invertida. Sentiu-se com se estivessem caindo, em câmera lenta, no meio da mesma.

Ao atingir o solo, num amplo pátio de formato retangular, teve a impressão que todas as coisas invertiam, como se fosse normal aquela mudança na órbita. Talvez, se pudessem ser vistos de fora, eles ainda estivessem de cabeça para baixo, mas ele já não tinha certeza de nada…

- O que aconteceu?

A mocinha riu.

- É assim mesmo. Não há explicação plausível e coerente, do ponto de vista do mundo onde vives, mas tens que abrir a mente, porque o que vais ver por aqui, vai contra muitas coisas em que acreditas…

Ele não tinha ideia do que ela estava a dizer, mas tinha a forte impressão que devia preparar-se para muito mais surpresas. Ajudava-lhe o facto de ser imaginativo, mas ele sabia que sua natureza não seria suficiente firme e forte para o que viria a seguir.

Os dois atravessaram o pátio e chegaram a um edifício, que tinha uma fachada ladeada por dois grupos de colunas em formato clássico grego, no rebuscado estilo coríntio, no alto de uma série de degraus de pedra bege polida. Um grande portal exibia uma pesada e escura porta, que abriu-se automaticamente com a chegada deles, mas sem escancarar mais que o suficiente para passarem. Ele mal havia percebido que a moça trazia um pingente, de pedra azul, talvez de lápis-lazúli, no pescoço e que este exibiu uma luz – um flash momentâneo, que apagou-se muito discretamente.

- Daqui para frente tu deves seguir sozinho. Já não sou mais necessária por cá. Eu ainda sou uma aprendiz de guardiã. Tenho outras tarefas a executar, agora.

Ela virou-se e deixou-o no grande hall minimalista também da mesma pedra bege da escada do lado de fora, praticamente sem nenhuma decoração, a não ser as figuras esculpidas na porta ainda entreaberta, pela qual saiu silenciosamente. O homem olhou à volta e avaliou o local com olhos curiosos, tentando captar algum detalhe, que pudesse passar despercebido, mas não via nenhum. À sua frente, no fundo do hall, havia uma outra porta, com os mesmos detalhes esculpidos, incrustada num pequeno portal de passagem, como se fosse a entrada de um corredor. Devia ser por lá que ele tinha que passar.

Deixado sozinho, ao caminhar, seus passos ecoaram como se estivesse num grande templo. Sentiu um súbito desconforto no estômago, mas continuou com firmeza. Quando chegou à porta, percebeu que não havia maçaneta, nem batedor. Esquadrinhou, à procura de uma abertura, um ponto onde percebesse uma chave ou coisa parecida, mas não havia nada. Resolveu que o melhor deveria ser bater, para fazer-se anunciar.

Estava com a mão levantada e fechada, pronto a bater com os nós dos dedos na madeira esculpida, mas um leve sibilo chamou-lhe a atenção e ele deu um passo para trás. Foi então que percebeu que a sala toda, ao redor dele parecia ter o chão coberto por uma fina névoa branca. Seus pés já estavam escondidos pela estranha nuvem de vapor, que começava a ganhar o ambiente por completo. Ele não sentia cheiro de qualquer composto químico, mas sabia que aquilo poderia ser muito mais perigoso que ele pudesse prever. À sua volta pouco se via claramente e a temperatura havia baixado momentaneamente. Seu coração estava acelerado e ele deu-se conta que havia caído numa armadilha. 

Decidiu que tinha de voltar pela porta por onde entrara. Começou a percorrer o caminho de volta, com passos ligeiros e sentindo que a nuvem espessava cada vez mais. Já não via mais nada à sua frente, mas seu instinto dizia que tinha que alcançar aquela porta, a todo custo. Ouviu outro sibilo atrás de si e teve medo. Acelerou o passo, tentando controlar o desespero que crescia de maneira exponencial dentro de seu peito. Apurou os ouvidos e desconfiou que alguma coisa arrastava-se pelo chão, como se estivesse ao seu encalço. Ele estava em perigo e não conseguia ver a porta, no meio da névoa na qual estava imerso.

Alguma coisa passou por ele, movendo a névoa e formando um redemoinho ao seu lado. Seu coração deu um salto. Ele já devia ter alcançado a porta…

Parou.

Tateou o espaço à sua frente, com medo que fosse chocar-se contra a parede sólida. Ouviu, então, o sibilo mais alto, só que desta vez bem à sua frente. Algo muito frio roçou a ponta dos seus dedos e ele, encolhendo-se, deu um passo atrás. Já não era somente impressão sua. Havia alguma coisa a mover-se bem próximo dele. Virou-se e pôs-se a correr, na direção oposta e como se sua até então insossa vida dependesse somente daquilo - o que era a mais pura verdade...

Correu desesperadamente, mesmo sem conseguir ver nada à sua frente. De repente, bateu com a ponta do pé em alguma coisa e caiu para a frente, sentindo o chão faltar-lhe completamente por baixo de si e ele a cair num imenso vazio.

***

Caiu por uns longos segundos, sem conseguir ver muito à sua volta, até que sentiu o impacto contra o que pareceu-lhe ser a superfície da água e seu corpo ser envolvido completamente por uma fria sensação. Como não caiu com os pés juntos, mas com o corpo meio de frente, o choque na água foi bastante doloroso e ele sentiu-se a afundar. Entrou em desespero. Sabia que tinha de voltar à tona, o quanto antes, por isso começou a debater-se para ir na direção da luz que via por cima de si.

