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domingo, 15 de outubro de 2017

O Décimo-Terceiro (Epílogo)


Uma estrela e dois pequenos planetas podiam ser vistos no céu, pela janela da Sala do Conselho, no Edifício Principal. Um homem sozinho contempla, sério e pensativo, a imensa escuridão, decorada com minúsculos pontículos de luz, brilhando no lado de fora, alheios ao seu pesar.

“Este mundo já está condenado pela mesmice e pela rotina. Vive-se por tempo longo demais, mas não é necessariamente uma existência com prazer. Não há um real objectivo em viver longamente, preservar a espécie, ou até mesmo o planeta. Se houvesse um acidente que destruísse esta civilização, que diferença o universo iria sentir? Qual a diferença que o passado poderia fazer? E se o tal acidente for em algum lugar do passado, antes mesmo da grande destruição? Será que fará mesmo alguma diferença?

Aqui, neste momento, não há nada que possa nos dar qualquer razão para orgulho ou para querermos viver. A existência é vazia. É tudo muito cinza e sem beleza. Não existem sentimentos. Para que manter essa coisa a funcionar?”

***

- Chega de ser mais um experimento. Chega de servir de cobaia para a criação de uma vacina estéril. Eu já não quero ser mudado. É isso que me faz um ser único, no meio desta multidão de iguais.

- Mas a mutação está bastante acelerada. Tuas costas estão cobertas destas manchas negras e brancas, que já se espalham pelo resto do corpo e tuas defesas estão em baixa. Não vais resistir muito tempo.

- É uma opção minha.

- Tu não tens esta opção, pelas regras… Nenhum clone tem… nestas circunstâncias…

- Eu sou David, o Décimo-Terceiro… Se as coisas tivessem sido diferentes, eu seria escolhido para ser o próximo Supremo, por ser mais forte e resistente, ou para viajar pelo Universo. Agora sou apenas uma aberração. É melhor deixar que a vida siga seu curso normal. … e vou viver com isso… enquanto for possível…

- O que pode ser por muito pouco tempo, agora.

- Que seja. A vacina não funciona, de qualquer maneira.

***

- Nós vivemos num complexo de planetas, que gira em torno de uma pequena estrela, que possui luz natural limitada, mas mantém o sistema a funcionar equilibradamente. A órbita do planeta em torno de si mesmo ocorre por um período menos longo que na terra, por razões óbvias. O tempo passou, então, a ter um conceito diferente. Como o dia tem menos horas, a contagem dos anos é, portanto, diferente. O controlo da vida neste sistema de planetas pertence a um grupo de cientistas, que formam uma elite intelectual.

- Por que usam a contagem dos anos como A.D.?

- Porque os fundadores quiseram homenagear a Terra, o planeta de onde vieram, originalmente.

- E para que servem os clones, afinal?

- Este pequeno planeta fica ao centro de um grupo de outros planetóides de menor tamanho, cada qual com sua própria particularidade. O que o faz habitável é a característica única e pouco comum de possuir oxigénio, embora em quantidade muito menor que no planeta Terra. O elemento, vital para vida humana, é tratado, filtrado e usado dentro das estruturas protegidas, que chamamos de Estações. Esta característica não é a única coisa que temos em comum com o nosso distante antecessor da outra galáxia. Um manancial de líquido, com composição semelhante à da água, que corre por rios subterrâneos, é colhido, reprocessado e transformado em água potável e, então, disponibilizada aos habitantes, de forma natural. Mas estamos a enfrentar um novo problema: o manancial é limitado e está escasseando rapidamente. Equipas de pesquisa já foram enviadas em busca de alternativas, pela galáxia, mas até agora, nada real. Estas pequenas equipas, são, na sua maioria, compostas por clones seleccionados e treinados especialmente para isso. Uma unidade robótica avançada acompanha a tripulação de cada nave que parte. No momento, temos umas poucas, porque não conseguimos criar clones em quantidades suficientes.

- A clonagem é, na verdade, uma realidade e é inevitável, sendo praticamente a única forma de reprodução, neste momento. O processo é interrompido, a partir do momento em que verificamos que a resistência do corpo a qualquer tipo de problemas, físicos ou mentais, está praticamente garantida. Depois de aplicada a vacina, deixa-se que algumas características amadureçam sozinhas, formando indivíduos diferentes, dentro dos casulos, como crisálidas, nas incubadoras. Não usamos úteros humanos. Nem todos chegam ao fim do processo e sobrevivem, porque a vacina é bastante agressiva, mas é necessário que assim seja. Quando estão prontos, os mais fortes são seleccionados e reportados ao Supremo, que os inspecciona, juntamente com o Conselho, para mandá-los para o Edifício Principal. O planeta é habitado por uma raça única, que fala uma língua única. Os novos humanos são praticamente desprovidos de pelos, tendo sua caixa craniana aumentado em tamanho e seus corpos diminuído em proporção. Depois de bem treinados, farão parte das equipas seleccionadas pelo Conselho, para explorar a galáxia. Os outros, de uma linhagem mais regular, porém resistente, são enviados para a produção de Oxigénio. A densidade demográfica é mantida sob estrito controlo. Os nossos recursos são limitados, por isso temos que usá-los com eficácia.

