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domingo, 26 de junho de 2016

Acerca de Ana Maria (Parte 2 de 2)


A porta, a bater com mais força que o habitual, deixou meus sentidos em estado de alerta, mas não consegui ouvir mais que os sons tranquilizantes e impessoais do vento e do mar. Estava do lado de fora, a trabalhar na pequena horta que cultivava na parte de trás da casa e não era possível filtrar muito do que se passava lá dentro.

O som do motor do carro foi desaparecendo na distância e sendo sobreposto pelo monocórdio e lânguido marulhar das ondas naquele ir e vir contra as areias da praia. Esperei um pouco e, depois de um tempo, mais ou menos calculado, para não parecer óbvio, entrei.

Ele estava de pé, junto à janela, a olhar para fora e não virou quando eu me aproximei, como seria de esperar.

- Aconteceu alguma coisa?

- Nada importante.

Eu tinha certeza que aquela afirmação não estava nada perto da verdade, mas respeitei a reticência da resposta e deixei-a passar como se não tivesse importância.

- OK. Preciso ir ao mercado. Vens comigo?

Na verdade, eu não precisava de nada que não pudesse esperar, mas queria ter certeza de que estava tudo bem. Como não queria voltar a perguntar diretamente, fingi não dar mais relevância ao caso que merecia, para não parecer invasivo.

- Não. Preciso fazer umas coisas. Mas se lembrares, compra laranjas, que já não temos nenhuma.

- Vou lembrar, claro.

A voz parecia muito baixa e grave. Eu percebi que não me olhou, quando o telefone tocou e ele atendeu. Apressou-se a ir para a varanda, falar com privacidade, o que não surpreendeu-me de todo, mas sentia que alguma coisa havia mudado.

Será que ele não confiava mais em mim, ou estava, tão-somente, a tentar resolver o problema sozinho?

Ainda avistei-o a andar de um lado para o outro, com o telefone ao ouvido e a gesticular nervosamente. Decidi sair e deixá-lo na casa, enquanto ia ao supermercado da aldeia, que ficava a menos de dez minutos dali, de carro. Ambos precisávamos de tempo.

Quando voltei, ele estava a caminhar na praia, com os pés na água, como se a brincar com as ondas, como fazia quando era criança e sempre que precisava pensar. Já era além do fim da tarde e eu decidi que deveria tratar de arranjar algo para jantarmos.

O que nós dois tínhamos em comum, além de muitas outras coisas, era a tendência a ficar sós quando queríamos pensar em algo sério e tomar decisões. Se precisasse conversar, ele sabia que eu estava à mão…

Quando finalmente entrou, eu estava a arranjar a mesa, para jantarmos. Ele parecia drenado de tanto pensar. Não perguntei nada, apenas esperei que falasse, enquanto eu me ocupava com os talheres, os pratos e, também, com as panelas.

- Ela ganhou uma bolsa para estudar… na América… A bolsa é patrocinada por uma grande empresa e há grandes possibilidades de que lhe deem um emprego quando os estudos acabarem.

- É uma oportunidade enorme e incomum…

- É, sim. Mas não é isso que me incomoda.

- Então?…

- Ela disse que precisava de um tempo para concentrar-se nos estudos e carreira. Eu apoio totalmente esta decisão, mas não queria que isto pusesse um fim ao que nós temos. Nenhum argumento foi forte suficiente para convencê-la a mantermos o relacionamento, apesar da distância, entretanto. Isso não é certo, pai.

- Ela tem o direito de optar. É a vida e a carreira dela. Mas hoje em dia, com a tecnologia que temos à mão, é tão mais fácil conversarem e manterem os contactos, mesmo à longa distância…

- Eu sei, pai. E as passagens não são tão inacessíveis assim…

- Pois não. Sempre arranja-se uma promoção ou outra… Vocês brigaram?

- Discutimos por divergir as opiniões em relação a ficarmos em contacto ou não. Ela disse que íamos manter contacto, sempre que lhe fosse possível, mas pediu tempo e espaço e que eu respeitasse a decisão dela…

- É justo.

- Não é. Não é nada justo.

- Dê tempo ao tempo… e à ela… ou nunca terás perdão… As mulheres não gostam que as decisões delas sejam questionadas…

- E se levar tempo demais?

- Vais ter que aceitar e aprender a viver com isso…

Ele soltou um suspiro de impotência… ou desespero. No fundo, sabia o fim que aquela história ia ter, mas negava-se a aceitar o óbvio.