Por sorte, não pareceu-lhe haver-se machucado… mas sentia-se todo dolorido. Um gosto estranho invadiu-lhe a boca, como há muito não sentia. Lembrou-se de uma ocasião, na sua infância, quando caiu da janela da sala, sobre o cimento da calçada. O gosto que sentiu e aquela sensação de confusão e atordoamento, eram os mesmos. Devia ser sabor a sangue ou outra defesa qualquer do corpo. Tinha que apressar-se a sair dali. O oxigênio em seus pulmões já praticamente não existia.

Quando alcançou a superfície, sua aflição era evidente e ele inspirou com força e com um brado de desespero. Teve mesmo muito medo de não conseguir sair da água com vida.

- (A queda foi grande...)

O pensamento era quase ingênuo.

De repente sentiu-se puxado pelos braços e ser largado no piso de granito, ao lado de um poço, de boca bastante larga, no meio de uma estranha e enorme sala, ladeada por uma série de colunas, no mesmo estilo daquelas que já havia visto. A luz era muito parca naquele lugar.

- (Lugar estranho para ter-se um poço...)

Ao fundo via o que parecia ser uma abertura para um longo corredor.

Ainda estava a tentar localizar-se, quando ouviu um murmúrio. Era uma voz calma, mas aparentemente conhecida. Pensou estar delirando…

- Podes levantar-te sozinho?

- Ahn? Acho que sim…

Respondeu por instinto, tentando focar seus olhos na figura agachada à sua frente, que estendeu a mão, para ajudá-lo, mas o homem levantou-se, devagar, sem auxílio.

O homenzinho sorriu. O outro reconheceu os detalhes do rosto e da boca, assim que conseguiu vê-lo bem. Era o personagem que havia visto anteriormente no bar, no incidente com a borboleta.

- Eu já devia saber.

Ele balançou a cabeça, afirmativamente, ainda sorrindo.

- Não esperava outra coisa de ti. Tivemos que dar uma volta grande, para trazer-te cá, mas acreditamos que foi para o melhor e para levantar menos desconfianças.

O homem ainda estava meio confuso. Não tinha a mínima ideia do que o estranho homenzinho quereria dizer, mas lembrava-se bem porque cruzara o portal. Ou o Universo brincava consigo, ou o acaso havia sido muito bem manipulado por alguém ou alguma coisa, para trazê-lo até aquele lugar. Um quase profano e paranoico pensamento formou-se em sua mente e ele apressou-se em expressá-lo.

- Foi tudo uma grande artimanha, para trazer-me cá, não foi? Nada do que aconteceu foi por acaso, não é mesmo? Vocês plantaram estas pistas todas, propositalmente, para conseguir com que eu viesse cá e trouxesse o que vocês queriam, afinal, não foi? Até aquela entrada estranha e a perseguição na sala cheia de névoa…

- Não exatamente. Quase tudo foi proposital. Não contávamos com a névoa e a perseguição, mas por sorte, caíste no poço. Assim estás a salvo, por enquanto. Mas ela não vai descansar enquanto não vier ao teu encalço. Temos que tentar proteger-te…

- Ela? Ela quem?

- A Sibila. Ela sabia que tu vinhas e estava mais preparada que pensamos. E ela quer o mesmo que nós. Conseguiste trazer o que te foi pedido?

Ele olhou o homenzinho, sem responder e a pensar na conversa que havia tido com outros dois personagens, há uns dias atrás.

***

Sua curiosidade costumava colocá-lo em situações inconvenientes, quando era mais jovem. Por uns tempos, achou que havia controlado sua tendência, mas pelo jeito tinha tido uma recaída, pois não conseguia controlar-se e afastar-se, antes de meter-se em complicações – o que fatalmente acontecia…

- O preço pode parecer baixo, mas vais ter que levar pessoalmente, pois nós não podemos chegar até aquele lado... ainda mais com isso...

O homem de casaco cinzento e olhos azul-acinzentados apontou para a mão do outro que, na hora, pensou que a tarefa seria fácil, afinal não ia custar-lhe mais que alguns minutos da sua vida. E ainda ia poder fazer uma viagem, no mínimo, inusitada. Já havia decidido tirar uns dias de férias e não tinha grandes planos. Pensou que a “aventura” ia ser providencial e aceitou o desafio, quase sem pensar.

- A viagem pode não ser tão breve e nós não podemos fazê-la agora. Não estamos totalmente seguros. Corremos sério perigo e podemos star sendo vigiados. Tem que ser alguém que não levante suspeitas...e que nos permita controlar o tempo entre a saída e a entrega...

- Mas eu também não estou totalmente seguro… Ou pelo menos acho que não. Eu não tenho a mínima ideia de como chegar lá. Como posso estar pronto para fazer uma viagem destas, afinal?

Eles se entreolharam e sorriram. Desta vez não havia sido impressão sua. Foi quando ele percebeu que seu destino estava a ser manipulado.

- O mapa servirá bem para mostrar a entrada. Nós temos que garantir que chegas até lá e que ninguém.. ou nada... interfira até que seja feita a entrega.

Algo não estava bem explicado naquela história. Ele sentiu um incômodo no estômago.

***

O homenzinho parecia exultante. Estendeu a mão na direção do outro, à espera que lhe desse o que o trouxera a aquele lugar. O homem meteu a mão no bolso da calça e tirou dali uma pequena caixa metálica, decorada com detalhes de prata batida, que entregou ao seu anfitrião.

- Espero que não se tenha perdido nada. Não contava com a queda no poço…

Disse-lhe aquilo e olhou para suas roupas completamente molhadas. Sentia-se desconfortável e com o nariz a pingar. Deu um espirro e disse que precisava livrar-se daquelas roupas molhadas ou aquecer-se, urgentemente. O homenzinho assentiu e conduziu-o para um corredor, até onde havia uma série de portas, uma das quais dava para uma espécie de quarto de hóspedes.