- Isso é incrível. E tudo começou com base na minha pesquisa, num passado tão remoto…

O chefe dos cientistas riu, meio sem graça. O homem parecia não ter plena consciência da importância que sua pesquisa teve no desenvolver daquela raça, que representava, de uma forma ou de outra, o futuro da humanidade. Não se podia condená-lo, afinal, levando-se em consideração que mais de vinte e cinco séculos se haviam passado desde então.

- Sim, doutor. Tudo isso com base na sua preciosa pesquisa… num passado remoto e num planeta um bocado diferente deste.

***

- Leona! Preciso que vocês venham até o laboratório imediatamente. Aconteceu uma coisa muito estranha.

- Que coisa?

- Melhor virem ver… eu não sei o que dizer…

Ao chegarem constataram que o laboratório estava vazio, exceto por uma Monarca, pousada na parede.

- Como isso veio parar aqui?

Leona riu.

- Eu não sei, ao certo, mas tenho uma ideia de onde possa ter vindo… Um certo clone… que viajou ao passado e que se encantou com uma revoada de borboletas…

***

- O surto está incontrolável. Os clones perecem muito rapidamente e a linha já não dá conta de produzi-los, para suprir as necessidades, devido ao período de incubação. A continuação da vida está condenada.

- Tive uma ideia. Ainda temos a Monarca connosco?

- Sim. Mas para que serve uma borboleta, agora?

- Foi como o estudo começou. Talvez tenhamos uma hipótese…. Vamos ter que recomeçar o processo todo. Isolamos o ADN e produzimos uma nova vacina. A original não funciona mesmo. Temos que começar do nada. Houve alguma coisa neste meio tempo, que deixou de funcionar e não temos mais tempo para tentar reparar. Temos que fazer tudo novo.

- Deixemos de tentar recuperar o irrecuperável e fazer tudo, do começo, outra vez.

- OK. Mas pode levar muito tempo, até conseguirmos chegar ao ponto em que estávamos, antes do incidente.

- Talvez. Pelo menos saberemos o que fazer…

***

O Supremo olhava para as manchas negras e brancas a cobrir seu corpo magro e pálido. Elas pareciam cobertas de uma densa camada de pelos, muito suaves ao toque. Sentiu uma pontada de dor na cabeça. Sabia que suas defesas estavam comprometidas, por consequência da anomalia e por já não tomar as vacinas.

Ele suspirou e olhou para o céu daquele planeta desolado, tão insignificante, no meio do infindo Universo, tão pouco conhecido, apesar de todas as evoluções, após o Caos Primeiro, e decidiu que estava em tempo de tomar uma decisão radical.

“Não era isso que eu queria. Eles estão muito perto de chegar à uma solução. Se desconfiarem de alguma coisa, vão-se voltar contra mim. Mas nunca vou deixar que eles saibam o que eu fiz. Agora vou ter que dar um jeito, em definitivo, nesta situação, antes que seja tarde demais.”

Programou o computador principal, que comandava todas as unidades, para duas acções. A destruição era absolutamente necessária. Concluiu o comando e sentou-se, relaxadamente, como nunca havia feito, desde que se havia tornado o Supremo.

“Genocídio e suicídio. Fiz bem em sabotar a produção das vacinas, desde que descobri que a anomalia podia ser uma grande oportunidade, para o extermínio desta raça. Isso tudo vai parecer um acidente, mas para quem terei que explicar algo, afinal? Não sobrará nada! Que grande plano!”

Ele fechou os olhos e esperou. Em poucos segundos, o planeta implodia e, em seguida, explodia completamente, numa sequência predeterminada, tonando-se uma imensa nuvem de detritos, já desprovida de qualquer sinal de vida, viajando em alta velocidade pelo espaço, em todas as direcções.

Uma cápsula solitária vagava, à deriva, não muito distante de onde o asteróide existia, poucos momentos antes. Em seu interior, um tubo de metal trazia informações preciosas sobre uma raça de humanóides, que viveu em um pequeno e árido planeta e que deixara de existir. A cápsula é lançada, juntamente com os detritos do planeta destruído, pelo vazio silencioso e escuro do espaço, sendo puxada para dentro de uma fenda no meio do caos, em meio a um clarão e, a seguir, desaparecendo completamente.

***

Numa praia quase deserta, dois rapazes caminhavam lado a lado, cada um com uma lata de cerveja na mão e conversando tranquilamente. Um clarão riscou o céu, vindo da frente deles, chamando-lhes a atenção, especialmente porque o céu parecia limpo, estrelado e sem previsão de chuva. O som de algo grande, caindo no mar, bem atrás de onde vinham, fê-los parar e voltar.

O estranho objecto metálico boiava na água salgada, balançando ao sabor das ondas, ainda fumegando.

Era um dia quente de Verão, no Anno Domini 2018.