***

Eu fiquei apreensivo com a decisão que ele tomara. Eu jamais faria o mesmo, mesmo porque eu sou teimoso demais para ir contra um “dá-me espaço” daqueles, como ela pediu…

Como os contactos entre eles haviam ficado cada vez mais espaçados, ele resolveu que deveria ir vê-la, na América e fazer-lhe uma surpresa. Achava que quando se vissem, tudo voltaria ao normal.

A falta de notícias desde que viajara, deixava-me com um mau pressentimento…

***

- Oh! Meu Deus!

- Eu tentei avisar-te, mas sabia que não ias ouvir-me… Nem sempre o coração ouve a voz da razão… Nós somos muito parecidos mesmo!

- Pai, eu perdi a cabeça! Isso nunca me aconteceu!

Eu olhei para a expressão de desespero, tão claramente estampada na sua face e esperei. Não havia nada que eu pudesse dizer ou fazer.

- O que faço agora?

- Não fazes nada… já fizeste…

Ele baixou a cabeça e pareceu-me que estava enterrando-se num buraco sem fundo…

Aquela angústia cortava-me a alma, mas ele tinha que bater no fundo, sozinho, para poder levantar-se. Não há nada pior que a decepção, para acabar com nossos sonhos e fazer-nos enxergar a vida com olhos menos míopes e lentes mais grotescamente verdadeiras. A crua realidade é, muitas vezes, mais dura que achamos ter forças para suportar. Viver, enfrentar e conviver com nossos erros é, também, um ato de coragem, sem precedentes. Às vezes, as forças esvaem-se, a vontade de viver vai-se junto, mas é preciso ser muito bravo, para levantar-se.

Ele estava a aprender, da pior maneira e muito cedo, para o meu gosto, a ser um adulto…

Eu não aprovei a decisão dele antes e não apoiava o que ele fez, então.

Fiquei ali, parado, a acompanhá-lo com os olhos, enquanto ele saía pela porta de trás e ia na direção da praia. Sabia que ele precisava daquele momento de solidão… ou muitos momentos daqueles… Seu caminhar parecia o de um velho, de tão pesado e arrastado…

Duas lágrimas desceram, quentes, dos meus olhos, pela face abaixo. Sentia que ele precisava de mim e queria estar lá para ele, mas não podia invadir seu martírio interior, sem que ele me desse permissão para fazê-lo. Por mais que eu quisesse protegê-lo, naquela hora, não seria capaz, sequer, de aliviar uma minúscula gota de sua angústia. Resisti e não fui atrás dele…

De longe, enquanto seguia a silhueta conhecida, a caminhar solitária, na beira do mar, imaginava o tumulto que devia ter criado, quando perdeu a cabeça e a razão e partiu para cima do rapaz que estava com Ana Maria, em atitudes muito mais íntimas que poder-se-ia esperar de um simples amigo.

Ele podia ter agido de maneira mais nobre, mas um coração partido não quer saber de nobreza ou raciocínio lógico. Se não fosse a moça a chamar-lhe à razão e expulsá-lo da esplanada onde estava com o tal “amigo”, ele teria sido preso por assédio e violência… ainda mais na América! 

Foi mesmo irresponsável! 

Mesmo para um rapaz tão centrado como ele sempre havia sido, sentir-se traído, fê-lo perder, completamente, a estribeira... não que ele não tivesse certa dose de razão...

***

- Pai?

- Ahn?

- É sempre assim?

- Assim como, meu filho?

- Dolorido. Dói sempre assim?

- Só quando a gente ama… ou amou… muito… Só quando há muito amor… ou então muita mágoa… é que dói tanto assim…

- Não é muito justo.

- Nunca é!

Ele sentou-se no degrau da varanda, cobriu o rosto com as duas mãos e chorou como uma criança.

Para mim, na verdade, ele ainda era uma criança… a minha criança, aprendendo a viver com as injustas agruras da vida. Por mais que eu tentasse consolá-lo, não iria conseguir minimizar o que ele experimentava naquele momento.

Infelizmente, quando é assim, a dor tem que ser sentida.

Ele nunca mais ia ser o mesmo. Aquela agonia ia, invariavelmente, passar, com o tempo, com outro amor, com outras visões do mundo, mas ia deixar suas cicatrizes, profunda e indelevelmente tatuadas na memória dele. Era como um batismo de fogo e aflição a marcar-lhe, para sempre, mas, também, a amadurecer-lhe os sentimentos e a ensinar-lhe a encarar a vida sob vários ângulos diferentes.