Ele deixou-o só, por tempo suficiente para trocar de roupas por outras que haviam sido deixadas no aposento, numa espécie de armário. Havia ainda uma cama e uma casa de banho com banheira. Parecia um pequeno apartamento de hotel: limpo, confortável, mas bastante simples. O homem despiu-se das roupas molhadas, pendurou-as na casa de banho, secou-se e saiu de volta para o quarto. Sentiu-me subitamente cansado. A cama convidava-o, mas ele tinha que resistir. 

Um click na direção da porta fê-lo voltar à realidade. O homenzinho entrou, com a caixinha na mão. Estava sorridente e com os olhos a brilhar.

- Está em perfeito estado…. E o conteúdo também. A água, felizmente, não estragou nada.

- Fico feliz em saber. Minha parte do acordo está cumprida.

Ele sorriu.

- Gostaste do aposento? Estás mais confortável?

O homem percebeu que o outro não respondeu e desviou do assunto, mas fingiu entrar no jogo dele, ao invés de mostrar-se incomodado.

- Sim. Se não tivesse passado pelo que passei há uns minutos atrás, diria que estava num hotel comum, mas sei que as coisas aqui podem não ser o que aparentam à primeira vista.

Olhou para a caixinha na mão do seu anfitrião, que não desviou os olhos dos seus.

- É assim mesmo. Não há explicação para tudo, mas tens que abrir a mente, porque o que vais ver por aqui, vai contra muitas coisas em que acreditas…

- Dèja vu?

O homem pensou na frase que já ouvira quando teve o primeiro contacto com aquele mundo. Mas o homenzinho foi um pouco mais adiante e continuou.

 - …Mas podes ter certeza que teu cérebro logo habitua-se com esta nova realidade… Nem tudo é o que aparenta ser…

Por incrível que pudesse parecer, aquela era uma verdade incontestável. O homenzinho abriu a tampa da caixinha e, com as pontas dos dedos, tomou um dos pequenos objetos contidos nela.

O outro preparava-se para aceitar, quase de bom grado, algumas coisas que pareceriam absurdas, anteriormente, no mundo de onde viera.

***

Quando saíram de volta ao corredor, o homenzinho vestido de castanho-escuro tinha um sorriso largo na face e os olhos a brilhar, de satisfação. A parte principal da tarefa havia sido cumprida e ele exultava.

Faltava ainda a contraparte, que o outro homem esperava que também fosse cumprida pelo seu anfitrião. 

Viraram para o lado oposto de onde inicialmente havia chegado e ele foi conduzido por um outro grande hall que não tinha nenhuma decoração, além de mais colunas num estilo grego e que abriam-se para uma espécie de jardim, na parte de trás. Ele tinha a impressão que havia passado por um lapso de tempo. O minimalismo na decoração do edifício contrastava com a pulcritude e a riqueza diversificada e pujante do jardim. 

Havia uma espécie de trilha, que fazia uma curva pelo lado esquerdo e que conduzia até uma área coberta, que lembrava uma estufa erguida no centro de um horto botânico.

Uma vez lá, o homenzinho depositou a caixinha sobre uma mesa e, sem olhar para o outro, abriu-a e despejou o conteúdo da mesma sobre a madeira nua. Sua satisfação era evidente.

Um ruido por trás da vegetação chamou-lhes a atenção e o homem de cabelos castanhos voltou-se, bastante assustado.

- São mangustos. Não há nada a temer.

- Mangustos? Aqui?

Ele riu, um tanto sem jeito, depois disse, com ar mais sério:

- Servem de guardiães deste local. Esta área é protegida, mas nunca se sabe os perigos que podemos enfrentar. Já foram encontrados muitos destes completamente destruídos e o equilíbrio depende deles. Os seguidores da Sibila são perigosos e traiçoeiros.

- Foi por esta razão que eu tive que trazê-los?

- A devastação coloca em risco nossa espécie e nosso mundo. Olhe aquilo.

O homenzinho puxou a folhagem para o lado e mostrou uma área bastante devastada, para a surpresa do outro, à uma distância muito próxima de onde estavam. Um outro ruído assustou-o. No meio da vegetação à volta deles, algo pareceu arrastar-se e ele ouviu um silvo já conhecido seu. 

Os mangustos correram para o meio da área e pareceram atacar alguma coisa. Seguiu-se um guincho mais alto, como se fosse de dor e ele viu os olhos do homenzinho apertarem. Um dos guardiães foi jogado perto dos pés dos dois homens, com um ferimento a sangrar no pescoço. O homenzinho recolheu os pequenos casulos e retornou-os à caixinha metálica, puxando o outro pelo braço e correndo por dentro do horto, na direção do edifício, com a esperança na palma da mão e apertando-os contra o peito.

- A segurança foi violada. Estamos em perigo. Corra!

O homenzinho era mais rápido que o homem da cidade e tinha mais motivos para correr. O outro foi atrás, tentando manter-se o mais próximo dele que pode. Antes que chegasse de volta ao jardim do edifício, ouviu o silvo muito próximo de si e olhou para trás. Uma sombra pareceu esconder-se na folhagem. Ele virou-se e correu, desesperadamente. Aqueles poucos segundos em que distraiu-se foram suficientes para perder seu anfitrião de vista.

- (Ele devia estar bem aqui à minha frente...)

Mas ele estava enganado em seu pensamento.