***

sábado, 23 de setembro de 2017

O Décimo-Terceiro (Parte 4)


Leona olhou para o pai e David, o décimo-terceiro clone, que corriam junto dela, pelo meio do bosque, sem pensar em outra coisa, além de salvar suas peles. Ela era mais rápida e conhecia o caminho, por isso assumiu a responsabilidade sobre a segurança deles. Por sorte, os homens armados ainda não os haviam detetado, mas poderia ser, somente, uma questão de tempo.

Ouviram mais tiros. Leona não parava de pensar no irmão. Enquanto ela os ouvisse, por mais perigoso que pudesse ser, entretanto, sabia que ele estaria, provavelmente, vivo. O silêncio é que poderia ser mau sinal. Ela tinha medo de pensar no pior. Sua preocupação era, agora, correr, sem parar.

- Temos que chegar à entrada dos túneis. Lá será mais fácil desaparecermos. Tomem cuidado, mas não parem.

Ela sabia que exigia demais daqueles dois seres, mas tinha que ser forte pelos dois, que estavam praticamente chegando aos limites de suas forças. Um pensamento passou por sua cabeça e ela tentou arrancá-lo da mente, mas não era fácil…

“O que será que este surto de adrenalina vai causar ao corpo do clone? Ele já está em estranha mutação. E se isso acelerar algum processo?”

Mais um tiro. Desta vez pareceu estar mais perto deles. Ouviu passos apressados. Estavam quase na entrada dos túneis. Leona não olhou para trás. Mantinha o pai e David, sob sua total atenção. Tinha que se concentrar em deixá-los a salvo, de qualquer maneira. O futuro e o passado corriam junto dela.

Ao passar pela entrada dos túneis, Leona não hesitou. Aquele emaranhado de entradas, nas diversas galerias, era como um labirinto, mas tanto ela quanto o irmão, conheciam muito bem aquele lugar. Eles costumavam fazer uma brincadeira com seu esconderijo favorito.

“Se não é direito ir à direita, então é direito ir à esquerda”.

Assim que se sentiu segura, deixou os dois homens, finalmente, tomarem fôlego. Os três ficaram, quietos, tentando perceber se já estavam seguros. O som de passos apressados indicou-lhes que vinha alguém na mesma direção. Só podia ser o irmão, mas ela pediu aos dois para ficarem escondidos e em silêncio, até terem certeza, enquanto ela se certificava.  

- Leona, consegui salvar o diário. Nem pergunte a que custo. É melhor que o leves contigo. Eu vou continuar a desviar a atenção dos homens, para que nunca cheguem perto do terminal, até vocês estarem seguros.

- Não. Nós temos muito pouco tempo. Vamos ter que sair daqui juntos.

- É nossa única hipótese. Confia em mim. Eu chego a tempo, podes ficar tranquila.

Confiar nele? Ela teve dúvidas… Por mais que parecesse certo do que fazia, ainda assim, era extremamente arriscado.

A mulher não percebeu que o irmão tentava esconder sua dificuldade em respirar normalmente. Ele fingiu estar, somente, cansado e preocupado em fazer com que saíssem dali a salvo.

- Vamo-nos encontrar no terminal em quinze minutos. Não esperem mais que cinco minutos por mim. Agora vão.

Leona articulou, rapidamente, um plano de emergência em sua mente, mas precisava de tempo para executá-lo, antes que o irmão voltasse a juntar-se ao grupo.

Ela chamou o pai e o Décimo-Terceiro. Os dois seguiram-na, sem dizer nada. O personagem mais jovem não conseguia esconder o quão assustado e receoso estava. O homem mais velho, acostumado com fugas repentinas e uma vida bem pouco segura, desde há muito, apenas seguiu a filha, sem reclamar e em apreensivo silêncio.

A mulher era ágil e sabia o caminho como ninguém. Os dois faziam um esforço extra para poderem acompanhá-la, mas seguiam-na cega e confiantemente, em absoluto silêncio.

Todos os outros sons, além de seus passos, haviam ficado completamente para trás, deixando-os mais tranquilos, mas não desatentos. 

- É ali. Chegamos.
***

Leona reprogramou o terminal de transporte, como havia decidido mentalmente, para a volta de quatro viajantes, ao invés dos três que aportaram naquele ponto do passado. Apesar do risco que corriam com aquela atitude e, mesmo sabendo que contrariava todos os procedimentos de segurança e as ordens do Supremo, ela não teve dúvidas quanto à certeza de que tomara a decisão mais acertada.

Ela, o pai e o Décimo-Terceiro clone aguardavam ansiosamente pelo quarto viajante, mas o tempo esgotou-se muito rapidamente e o terminal deu o sinal de transferência. Os três colocaram-se no centro da cápsula e esperaram uma pequena fração de segundo, para que a mesma começasse o processo. 

A mulher sentia-se cansada e triste, mas tinha que seguir o procedimento, em nome da segurança do pai e do clone. Quando chegassem ao futuro, ela trataria de contornar a situação, provavelmente enviando um outro sinal, para que o irmão recebesse e pudesse voltar. Ele saberia o que fazer.