Eu daria minha alma para que ele nunca tivesse que sofrer, mas não tinha qualquer poder sobre aquilo, por isso apenas sentei-me ao seu lado, passei o braço por sobre seu ombro e puxei-o para perto de mim.

Ele não ofereceu resistência, nem mostrou-se envergonhado ao abrir sua fragilidade diante do pai, chorando daquele jeito.

Abraçado a ele, não me contive e chorei também…


***

sábado, 18 de junho de 2016

Acerca de Ana Maria (Parte 1 de 2)


- Ana Maria?

- É.

- É um bonito nome. Como ela é?

- Tem olhos esverdeados e cabelos castanho-claros, que lhe caem como uma cascata pelas costas. É tão cheia de vida, que me faz sentir que eu posso tudo, quando estou com ela.

- E podes… se quiseres…

- Só de pensar nela, eu me sinto tão bem… Ela é música e dança ao mesmo tempo.

- Estás mesmo apaixonado!

- Acho que sim. Eu penso nela o dia inteiro… o tempo todo…

- Estás irremediavelmente infectado. Não há vacina contra isso e a cura é difícil…

Ele riu. Eu também.

Era bom ver que havia crescido, tornando-se um homem responsável e bom e, agora, apaixonado pela menina Ana Maria. Só agora dei-me conta que o tempo passou tão rápido, que eu mal percebi. Há tão pouco tempo era apenas um menino a brincar com blocos de legos e bonecos de super-heróis com poderes sobre-humanos e a fazer-me perguntas sobre tudo. Agora, devo admitir, já é um ‘homem feito’, como dizia meu pai.

A imagem que me vinha à cabeça, quando o ouvia falar daquela forma, sobre o objeto de sua afeição, era de um passarinho que aprendera a voar e agora já podia abandonar o ninho e fazer seus voos solo.

Era engraçado, mas assustador, ao mesmo tempo.

Quando nasceu, confesso que senti uma emoção que não conseguia descrever. Parecia tão frágil e tão desprotegido, que comoveu-me completamente. Eu só queria ser o melhor provedor e o melhor exemplo para ele. Queria que ele sentisse orgulho de mim, num futuro, para o qual eu nem sabia como prepará-lo para enfrentar. Ao mesmo tempo, senti um amor tão grande, que minha vida deixou de ter importância, a não ser por ele. Quanta coisa eu poderia ensiná-lo e quanta coisa eu iria aprender com ele, no decorrer da sua história… da nossa história.

Tive um lampejo e uma dúvida que nunca ia conseguir responder: será que eu estava preparado?

Não estava. Sabia que não estava. O simples facto de olhar para ele, enquanto brincava, dormia, sorria ou chorava, já me enchia de emoções, que eu nunca iria saber como explicar. Com o tempo, deixei de tentar entender aquelas emoções… contentei-me com senti-las e deixá-las encher meu coração até transbordar…

Eu sabia que a vida não ia ser justa, às vezes, nem as pessoas, mas eu queria que ele tivesse, sempre, a oportunidade e o discernimento para tomar suas próprias decisões e que ele nunca tivesse motivos para arrependimento.

É claro que, por mais que desejasse, jamais iria conseguir protegê-lo de tudo. Ele ia ter que enfrentar muita coisa sozinho e eu devia prepará-lo, da melhor forma possível, mas não era um super-herói, nem um deus todo-poderoso... Era somente seu pai. Quando pensava naquilo, sentia-me tão pequeno e impotente, que doía-me a alma e meus olhos enchiam-se de lágrimas.

Ele cresceu saudável e deu-me muito poucos motivos para preocupações. Não foi o tipo de filho que eu fui. Não era rebelde, nem revoltado. Era uma criança tranquila e centrada, um menino sempre curioso e estudioso, perguntador e interessado em quase tudo que lhe passava à frente de seus olhos. Era, ao mesmo tempo, tímido e aventureiro, mas nunca demonstrava medos.  Assim como eu, ele adorava os animais e respeitava-os, como parte de nossas vidas. Passava tempos a observar o comportamento dos nossos gatos, de modo a compreender suas formas de comunicar suas necessidades e suas demonstrações de afeto. Era um rapaz muito perspicaz e atencioso e tinha um coração enorme, compassivo e muito generoso.

A tal menina Ana Maria tinha muita sorte e, se soubesse estimulá-lo a mostrar, sempre, o melhor lado dele, tinha tudo para ser muito feliz.