Ouviu muitos ruídos misturados no meio da vegetação e começou a entrar em pânico. Tropeçou numa raiz e caiu, com as mãos na sua frente, a tentar proteger o rosto. Levantou-se o mais rápido que pode e pôs-se a correr, mas já era tarde. 

Alguma coisa enlaçou-se nas suas pernas e ele caiu novamente, desta vez com o rosto contra o chão e perdeu toda a noção do que acontecia, quando a luz apagou-se completamente à sua volta.


***

sábado, 23 de agosto de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 2: Estranhos)


Da penumbra da escada onde estava escondido, o homem podia observar bem o que acontecia no piso térreo, mas ao mesmo tempo tinha dúvidas se estava mesmo a ver ou se estaria imaginando coisas.

O velho homenzinho estava de pé, próximo a uma porta quase imperceptível, quase camuflada, na parede oposta à saída principal,  por trás do lance de escadas, onde o outro espreitava, com interesse e espanto. Ele, então, levantou a machadinha à altura do rosto e segurou-a, concentradamente, próximo à boca.

Em seguida, abriu a boca, que alargou-se enormemente, como o homem nunca havia visto ninguém fazer antes, abocanhou a lâmina da machadinha, por completo e, quando retirou-a, aquela estava limpa, já sem nenhum sinal do inseto que nela jazia há poucos segundos atrás.

- (Que diabos está acontecendo ali? Como é que ele conseguiu fazer... Aquilo não pode ser nada normal...)

O homem deixou aquela reflexão formar-se em silêncio e sufocou sua admiração, tentando não gritar, mas deixou escapulir um som abafado. O estranho levantou a cabeça e olhou para onde ele estava semiescondido, mas já não incógnito.

Ele saiu da sombra da escada e deixou-se ser visto, sem falar nada. O homenzinho, então, disse, sorrindo e com um genuíno ar benevolente, ao perceber que o outro parecia bastante perplexo:

- Ah! Eu sentia que não estava sozinho...

Mas o homem teve um certo medo do estranho homenzinho, que tinha uma característica tão incomum. As coisas não estavam correndo muito bem para o seu lado. Sem saber o que dizer, ele desculpou-se, mais por temor do que por educação.

- Eu sinto muito. Não quis ser indiscreto. O que vi, foi, realmente, um acidente...

- Não te preocupes. Não há realmente um problema em conheceres o meu segredo!

Aparentemente o velho não estava nada preocupado em haver-se revelado ao estranho que o mirava, sem realmente compreender. O que aquela aparente tranquilidade significava, entretanto, o homem de cabelos castanhos não sabia exatamente. Começava a desconfiar que podia não ser nada bom para si.

Secretamente, lá no fundo de sua mente, o homem perguntou-se que novo personagem seria aquele.

- (Que tipo de criatura seria aquele homenzinho estranho? Será que estava imaginando coisas? Teria sido, de alguma maneira, o efeito do vinho?... E eu nem bebi mais que uma taça daquele vinho verde, nem sinto-me minimamente bêbado...).

O velho ainda sorria, olhando para ele, com ar interessado e, provavelmente, ainda a estudar as suas reações.

Um ruído, vindo do topo da escada, porém, desviou-lhe os pensamentos e a atenção da cena ainda a desenrolar-se à sua frente. Alguém, com passos bastante pesados, começava a descer o primeiro lance de degraus. O homenzinho olhou o outro e disse, com a voz calma e baixa, mas em tom de aviso, antes de sair pela porta lateral, quase escondida por trás de uma pilha de barricas.

- Tome bastante cuidado... tenha muito cuidado mesmo! Eles não são, definitivamente, o que parecem ser. De alguma estranha maneira, creio que ainda nos voltaremos a encontrar…

Para falar bem a verdade, o homem de cabelos castanhos já nem tinha certeza do que realmente era e do que apenas parecia, naquele momento.

Quis seguir o velhinho, mais para proteger-se do que propriamente ir atrás dele, mas a abertura, pela qual o bizarro personagem passou, não tinha maçaneta e fechou-se muito rapidamente. Ficou sem saber o que fazer, a não ser esconder-se, para não ser visto. Esgueirou-se por trás das prateleiras e das barricas - umas de azeite, outras de vinho - no fundo do piso, por trás da pesada e escura escada e esperou, com os olhos atentos à porta da saída principal.

Sabia que sua presença ali só poderia levantar suspeitas e uma série de questionamentos, para os quais ele não tinha explicação plausível, além de sua curiosidade fora do normal e da sua tendência de meter-se em situações confusas e complicadas, inadvertidamente.

De onde estava, observou que o homem que passara era bastante forte e vestia um casaco feito de uma espécie de couro muito escuro de réptil, talvez crocodilo, mas ele não tinha certeza, já que não era adepto daquele tipo de material para casacos ou, mesmo, para roupas de qualquer espécie. O tal brutamontes era o mesmo homem que o havia encarado e não tinha ares de bons amigos. Desejou, secretamente, que o estranho de pele azeitonada e ar hostil não o visse.

O homem, porém,  ao chegar à porta principal, empurrou-a, olhou para os dois lados, como se procurasse por alguém e saiu. Atrás de si, desceram os outros três e, sem falar, saíram para fora, seguiram o líder e foram pela calçada afora, provavelmente na direção do carro.

O homem, assustado, esperou ainda alguns minutos até certificar-se que já haviam-se afastado bastante, com os ouvidos muito atentos ao som dos passos, que desvanecia na distância. Saiu com cautela e, já do lado de fora, decidiu que tinha tido aventura demais por uma noite e sentiu um certo receio de ser confrontado pelos homens estranhos, uma vez mais. Apressou-se a dirigir-se ao seu carro, que estava um pouco distante. Procurou, mas já não viu o veículo preto, dos homens estranhos, no estacionamento. Ainda olhou, com atenção, à volta, para certificar-se que estava mais a salvo e seguiu, pronto a sair dali o quanto antes.