O som de uma rajada de disparos não foi percebido por nenhum dos três, enquanto estavam sendo transferidos de volta para o futuro, por causa do zumbido que a máquina emitiu e da rapidez do processo. O Décimo-Terceiro sentiu um empurrão no pé, mas não percebeu o que acontecia, realmente.

Ouviram uma sirene a tocar, intermitentemente, poucos segundos depois.

A transferência havia sido concluída, efetivamente. Agora, encontravam-se dentro do terminal de transporte do edifício principal, no ano de 4697.

Leona olhou para baixo, aos pés do Décimo-Terceiro e, então, percebeu que o clone tinha as pernas e os pés manchados de sangue.

- O que é isso?

- É sangue. Estás ferido?

- Não… sei…

O clone também sangrava pelo nariz. Ele revirou os olhos e caiu aos pés da mulher, aparentemente desacordado. Ela apressou-se para acudi-lo, quando viu que, atrás dele, jazia o corpo ferido e inconsciente do irmão. Ele também tinha as mãos cobertas de sangue.

Os dois cientistas chegaram, naquele momento, juntamente com o Supremo, que aproximou-se e falou, antes que ela tivesse tempo de explicar-se.

- Eu espero que tenhas uma razão muito boa para isto. Eu te avisei que vocês não deviam intervir com qualquer coisa no passado. A tua missão era justamente impedir que tal acontecesse.

- Eu sei. Mas estávamos sendo perseguidos por homens armados e não podia deixar ninguém para trás. Era a única alternativa.

- A única? A única alternativa era ter evitado esta confusão toda…

- Eu sei, mas temos um problema mais grave, neste momento…

O Supremo olhou por cima dos ombros de Leona e percebeu, logo, ao que ela se referia. Embora fosse um homem extremamente severo, ele não deixava de ser coerente e justo.

***

- Mas nós conseguimos salvar o diário, afinal. Mesmo com tudo que aconteceu… e…

- Sim. É certo. Mas a um preço muito alto.

- Isso já não tem nenhuma relevância. O que importa é que conseguimos garantir o nosso futuro e desta gente...

- Mas mexemos com o passado. Não deveria ter acontecido. Foi um risco muito grande... e, invariavelmente, toda intervenção tem suas consequências.

- Mas tu já não ias ficar muito tempo vivo, lá, de todo jeito… O ataque pode ter sido antecipado pela nossa chegada àquela hora ao laboratório, mas para todos os efeitos, segundo consta, serias morto naquela mesma noite e foi isso que aconteceu. Ninguém, nunca, vai saber a verdade… Que diferença poderia fazer, agora?

- Nunca subestime os efeitos das coisas pequenas ou das que pareçam ter pouca importância… Como sabes que nada ficou intocado, neste futuro? Mesmo que ainda não tenhas percebido… houve uma mudança!

- Houve?

- Houve, sim…

Leona olhou o pai, com preocupação. A morte do irmão fora um sacrifício, em nome do futuro e da ciência, que não fora previsto, nem pode ser impedido ou revertido. O tempo não perdoava… Aquela nova constatação, porém, era preocupante.

O pai apontou para o laboratório. De lá, David, o Décimo-Terceiro clone, olhava para ela e para o velho cientista.

Leona franziu o cenho. Ele parecia tranquilo, mas a anomalia estava cada vez mais evidente. A mulher puxou o pai pelo braço e entraram os dois na sala imaculadamente branca.

O chefe dos cientistas parecia desesperado.


sábado, 2 de setembro de 2017

O Décimo-Terceiro (Parte 3)


Era tarde da noite, no subúrbio da cidade. As silhuetas de duas pessoas, com aparências muito dissimilares, moviam-se em meio às sombras, por entre as ruelas e os becos. Algumas pessoas ainda caminhavam na rua, outras conversavam alegremente, dentro dos bares e restaurantes. Estava uma perfeita noite de Outono, sem ser fria e até bastante agradável. Ao homem mais forte, aquela temperatura era ideal, porém o seu companheiro estava desconfortável, sentindo seu corpo pálido e frágil tremer de frio.

- Vamos por ali. Não devemos estar longe, agora. Só espero não dar um susto demasiadamente grande ao velho.

O outro olhou para ele, sem perceber muito bem o que aquilo, realmente, significava e continuou seguindo ao seu lado, por trás de uma grande casa, que cobria um quarteirão inteiro, na parte mais afastada da vila. Atrás dela, havia um parque com brinquedos e, depois, um grande pátio.

Quando atravessavam uma área bastante arborizada, o movimento que fizeram para afastar os galhos das árvores provocou um efeito surpreendente em alguns dos moradores temporários do bosque. Um farfalhar colorido impressionou o clone, mas irritou o homem que o conduzia, por aqueles caminhos obscuros, na noite fresca de Outono.

- Oh! O que é isso?

- São borboletas. Monarcas, mais especificamente…

- Que interessante… São tão…

Faltaram-lhe palavras. Não conseguia, com seu pouco tempo de vida, dizer o que sentia, em relação à beleza, uma das poucas coisas que o impressionaram.

- … irritantes, quando voam assim à nossa volta. Não devemos fazer muitos movimentos, pois qualquer coisa pode levantar suspeitas e nos colocar em perigo. Temos que manter nossa presença a mais discreta possível.