***
- Pai, essa é a Ana Maria.

Eu olhei para aquela criaturinha de pé, à minha frente, ao lado do meu filho tão cheio de si e visivelmente apaixonado e apreensivo. Via-se ambas as emoções contraditórias estampadas em sua face e olhos. Ele era tão transparente quanto eu.

A menina tinha olhos grandes, de uma tonalidade interessante de verde e longos cabelos a cair-lhe em cachos pelas costas. Bem como ele havia descrito e, talvez, muito mais agradável aos olhos que eu houvera imaginado, não sei por que motivo. Talvez por puro instinto de proteção à minha cria, havia avaliado mal a descrição que ele fizera da moça.

Era fácil ver a razão pela qual ele estava apaixonado. Além da beleza natural, ela emanava uma tranquilidade enorme. Senti uma ponta de ciúmes, mas também um alívio, ao perceber que os dois davam-se bem e, pelo jeito, estavam felizes.

Ao olhar para eles, assim, tão jovens e tão bem, eu não pude impedir de pensar em mim também e no meu futuro. Ainda tinha muita vida pela frente e tinha muitos planos e projetos, mas não contava com sua partida, ainda. Embora não fosse o que eles tivessem sequer mencionado, meu instinto de pai já fazia os filmes todos na minha cabeça. Já via-me a viver sozinho, com dois gatos a correr de um lado para o outro e um estúdio cheio de pinturas espalhadas por todo canto.

Será que me dariam netos, logo? Será que eu seria um bom avô? Eu tinha tanto receio de não corresponder às suas expectativas…

Alguns anos depois, eu, provavelmente, lembraria sorrindo dos dias em que temia o futuro deles e avaliaria que havia sido tão tolo quanto ingénuo. Assim como nós sobrevivemos, nossos filhos e netos também sobreviverão aos reveses que colocam-se em nossos caminhos. A vida é uma grande e eficiente mestra. Só nos dá aquilo que sabe que teremos força para suportar. Apesar de todos os receios, também não podia negar que as alegrias que eu recebera compensaram todas as noites em claro e os dias de vigília. Eu podia considerar-me um verdadeiro afortunado.

***

Respirar o ar da noite e o cheiro do mar era uma coisa que fazia-me bem, desde que eu era uma criança. Ficar um tempo sozinho a olhar o mar, mesmo sem ver direito o que se passava na escuridão à minha frente, ajudava-me a pensar e manter a sanidade. Era minha rotina, pouco antes de deitar... um tempo todo meu, para recarregar as baterias e centrar meus pensamentos e rever os acontecimentos do dia.

- Eu amo o mar. Dá-me uma tranquilidade tão grande!

- Eu também…

Eu virei-me e observei a moça que estava de pé na areia, com o olhar perdido em algum ponto muito longe, naquela imensidão escura e não tão silenciosa à nossa frente. A monotonia das ondas a baterem na praia era como um mantra hipnotizante e tranquilizador. Ela tinha razão e eu tinha que reconhecer. Aquela vasta massa de água a mover-se no seu incessante vai-e-vem, realmente, dava uma serenidade muito grande na gente…

Ao olhá-la, não sei por qual razão, imaginei-a como o próprio mar… mas desconfiava que havia mais mistério nela que podia-se ver a olho nu. O reflexo na superfície nunca mostra a profundidade do oceano, nem o que se esconde por baixo daquele manto de água em perpétuo movimento… 

- O que vocês estão fazendo aí, parados? Não me diga que tu também tens a mania de ficar na praia a olhar o mar, antes de ir deitar. Essa eu não sabia…

Ela riu. Eu também. Meu filho passou o braço pela cintura da moça e beijou-lhe a face. Ela recostou a cabeça no ombro dele e eu vi que era hora de deixar os dois a sós. Pedi licença, usando a desculpa de ser bastante tarde e estar cansado e deixei-os ali fora.

A casa ficava muito próxima à uma área da praia limitada por um agrupamento de rochas de cada lado e um pequeno caminho abria-se dos fundos do quintal até a areia fofa e branca, dando uma sensação de que aquele pedaço da praia era todo nosso.