Estava com a chave na mão, quando ouviu o som de passos apressados atrás dele. Seu sangue gelou, mas ao virar-se viu apenas uma mocinha, com olhos verdes muito claros, a vir na sua direção. Ela disse, apontando para o bosque:

- Entra no carro, depressa. Aquele homem tem respostas e a indicação de como podemos sair daqui.

Reagiu meio por instinto, antes de pensar que já a havia visto antes. Era a mesma que havia esbarrado em sua cadeira e sorrido, há uns minutos antes, na esplanada na ribeira. Ele não tinha a mínima ideia do que ela queria dizer com ‘sair daqui’, quando entrou e sentou-se ao seu lado, no banco da frente, mas não perguntou nada. Contornou o estacionamento e foi na direção onde haviam avistado o tal homem, que parecia ter estado a procurar alguma coisa nos galhos dos pinheiros. Parou, no espaço entre o complexo de lojas e o estranho bar e esquadrinhou o local perto das árvores, com cuidado, pois já não o via. A mocinha fazia o mesmo.

Uma batida no vidro de sua janela deu-lhe um susto descomunal. Um homem, com olhos de um tom azul-acinzentado, estava ao seu lado, fazendo uns gestos, pedindo para entrar. Ele abriu, instintivamente, a porta traseira e deixou-o acomodar-se no banco atrás de si.

O estranho, realmente, tinha informações a dar. Além de reafirmar-lhe para ter cautela, repetindo o que já dissera, anteriormente, o homenzinho da roupa castanha, ele mostrou-lhe um item muito interessante, que tirou do bolso do velho casaco cinzento, que vestia. O homem teve a leve impressão que, apesar do calor, aquela devia ser a 'noite dos casacos', mas não mencionou nada.

O tal item era uma caixinha metálica, decorada com delicados arabescos de prata batida, que continha um velho pergaminho amarelado. Nele estava impresso um antigo mapa, que mostrava uma marca muito característica, bem onde havia um desenho, representando uma velha árvore, aparentemente oca, no meio de um bosque. Ao lado do desenho do centro, haviam uns números escritos a lápis, em vermelho. Aquelas últimas anotações deviam ter sido acrescentadas recentemente, pois estavam bastante vivas no papel visivelmente envelhecido e amarelado.

Por um instante pensou haver visto uma troca de olhares entre o homem e a mocinha sentada ao seu lado, mas poderia ter sido somente sua usual paranoia e desconfiança, causando-lhe uma estranha impressão. Ele estava completamente tomado pela curiosidade acerca do objetivo daquela estranha situação e queria saber até onde o tal mapa poderia levá-lo.

Mas o mapa tinha um preço, obviamente. O homem  ficou bastante surpreso quando o estranho lho disse.

Aquela, porém, era apenas uma das razões que o traziam ali…

***

Estavam no meio do bosque, procurando seguir as indicações contidas no mapa. O homem tinha o GPS de mão e procuravam a tal árvore oca que, no pergaminho, estava marcada com as coordenadas de localização, que haviam sido anotadas à mão, recentemente. Não deveria ser difícil chegar ao nosso destino em breve, pois a aparelho indicava que estava localizado há poucos metros, bem à frente deles.

A árvore, uma velha figueira, erguia-se sobre um pequeno elevado, coberto de relva e folhas secas, numa linha á esquerda de onde estavam, fora de uma trilha quase nunca usada, por onde haviam seguido. De onde estavam, não viam nada demais, mas ao contornarem, viram uma abertura, quase não suficientemente grande para um homem do seu tamanho passar. Estava coberta por umas lianas e muito musgo, tornando-a quase impercetível. Afastou a cortina natural com as mãos e passou pela abertura, sendo seguido pela mocinha.

O tronco era realmente todo oco e, por dentro, parecia bem maior que percebido por fora. A cerca de uns 45 graus à esquerda, via-se um pequeno declive, com uma abertura para um pequeno portal, bem no final do mesmo. Uma outra mocinha, também de olhos verdes muito claros, aguardava-os, logo que atravessaram o limiar do portal. Ela tomou-lhe a mão e disse-lhe que o Mestre precisava falar com ele. O homem não sabia quem era o tal Mestre, nem o que ele poderia querer, mas tentou convencer quem o havia trazido até ali a continuar aquela estranha jornada consigo até o fim.

- Vem comigo, por favor.

- Não posso, ainda… Deves ir com ela.

Havia uma longa caverna, que ia abrindo e ficava um pouco mais alta à medida que desciam. O homem percebeu que a mocinha devia conhecer muito bem o local, pois sabia exatamente em quais galerias entrar. Sacudiu a cabeça, como se tentasse apagar o pensamento, pois era mais que evidente que ela sabia para onde estava a conduzi-lo. Depois de caminharem por muitos minutos, entraram por uma das pequenas aberturas laterais.

Após uma leve curva na caverna, num nicho quase imperceptível, havia um velho baú, depositado no chão, escondido num canto. Era de madeira castanho-escura e tinha um trinco de metal batido, representando o que pareceu-lhe ser alguma espécie desconhecida de réptil, em alto-relevo. A mocinha puxou o ferrolho para cima e levantou a tampa do mesmo. 

Antes que o homem se aproximasse o suficiente para inspecionar o que havia lá dentro, ela segurou-lhe a mão com firmeza e, com uma força descomunal, para uma miúda daquela aparente delicada compleição física, puxou-o para dentro da arca, com ela. 