O clone olhou o homem, que se irritava com tamanha beleza e não compreendeu a razão dele não apreciar aquele momento incomum. O rapaz puxou-o pelo braço, sussurrando, irritado.

- Vamos! Cada minuto que perdermos é precioso demais e vai-nos fazer falta. Ainda vais saber mais sobre as Monarcas, se tiveres tempo… Agora vamos!

Chegarem, finalmente, à entrada de um túnel, escondida na parte de baixo de um edifício. Dali, após passarem por outra série de túneis, emaranhados numa rede bastante intrincada, chegaram, finalmente, a um pequeno e velho galpão, construído nas traseiras de uma casa comum.

Uma luz acesa mostrava que havia alguém dentro da casa. Os dois tiveram o cuidado de manter-se nas sombras, até que tivessem certeza que ninguém os via. O silêncio deu-lhes a certeza que não havia perigo. Os dois avançaram e foram até a porta. O homem mais forte deu uma batida na porta, com os nós dos dedos. Depois, uma parada e, a seguir, duas outras batidas, seguidas de um curto espaço. Era o código que havia sido combinado. Ao ouvir o som de passos, no lado de dentro, ele sentiu uma apreensão esquisita.

Um homem de meia-idade abriu a porta, mas sua expressão logo mudou, para um misto de preocupação e medo. O que aqueles dois estranhos faziam ali à sua porta, usando o código combinado, era uma incógnita. O homem mais forte lembrava-lhe alguém conhecido, mas ele não conseguia saber quem.

- Em que posso ajudá-los?

O homem mantinha a porta meio aberta, tentando controlar a situação. Percebia que estava em desvantagem, mas tinha que tentar intimidar os visitantes, que mantinham-se, um pouco, à sombra da noite.

- Podemos entrar? É importante.

- Não. Não podem, sem dizer-me quem são e o que querem.

 O rapaz avançou um passo e o homem agarrou a porta, tentado fechá-la, antes que perdesse o controlo, mas sua força nem se comparava à daquele jovem.

- Pai?

O homem arregalou os olhos. Não contava com aquela. Ele não tinha nenhum filho daquela idade, com certeza absoluta. Os olhos do rapaz, porém, quando foram atingidos pela luz de dentro da casa, mostraram-se tão verdes quanto os do filho, mas ele refutou aquela característica comum, de imediato.

- Meu filho é mais jovem e eu tenho certeza absoluta que nunca tive outro. Não sei quem tu és e nem o que tu queres, mas não vais conseguir nada comigo.

- Eu sei que parece inacreditável, mas se eu puder explicar… Deixa-nos entrar, por favor. Todos nós corremos perigo.

O homem ficou muito sério. O rapaz tentou uma última cartada.

- Olha isso! Acreditas em mim, agora?

O homem puxou a porta, abrindo-a com cuidado, de modo a deixar os dois visitantes entrarem. Até então, mal havia notado as características do homenzinho, que ele agora observava, com cuidado. Ele era extremamente pálido, jovem, muito longilíneo e parecia ter a cabeça desproporcionalmente maior do que aqueles com quem ele costumava estar. Sua pele parecia muito fina. Os olhos verdes faziam-no lembrar de alguém, mas ele não percebeu bem, no início. Estava, agora, mais ocupado em poder examinar a anomalia que o outro mostrou naquele ser estranho e que ele já havia visto antes, em seu próprio filho.

- Como isso pode ser possível?

- Eu acredito que a resposta esteja aqui, neste tempo. Por isso precisamos de sua ajuda.

Os três voltaram-se para um ponto na sombra, atrás do velho homem, de onde veio a voz feminina.

- Leona? O que aconteceu contigo? Estás tão diferente…

- Todos nós estamos, pai, mas…

- Tu não devias ter vindo.

- E deixar-te causar uma catástrofe? Este teu comportamento intempestivo já nos colocou em problemas… Nós temos que interferir o mínimo possível com este tempo e lugar. Tudo o que nós fizermos aqui, vai interferir naquele mundo, com toda certeza.

- Que mundo? Alguém pode explicar-me esta confusão toda?

Antes que o irmão começasse com verdades impróprias, Leona adiantou-se. Ela teve mais cuidado em usar as palavras e dizer apenas o que não fosse mudar, muito, o curso dos acontecimentos, mas o pai tinha que saber o que aconteceu… ou ia acontecer…

O cientista ouviu, calado, mas não sem deixar de impressionar-se.  Nunca iria imaginar quão importantes suas pesquisas se tornariam no futuro. Na sua modéstia e simplicidade, por trás de toda a genialidade, ele não anteviu que seu trabalho traria tanto benefício à humanidade… ou pelo menos à uma parcela dela…

***

- Pai, o chefe dos cientistas, que é um homem muito experiente e competente, não conseguiu descobrir o que causou aquela anomalia no clone. A preocupação é que ela seja grave e que coloque em risco uma boa parte dos que vierem a nascer, como se fosse uma epidemia, difícil de controlar. Algum elemento na vacina deixou de fazer efeito, ou houve uma mutação qualquer.