Não demorou muito para os dois entrarem também, mas eu já havia-me retirado para o quarto e deitado, embora não tivesse conseguido adormecer imediatamente. Fiquei a olhar o teto, por uns tempos, ainda, com uma sensação estranha a inquietar-me a mente. Por alguma razão que eu não conseguia explicar, ficara com a impressão que havia alguma coisa nela que eu deveria conhecer melhor, mas não conseguia descobrir o que poderia ser…

O cansaço venceu-me, finalmente, depois de muito tempo, sem consolar-me o espírito…

***

- Tu estás vestido como ele, mas não és ele…

O grande animal não retrucou, mas tentou sorrir. Apesar de perceber que eu não era enganado facilmente, virou-se e continuou a caminhar nas duas pernas traseiras, como um humano, sem dar importância ao que eu havia falado. Era mais ou menos da minha altura e bem mais gordo que eu. Segui-o de perto, da praia até a porta da casa, observando como teve cuidado em parecer-se com Ginger, o gato, incluindo a cauda, que arrastava pelo chão coberto de velhos tijolos, dispostos em um mosaico simples, mas harmonioso. O pelo parecia haver sido costurado, muito justo, à volta do corpo, de modo a não parecer falso, mas eu sabia que não era natural, porque não havia brilho, nem vida, como numa cobertura original.

Quando chegou ao topo do lance de três estreitos degraus, ele virou-se, olhou-me e sorriu. Era um sorriso estranho, meio malicioso, que me intrigou, por parecer esconder uma má intenção ou algo que eu não sabia o que era, mas que não me deixava confortável.

Ele empurrou a porta e entrou.

Eu arregalei os olhos… e acordei…


- Sabia que havia alguma coisa errada!

***

domingo, 16 de novembro de 2014

Uma Garrafinha Azul (Parte 2 de 2: Ένα μικρό μπλε μπουκάλι (Éna mikró ble boukáli))


Nós havíamos combinado que voltaríamos àquela mesma região, no começo do Verão seguinte. Ela começava a falar na viagem, semanas antes da data da partida, sempre cheia de planos… detalhados… e que não eram poucos.

Eu achava incrível como ela havia amadurecido naquele ano. Desabrochara como uma rara flor. Era uma miúda inteligente e tinha uma beleza reconhecida por todos, para meu orgulho. Era minha vida.

Ainda não era meio-dia, quando chegamos à praia. Como era de esperar, ela saiu correndo, descalça e a chutar a água salgada e fresca. Voltava a ser a minha menina, que tinha uma enorme fascinação pelo mar. Eu a acompanhei, a passos lentos, pois não tinha vontade de correr. À beira da água, eu gostava mesmo era de caminhar, bem devagar. Perdi-a de vista quando ela venceu a curva da baía, mas sabia para onde se dirigia. Em pouco tempo avistei a silhueta conhecida, a mover-se lentamente à minha frente. Perguntei-me o porquê de estar a caminhar tão devagar, mas logo percebi a razão.

Havia um homem jovem sentado sobre um tronco, na praia, a olhar, muito sério, um ponto além do horizonte, com olhos tão azuis quanto o céu que se estendia por sobre nós. Tinha cabelos negros e fartos, lisos, mas estavam desalinhados pelo vento. Vestia uma camisa branca, com as mangas arregaçadas até os cotovelos e as velhas calças jeans com as bainhas enroladas para cima, estavam um pouco molhadas. O rapaz, que já havia, com certeza, passado dos vinte, mas estava longe dos trinta anos de idade, percebeu nossa chegada, mas não saiu do lugar. Minha filha apertou minha mão, quando viu que ele tinha uma garrafinha azul na mão.

***

- No fim do verão passado, encontrei-a, no outro lado da baía. Tinha esperanças de encontrar a dona, mas não sabia como. Decidi que devia mandá-la de volta ao mar. Tive pena, mas não tinha direito de mantê-la comigo. Quem sabe outro tivesse mais sorte que eu. Mas o poema era tão bonito, que hesitei…

- Poema?

- Sim.

Olhei o rubor tingir a face da minha menina, agora comportando-se como uma jovem mulher. Ela desviou o olhar. Eu a conhecia bastante bem. Aquele tipo de reação só poderia significar uma coisa. Ele também não conseguia disfarçar, satisfatoriamente, o interesse que sentia. A conversa fluía, como se fôssemos conhecidos de longa data. Estávamos sentados na esplanada de um pequeno restaurante, não muito longe da nossa kitchenette, a relaxar e bebericar, enquanto a comida não era servida. Sobre a mesa, jazia uma garrafinha azul, com um velho pedaço de papel, enrolado, dentro. Eu o havia convidado para almoçar connosco, uma atitude que jamais tomaria, se estivesse numa cidade grande. Ali, naquela vila, porém, onde todos pareciam conhecer-se, acreditei que deveria ser a atitude mais educada e inofensiva a tomar.