Foi então que ele percebeu que a tal arca não tinha fundo...

***


sábado, 16 de agosto de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 1: Intro)


Uma brisa amena de final de Primavera soprava na esplanada à beira do rio, perto da foz. Ele havia saído do trabalho à hora mais ou menos certa - coisa bastante rara nos últimos tempos - e decidira beber uma taça de um suave e fresco vinho verde e relaxar um pouco, antes que o fim-de-semana começasse. Não estava interessado nos transeuntes, mas em olhar as águas a correrem na direção do mar. Aquela visão deixava-o relaxado e absorvia-lhe os pensamentos, levando sua imaginação para terras quase nunca dantes percorridas. Sentia a mente sensivelmente vazia. Não queria pensar em nada; só deixar os odores do fim da tarde preencherem suas narinas, o sabor do vinho fresco a aguçar-lhe os sentidos e os sons do anoitecer tomarem conta do ambiente à sua volta. Ele desligara a parte do cérebro que distinguia as vozes e conversas. Estava mais interessado nos outros sons, menos ouvidos na vida normal: o gralhar das gaivotas, a água a correr, um cão a ladrar ao longe, a peculiar e característica música da noite a chegar…

Um solitário saxofonista, vestindo um colete aberto preto sobre uma t-shirt branca e usando um chapéu coco, também preto, começara a tocar uma melodia bastante melancólica, cujas notas ele alongava com exímia destreza – quase como num ‘noturno’ - na calçada, bem próximo de onde o homem estava. A música sempre mexera com seus sentidos e aquela fazia sua imaginação vaguear, completamente solta e sem qualquer tipo de amarras.

Um grupo de jovens, provavelmente estudantes, aproximou-se em algazarra, rindo alto e fazendo-o voltar à terra. Uma das moças esbarrou no pé da sua cadeira, ao passar e, voltando-se, pediu desculpas, sorrindo e ficou a olhá-lo, sem seguir adiante. Tinha olhos muito claros e um sorriso encantador. Ele sorriu de volta e ficaram a olhar-se, por uns pouquíssimos segundos, até que alguém a chamou pelo nome.

- Elena! Vamos!

Ela voltou para o grupo e ele ficou a observar enquanto os jovens afastavam-se, ainda às galhofas. A maioria das pessoas trajava roupas leves, camisas de mangas arregaçadas, t-shirts ou blusinhas de mangas curtas. A temperatura estava por volta dos 23 graus Centígrados - o que, para o homem de meia-idade, bastante pálido e com ralos cabelos castanhos, já há muito tornando-se brancos à altura das têmporas, ainda era bastante calor – especialmente àquela hora do dia.

Levantou-se, pagou a conta e decidiu caminhar até o parking, que ficava a uma boa distância de onde estava, quase no outro extremo da movimentada ribeira. Uma fina faixa de luz ainda tingia o horizonte com cores quentes e fortes, mas o céu acima dele já exibia fortes matizes de índigo, salpicado de minúsculos pontos brilhantes. 

Quando desceu a rampa, já onde estava o carro estacionado, viu que um pequeno grupo de homens, vestidos com casacos escuros, que iam até a altura dos joelhos, caminhava na sua frente. Estranhou as vestimentas, já que não estava nem um pouco frio. Eles caminhavam, sem olharem uns para os outros e sem conversarem.

Alguém passou por ele, bateu contra seu braço e passou adiante, sem ao menos pedir desculpas. Viu que era um outro homem vestido da mesma maneira dos outros que caminhavam à sua frente e que apressava-se em juntar-se ao grupo. O estranho foi que eles não o cumprimentaram quando ele aproximou-se, nem ele, tampouco, ao grupo. Apenas continuaram a caminhar, lado a lado, sem se olharem, até um carro preto estacionado perto do seu. Os quatro estranhos entraram, quase ao mesmo tempo e quase automaticamente, cada um por uma das portas do veículo.

O homem olhava-os de uma maneira distraidamente interessada, se é que isto era, de alguma maneira, possível. Chegou ao seu carro mesmo a tempo de ver o outro veículo passar por ele e pela primeira vez percebeu o tipo que estava ao volante, já que era a única janela aberta e os outros vidros estavam levantados e eram cobertos por uma película escura. O condutor tinha cabelos muito negros e pele azeitonada, sem ser bronzeada e olhos parcamente emoldurados por quase inexistentes sobrancelhas. Ainda conseguiu ver que o outro homem, sentado ao seu lado, tinha características físicas bastante similares, mas não se pareciam um com o outro. Deviam ser da mesma origem étnica, pensou.

Um calafrio correu-lhe pela espinha quando percebeu que o motorista virou-se para fitá-lo, ao passar. Era o mesmo homem que esbarrara no seu braço, mas tinha uma expressão ameaçadora no olhar. O estranho havia reduzido a marcha ao aproximar-se e, assim que olhou o outro, acelerou e foi em direção à saída do estacionamento. O homem apressou-se em entrar no carro, já resolvido a sair dali o quanto antes. Seu sensor de perigo já estava a girar em amarelo.

Apesar de um pouco assustado pelo que vira, ele estava, também, um tanto intrigado com o incidente, afinal havia sido abalroado pelo sujeito e ele ainda decidira encará-lo, como se quisesse ameaçá-lo ou intimidá-lo. O sangue subiu-lhe à cabeça, quando pensou naquilo. Viu o veículo parado no semáforo à sua frente, mas o condutor furou o sinal, assim que percebeu não vir nenhum outro carro das ruas adjacentes.