- Eu trouxe uma amostra da nova vacina, que está em teste, para analisar. Quando aconteceu comigo, como foi que o pai reverteu o efeito? Não foi encontrada nenhuma anotação sobre isso nos dados de registos existentes no futuro.

- Eu sei. Eu nunca deixei nada disso escrito nos registos oficiais. Fiz apenas umas poucas anotações no meu diário, que mantenho longe das vistas de todos. Mas eu sei o que fazer… Não faz tanto tempo assim que eu lidei com isso. Mas vamos ter que ir ao laboratório da Universidade, fazer uns testes. Nós já havíamos eliminado a… err… Não sei se vai resultar com um clone, cujo ADN já deve ter sofrido muitas mutações, nem sei que tipos de reações podem ocorrer, mas temos que tentar.

Antes de saírem, porém, o homem olhou os três visitantes e, franzindo o cenho, perguntou, com ingenuidade de criança.

- Para que são criados os clones, afinal?

Os três olharam para o velho cientista, como se ele tivesse dito um impropério. Leona riu, com ternura e disse-lhe:

- Eu tento explicar a caminho…

***

- O que é isso? É tão agradável…

- É música. Vamos.

- De onde vem?

- Ora, vamos! Depressa! Não temos tempo para isso.

O pai, bem mais paciente que o filho, tentou explicar de uma maneira mais ou menos coerente:

- A música é a linguagem com a qual as almas dos homens conversam com as dos deuses. Ela é capaz de tocar o mais intangível ser. Existem muitas formas e muitos estilos diferentes. Essa, que tu ouves, é de um artista famoso, que já não caminha nesta terra.

- Não? Onde ele caminha, agora?

- Está morto. Chamava-se David Bowie. Vem do bar do clube ali na frente, mas devemos evitar passar por lá. Não podemos levantar suspeitas…

- Temos que arranjar um nome para ti. Se alguém nos abordar, será a maneira mais conveniente… e apropriada. Não devemos correr riscos desnecessários.

- Eu sou o Décimo-Terceiro.

- Mas isso não é um nome decente, para este lugar. Temos que arranjar outro; mais comum e adequado…

- Pode ser David Bowie?

Leona riu alto.

- Pode ser David. Esquece o Bowie. Vai levantar mais suspeitas, se for usado aqui.

***

O campus da universidade estava praticamente deserto, quando eles chegaram. Havia, na entrada, uma carrinha branca, parada, próximo à área de pesquisa, onde o laboratório ficava localizado. As letras N. M. E., pintadas em vermelho, nas laterais, não levantaram suspeitas, quando os quatro personagens desceram o lance de escadas, que os levava ao seu destino. Assim que o cientista tirou a chave do bolso e girou na fechadura da estreita porta metálica, ouviu-se um silvo e uma marca profunda ficou gravada acima de sua cabeça, no duro metal, pintado de cinza claro. Eles se jogaram para dentro, fechando a porta, em seguida, para ganhar tempo, e foram, correndo, para o Laboratório Principal.

- Quem são esses? Estamos a ser atacados por armas de fogo. Temos que fugir e tentar chegar de volta ao terminal. Vamos todos. Corram!

Ao entrar no laboratório, apressaram-se a arrastar um grande armário e bloquear a porta.

- Temos que usar a saída de emergência, que fica no fundo do laboratório. Vou mostrar-lhes o caminho. Vocês apressem-se, depois que passarem e vão em frente, até o fim do corredor. Entrem pela porta onde está escrito “Para o telhado” e, ao invés de subir, passem por baixo das escadas. Há uma outra porta lá, no fundo do depósito de vassouras e materiais de limpeza, pintada da mesma cor das paredes, para dificultar ser encontrada. Eu tenho que pegar minhas anotações.

Naquele momento ouviram um grande estrondo. A porta da frente havia sido arrombada com explosivos. Os sons de passos, a correrem pelo corredor, muito próximo deles, fê-los entrar em pânico e imaginarem um apressado plano de fuga.

- Não há tempo para voltar. Temos que sair daqui, o quanto antes. Eles já estão vindo atrás de nós…

- Mas é extremamente importante… está mesmo na gaveta da escrivaninha…

O rapaz sabia que o pai tinha razão. Era extremamente importante buscar as informações, para cumprir o objetivo da viagem no tempo, que acabaram por fazer. Sem pensar muito, ele dispôs:

- Eu volto. Sou mais rápido e mais forte. Posso defender-me melhor e, além do mais, quando chegarmos ao terminal, não podemos voltar os quatro, ao mesmo tempo. A programação estará feita para três, somente…

- Nós podemos mudar a programação.

- Se tivermos tempo… Melhor nos apressarmos. Eu saio e, depois, volto pela frente. Não esperem por mim. Deixem, que eu dou um jeito. Se o portal não estiver aberto, eu espero por um sinal.

- Nós mandamos um, assim que chegarmos, programando o terminal para um passageiro, somente… Assim, ele fecha quando tu passares e não trazemos mais perigo junto connosco.