Deviam estar com pressa, pensou. Com aquele tipo de condução, não admiraria se causassem um acidente e, entre dentes e em voz alta, desejou mesmo que se envolvessem em um. Era sua veia vingativa falando mais alto que ele. Observou-os subir a rua, esperou o sinal abrir e seguiu seu caminho, já entretido com suas músicas favoritas a tocar no CD player.

A alameda estava iluminada por fortes luzes amarelas, o que dava uma atmosfera surrealista ao local. Por uns instantes, esqueceu do sucedido há poucos minutos, pois adorava passar por entre as árvores, naquela região, a caminho de casa. Seu estômago roncou e ele deu-se conta que havia passado do horário usual do jantar. Havia estado a tarde toda em reunião e não tinha tido tempo de comer nem uma fruta. Estava com fome. Ele, agora, pensava somente no que iria preparar para comer, quando chegasse em casa.

De repente, um vulto saltou à frente do carro e passou correndo do lado esquerdo para o direito da rua. Ele pisou no freio, automática e violentamente. Por sorte não vinha ninguém atrás de si, que pudesse causar um inconveniente acidente de viação. Se o que cruzara seu caminho era um gato, devia ser um animal enorme, pensou o homem, ainda com o coração acelerado. Olhou para o lado direito, tentando distinguir se avistava qualquer sinal dele, quando viu o veículo preto estacionado num pequeno complexo de edifícios comerciais, ao qual nunca havia prestado atenção anteriormente.

Sua curiosidade acendeu-se novamente e, apesar de saber que não era a coisa mais certa a fazer, resolveu ir até lá, estacionando o mais longe possível do tal veículo preto. Por sorte, seu carro não era mais que um modelo dos mais populares, de cor bastante comum, que passaria quase despercebido, no meio dos outros ali estacionados, muitos da mesma cor cinzenta. Havia uma loja de conveniência, um pequeno restaurante ‘take-away’, uma lojinha de equipamentos informáticos e outras menores, perto de uma razoavelmente maior, de móveis e uma farmácia. Bem ao fundo, um tanto separado das lojas, havia uma construção diferente das outras, um pouco mais escura e rústica. Devia ser algum restaurante típico ou talvez até mesmo um bar. Perguntou-se por que razão nunca havia-se dado conta da existência daquele lugar. Percebeu que o conglomerado de estabelecimentos estava construído ao pé de um pequeno bosque, que havia no lado oeste e que dava, ao complexo, um certo ar de tranquilidade.

Estava ainda a olhar para o fundo e para o edifício escuro, quando viu o grupo de homens a caminhar com passos firmes e apressados, naquela direção. Ainda estavam vestidos com os casacos escuros, o que destoava dos outros transeuntes, que usavam trajes mais leves. A indumentária tornava-os bastante chamativos e inconfundíveis, como um grupo de pinguins a caminhar sobre o gelo extremamente branco.

Esperou que entrassem pela escura porta de madeira e foi atrás, um pouco hesitante, mas cheio de curiosidade . A construção era, por dentro, ainda mais sombria e rústica, que vista por fora. Era feita de madeira bruta e tinha dois lances de escadas firmes, separados um do outro por uma curva em noventa graus, com tábuas muito espessas, suportadas por fortes vigas de troncos brutos e cilíndricos, de cor muito escura, como se pintadas com um pigmento de sépia queimada. Ele subiu, com cuidado e constatou que no andar de cima havia uma espécie de bar.

Aparentemente, os personagens que havia seguido conversavam com um outro homem, que ele não conseguia ver claramente, já que os quatro estavam de costas voltadas para a porta, formando uma barreira à sua visão e o outro estava de frente para eles. Lembrou-se da forma com que o motorista havia olhado para si, com evidente hostilidade e decidiu que não podia deixar-se revelar. Eles estavam em maior número, de qualquer forma. Resolveu que o melhor a fazer, era mesmo sair dali o quanto antes. Deu meia volta e desceu as escadas, apressado, mas com cuidado, tentando fazer o mínimo barulho possível. Sua fuga foi subitamente protelada antes de chegar à porta de saída, lá em baixo, pois viu que alguém entrava por uma quase invisível porta lateral. Encostou-se na parede e pôs-se a observar, da penumbra, sem deixar-se ser visto.

Um homenzinho, visivelmente velho e vestido com roupas castanho-escuras, bastante surradas, acabara de entrar. Tinha a pele espessa e marcada, como a de um ancião, que trabalha ao sol, como os agricultores ou pescadores. Tinha olhos escuros, sobrancelhas muito espessas e lábios finos, quase inexistentes, numa boca larga. Trazia, pendurada do cinto, uma espécie de machadinha de lâmina estreita e chata.

Ele puxou-a do cinto e, sobre a lâmina, colocou uma pequena borboleta azul, morta, com as asas abertas, que estava embrulhada num papel pardo, que tirou de um dos bolsos do casaco de couro castanho.

O homem de cabelos castanhos, que ainda estava escondido, franziu a testa e arregalou os olhos, pois aquilo pareceu-lhe, realmente, muito estranho. 

Mas ele não estava minimamente preparado para o que veria na sequência dos acontecimentos. O que o homenzinho fez, então, deixou-o completamente boquiaberto… isso para dizer o mínimo.

***

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Como um Príncipe


Há exatamente um ano, ele fez sua viagem definitiva para o infinito. Foi sem bagagem. Embarcou leve e em silêncio. Não olhou para trás; olhou para mim, uma última vez, antes de partir para sempre... sereno... impávido... nobre…

Levou uma parte de mim com ele. Deixou atrás de si uma falta enorme e um vazio impreenchível.