- OK. Agora, vamo-nos separar.

Leona sentiu um aperto no peito. As coisas haviam saído fora do controlo. Toda a operação ficara arriscada demais e, agora, lutavam por manter-se vivos. Eles tinham a dianteira e sabiam o caminho, mas tinham que ser rápidos e insuspeitos, até atingir o terminal.

Ouviram uma série de tiros. Que forma mais eficiente e perigosa de apressar as coisas e os passos…

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Indomável como o Vento... (Parte 1)


- Deve ser, pelo menos, a terceira vez que ouves esta canção, nesta mesma sequência. Estás a olhar para além da janela e além do mar já há algum tempo.

- Desculpe. Nem havia dado conta…

- Estás saudoso?

Eu senti um estranho, inesperado e familiar aperto no peito e engoli em seco.

- Nostálgico, talvez…

- Algum arrependimento?


Ela aproximou-se e tocou-me o ombro, por trás. Voltei-me e olhei bem dentro daqueles olhos que eu tanto conhecia. Pareciam mais verdes e brilhantes, com a luz do dia, que entrava pela janela. Suas pupilas dilataram-se quando nossos olhares encontraram e eu sabia muito bem o que aquilo significava.

Reconheço que eu seja uma pessoa difícil de lidar e uma vez que tenha tomado uma decisão, dificilmente volto atrás ou demonstro qualquer sinal de pesar. Talvez eu, simplesmente, tenha aprendido, com a vida, a tornar-me um homem fatalista demais.

- Jamais me arrependeria… Meu coração continua como sempre foi, por isso não há razão para quaisquer arrependimentos. Eu sou, praticamente, o mesmo de antes… como e quando tu me conheceste. 

- Eu já não sei se és o mesmo de antes. Eras tão livre e tão indomável…

- Como o vento…

- Como a canção repete sem parar… 

- Como a minha cabeça repete sem parar…

E eu deixei-me levar pelas lembranças… 

***

- Quem é que precisa ficar, tanto tempo, sozinho? 

Eu ri. Admitia que realmente passava muito tempo sozinho e sentia aquela necessidade, como do ar para respirar. Não esperava que alguém compreendesse, apenas que aceitasse. Também sabia que era provocação, por isso respondi:

- Eu!

- Tu és mesmo uma aberração. Mas nem vou discutir, nem tentar entender…

Falou aquilo rindo, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Sabia que era batalha vencida e não queria, nem iria lutar por algo que não pudesse vencer. Mas ela sabia contornar situações, quando desejava algo. Eu era um desafio ao seu poder de persuasão e criatividade. E ela adorava desafios… especialmente os difíceis.

A canção tocava no CD Player do carro e eu impostei a voz e cantei os versos conhecidos, junto com a voz de veludo e sempre surpreendente do cantor. 

Ela olhou-me, parecendo um tanto intrigada, mas não disse nada. Deve ter pensado algo muito horrível, mas limitou-se a rir… da minha postura de cantor “cool”… Eu parei de cantarolar e limitei-me a murmurar as notas e algumas palavras, quase resistindo a vontade de soltar a voz a plenos pulmões. Ela olhou para o outro lado, como se apreciasse a paisagem, mas eu percebi que tentava, a todo custo, conter as risadas. 

Quantas pessoas conseguem valorizar o poder de fazer a outra sorrir? Pelo menos está a divertir-se, mesmo que às minhas custas’, pensei eu…

Uma ampla vista do oceano abria-se à nossa frente, quando o carro começou a descer o íngreme morro. A via principal serpenteava até próxima da praia, onde uma estradinha escondia um de nossos recantos favoritos.

***

Havíamo-nos tornado grandes amigos, antes e acima de tudo, desde os tempos da Universidade. Tanto as pequenas, quanto as grandes aventuras, faziam parte da nossa amizade. Desde as discussões sobre nossos livros favoritos, que líamos uns atrás dos outros, para depois discutir os detalhes, fazendo nossas críticas e discussões sobre as partes favoritas, até os discos, músicas, filmes e comida… tudo era notavelmente parte de nossa história. Ela tinha todos os discos de Alice Cooper e Supertramp. Eu era fã de Bowie e Led Zeppelin e fazia um esforço enorme para economizar algum dinheiro e completar minha coleção. 

Viajávamos, sempre que conseguíamos, praticamente sem destino, pelo país afora… mesmo com pouco dinheiro, o que era a parte mais gostosa das nossas aventuras.

Andávamos juntos sempre que podíamos e as pessoas perguntavam se ali havia mais que uma simples amizade. Nós sempre negávamos. No fundo, ir além daquilo, podia estragar aquela amizade tão inocentemente cultivada. O tempo mostrou que aquele medo era completamente infundado.

Saíamos em aventuras sem destino, pela praia, pelo país, pela vida. Nada era pequeno para nós, nem grande o suficiente para nos parar. Éramos como cavalos selvagens: livres e aventureiros. Éramos como gaivotas, sempre prontos a voar alto e longe, com os olhos além dos horizontes, cheios de vida e de adrenalina. 