Ele foi, com toda certeza, meu grande amor. Foi meu filho, meu maior amigo, minha grande paixão. Acompanhou-me por mais de treze anos, em praticamente todos os momentos, especialmente nos mais difíceis e só me trouxe alegrias, para além de uma paz sublime demais. Fez de mim, com certeza, um homem melhor e muito mais humano.

Escrever qualquer coisa sobre ele, hoje, é bastante árduo, sem ter os olhos cheios de lágrimas e a mente e o peito cheios de lembranças… todas lindas… mesmo porque todas as lembranças que eu guardo dele são mesmo as mais bonitas.

Tiger adorava estar onde eu estava. Tinha sempre que ter a certeza que não havia sido deixado sozinho. Gostava de usar minha cadeira, especialmente no inverno, quando eu ainda estava sentado nela, aninhando-se atrás de mim e empurrando-me cada vez que virava de lado. Deixava-me dar-lhe banho, uma vez por mês e escovar-lhe os dentes, duas vezes por dia. Adorava ter o corpo escovado, deitar sobre meu peito, brincar de esconder-se atrás das cortinas e das portas.

Esperava-me, invariavelmente, à porta, todos os dias. Às vezes, quando eu chegava em casa mais tarde que o normal, ele ronronava tão alto ao ver-me, que parecia que ia explodir, de tanta satisfação por ter-me de volta perto dele. Acalmava-se somente quando eu deitava a cabeça sobre seu ombro e acariciava, levemente, toda a extensão de seu longo corpo, ruivo e branco.

Meu tigre foi a melhor coisa que me havia acontecido. Ensinou-me muitas coisas, entre as quais, como viver com simplicidade e amar sem preocupações e sem quaisquer limites.

Ele tinha estilo; tinha porte; tinha presença. Foi um gato sem igual.

Passou por este mundo como um príncipe e como tal foi tratado. Foi amado, mimado, servido e respeitado como um igual...e como igual foi sempre considerado, porque éramos mesmo muito parecidos, em comportamento, apesar de todas as possíveis diferenças entre nossas espécies.

Era conversador e exigente. Claro que tinha um milhão de manias, mas eram quase todas toleráveis. Quando queria alguma coisa, era insistente. Não descansava enquanto não conseguia. A hora de dormir era sagrada. Precisava que eu desligasse a TV e apagasse as luzes. Passava uma vistoria pela casa toda e, somente depois, vinha para o meu lado, avisando quando entrava no quarto. Os horários das refeições também eram, obviamente, controlados, especialmente ao acordar e aos fins-de-semana.

Tiger era super carinhoso, sempre presente, sempre atento a tudo que acontecia à sua volta e, também e especialmente, a mim, seu brinquedo favorito.

Nasceu em África, morou cerca de seis anos no Brasil, veio a morrer em Portugal, depois de quase sete anos a conviver comigo nesta terra distante.

Meu tigre foi-se, para sempre, desta vida, mas estará sempre vivo na minha memória e no meu coração. Ele abriu-me a alma para uma espécie de sentimento que eu não sabia existir. Mostrou-me que o amor tem que ser assim, sempre: incondicional e ilimitado.

Saudades do meu príncipe... 

Ele será, eternamente, uma memória querida, que guardarei por toda a vida e que me fará, sempre, sorrir, ao ser lembrado!




sábado, 2 de agosto de 2014

Obliviar (Fase Dois do Esquecimento)


Do calor suave

da tua sublime boca,

eu bebo

um poderoso veneno:

frio, incolor,

e com um delicado

e doce-amargo sabor…

Uma estranha fisgada 

de dor

liberta-me

das melancólicas

e angustiantes garras

 das memórias sombrias,

que continuavam insistindo

em ascender

do meu imperecível passado.

Aquelas recordações,

algumas ainda mais vivas

do que outras,

começam lentamente

a dissipar-se

em uma bem-vinda,

acrómica e amena

névoa

de esquecimento,

que acaba,

eventualmente,

esvanecendo no ar

e recuperando-me da dor,

(mas não sem deixar

algumas das suas cicatrizes

mais dolorosas

e profundas)...

Chega de reminiscências

não solicitadas,

levantando vivas

das pálidas dunas

no deserto

da minha mente.

Chega de lembranças

de uma realidade,

que costumava ser boa

para absolutamente nada.

O que ficou foi, tão-somente,

um desolado vazio...

(o imenso

e confortável

vácuo do oblívio)...

Minha vida está, agora,

mais do que pronta

para ser reforjada  

e moldada,

uma vez mais,

à sua singular e distinta

forma e cor...

Por fim

E depois de tudo...


domingo, 27 de julho de 2014

Oblivion (Phase Two)



From the soft warmth

of your exquisite mouth,

I drink a powerful,

drab,

cold

and bitter-sweet poison

of forgetfulness.

An eerie sting

of pain

heals me

from the dreary

and throbbing claws

of gloomy memories

that keep on insisting

to ascend

from my abiding past.

Those memories,

some previously more vivid

than others,

then, slowly

start fading

into a sweet

and colourless haze

of welcome oblivion,

that ends up,

eventually,

vanishing into the air

and healing my pain,

but not without leaving

some of its deep scars…

No more unsolicited

reminiscences

coming up alive

into the pale

deserted

sand dunes

of my mind.

No more recollections

of a reality

that used to be good

for nothing at all.

There is now only

a desolate emptiness left…

the immense

and comfortable void

of Lethe…

My life is now

more than ready

to be shaped

and wrought

back again

into its unique

and distinct outline

and colour...

after all...