- Achas que essa amizade vai, um dia, arrefecer?

- Por que isso me preocuparia? Eu gosto do que nós temos… apesar das aventuras e das loucuras, é tão tranquilo. Quem pode dar-se ao luxo de estar com uma pessoa e não precisar dizer nada, por longos minutos e, ainda assim, parecer que disse muito?

- Eu sei

Ela ficou em silêncio por uns instantes, a olhar o céu, pintado com pinceladas azuis e brancas, entre as folhas e os longos e pendentes galhos do imenso salgueiro, plantado à volta do lago. Estávamos deitados na relva, lado a lado, sem tocarmos um no outro. Era nosso lugar favorito, longe de todos e de tudo.

- É tudo muito intenso, mas…

- O que é que te preocupa? Tens receio que aconteça algo?

- Acho que já está acontecendo…

Eu levantei o torso, apoiado nos cotovelos e olhei-a, preocupado com o que ela iria dizer. Senti um súbito desconforto no peito.

- Como assim?

- E se aparecesse alguém na minha vida, que quisesse mais que amizade de mim? 

- Se isso te fizesse feliz…

Ela olhou-me de frente. 

- E se isso mudasse a nossa amizade e isso que nós temos? Não quero perder a tua amizade.

- Não vai mudar nada. A não ser que que nós deixemos. E não vamos deixar, vamos?

Ela olhou-me nos olhos. Suas pupilas dilataram-se, quase a cobrir aquelas incomuns íris, tão mais verdes, com a luz do sol.

- Eu tenho receio de perder…

Num tolo ímpeto de insanidade, eu aproximei-me mais ainda dela e, pela primeira vez, em tanto tempo, senti que ela estremeceu e calou-se. Uma sensação estranha apossou-se de mim. Quando dei conta, nossos lábios estavam colados e nossos braços fechados à nossa volta

Foi um beijo simples e carinhoso, não exatamente sensual. Mas ambos percebemos que era sinal de uma grande mudança em nós Era um marco importante naquela amizade. 

Não dissemos nada, apenas nos afastamos devagar, sérios e olhando para lados diferentes. Deitei-me na relva novamente e fechei os olhos. Talvez houvesse estragado tudo. O que passou-se pela minha cabeça? Ela acabava de falar em um outro e em uma possível relação e eu fizera aquela asneira… 

‘Que burro! Estúpido!’

Eu amaldiçoava a minha atitude impensada, agora com receio de haver posto tudo a perder. Ainda de olhos fechados e sentindo vergonha, eu falei:

- Peço imensas desculpas. Eu…

Engasguei. As palavras, simplesmente, não saíram. Cobri o rosto com as mãos. Eu senti-me um invasor. E se ela me odiasse, dali para frente, por estragar a beleza da nossa amizade? 

O vento soprou os galhos pendentes da árvore à nossa volta. Era como se fosse o vento da mudança, anunciando o fim da nossa inocência… 

Deixei meus braços caírem para os lados, sentindo-me triste e impotente para fazer o tempo voltar atrás, nem que fossem, apenas, uns poucos segundos …

Foi quando senti que ela estava muito mais perto de mim, que eu julgava. Seus lábios tocaram os meus, suavemente, porém, desta vez, com mais sensualidade que quando eu forcei o primeiro beijo. 

Sem pensar muito, eu correspondi a aquele toque, desajeitadamente, no começo, mas relaxei as defesas e entreguei-me a ela, de corpo e alma, ali mesmo, à sombra do salgueiro, cujas folhas e galhos escondiam-nos do mundo que girava à nossa volta, sem perceber o que acontecia naquele minúsculo pedaço protegido de universo…

***

- Faz tanto tempo assim?

- Desde aquela vez? 

Acedi com a cabeça, um pouco entristecido e pensativo.

- Claro que sim.

- Lembras como as pessoas costumavam invejar o que nós tínhamos? 

- Até aquele dia…

- Deixa o passado lá atrás, onde ele pertence. Já cometemos tantos erros e já corrigimos alguns… Não pensemos mais nisso. 

Eu voltei-me e olhei-a nos olhos, como tantas vezes antes daquela. Ainda havia aquela centelha que acendia, quando nossos olhares cruzavam. 

Questionei-me por qual razão nós havíamos deixado o receio intervir no que havia entre nós. 

Tanto tempo perdido… dois beijos, duas vezes o mesmo erro… e aquela amizade, antes tão inocente, estragada, pelo calor do momento e por um sentimento de culpa descabido e inconveniente… que nos separou por tempo longo demais. 

Nossas vidas continuaram separadas, como não poderia deixar de ser. Dois casamentos, dois divórcios… um de cada… tanta história a ser contada ou esquecida…

O meu divórcio havia sido há tanto tempo, que eu já nem lembrava mais como era conviver com alguém. Voltara a ser o homem solitário e selvagem de tanto tempo atrás, vivendo segundo minhas próprias regras e cada vez mais distante dos relacionamentos e das pessoas… 

Quem poderia dizer, porém, que aquela mesma canção, depois de tanto tempo, iria nos aproximar uma vez mais?

***