- Voltei para cá, depois de formar-me. Meu pai, viúvo e de idade avançada, precisou de ajuda e eu resolvi estabelecer-me por cá, por enquanto. Trabalho em um consultório na ilha. Um dia terei o meu, mas preciso de experiência e dinheiro, para investir… Este fim-de-semana teremos uma festa grega. A comunidade mantém certas tradições. Vai ser divertido. Vocês deviam vir.

Minha filha olhou-me, sorrindo. Era evidente que já havia tomado a decisão dela. Eu sorri de volta. Pisquei o olho e ela sorriu, largamente. Festa grega… pensei em danças na rua, pratos quebrados, vinho tinto e muitos frutos do mar…

- Nós viremos.

Ele sorriu, em aprovação. Ela estava radiante.

***

Nikos Vertis e Nikos Oikonomopoulos, Antonis Remos, Vasilis Karras, Paola, Giorgos Mazonakis, Pantelis Pantelidis, Melisses e muitos outros cantores gregos modernos, tocavam noite adentro, nos autofalantes da praça. Os restaurantes estavam abertos e as mesas colocadas do lado de fora. As pessoas vestiam-se de branco e dançavam nas ruas, que estavam fechadas ao trânsito. Quando colocaram a canção mais pungente de Natasa Theodoridou a tocar, o rapaz tomou a mão da minha menina e convidou-a a dançar ali mesmo, no meio da rua. Outros casais faziam o mesmo. Eu lembrei que a mãe dela adorava aquela canção.

“Να 'Σουν Θάλασσα, να μην σ’άλλαζα” (Na soun thalássa, na mi̱n s’ állaza)… ‘Se tu fosses o mar, eu nunca te mudaria’… dizia a cantora, em dueto com Sarbel, com sua voz grave e em perfeito contraste com a dela.

Eu senti uma nostalgia enorme e meus olhos inundaram-se com lágrimas, ao lembrar a última vez que dançamos, exatamente aquela mesma canção. Engoli em seco, tentando desfazer aquele nó que me apertava a garganta, mas não consegui. Sentei-me à uma mesa vazia, com os pensamentos muito longe dali.

- Eles formam um casal tão bonito…

Eu virei-me, para ver quem havia falado. Uma mulher um pouco além da meia-idade, dona de uma das tabernas que participavam do festival, olhava, com ar sonhador, os casais a dançar no meio da rua. Sua atenção estava mais voltada ao jovem de cabelos muito negros e pele morena e à mocinha de cabelos castanhos, emoldurando a face de pele muito clara, decorada com expressivos olhos verdes, que dançavam bem à nossa frente.

- É verdade…

Eu poderia sentir alguma espécie de ciúme ou um instinto protetor qualquer, mas não era o que se passava na minha cabeça naquele momento. Eu os olhava e via outras pessoas, de um passado quase recente. Não era delírio. Era uma névoa que misturava nostalgia, lembranças, sonho e vida real. Na minha visão, ela parecia flutuar e transformar-se na mãe, a dançar com um homem que eu conhecia muito bem... e que já não era o mesmo que a observava, naquele momento. Eu havia mudado... e bastante… No fundo, eu tinha medo que a história, de alguma forma, se repetisse...

No sirtáki dançam-se juntas a forma lenta (argó) e a rápida (grígoro) do hassápiko, que é uma das mais conhecidas manifestações populares, nos festivais de rua. Nas extremidades, como não formam um círculo fechado, os dançarinos giram lenços nas mãos livres. Na tradição, é importante não deixar a mão livre, para não ser segura por algum demónio.

Normalmente, um grande agrupamento se forma, no ponto mais divertido da noite, quando ouvem-se os primeiros acordes do sirtáki de Zorba, como naquele momento.

Um jovem de cabelos muito claros adiantou-se e puxou minha filha pela mão, sendo seguido por uma corrente de outras mãos, que começaram a formar um cordão enorme, no meio da avenida. Um outro cordão de pessoas, com os braços dados, formou-se à frente do primeiro. Nosso amigo esteve na extremidade daquele, mas como distraiu-se e deixou o lenço que segurava ser carregado por um outro, um homem mais velho apressou-se a tomar seu lugar e a festa continuou, como se nada houvesse acontecido. O rapaz franziu o cenho, inicialmente, mas logo voltou ao normal, pois assim ficava mais próximo da posição onde a mocinha dançava e, aparentemente, esqueceu o ocorrido. A multidão ensaiava os passos popularizados por Anthony Quinn, no famoso filme de 1964. Em pouco tempo, todos já seguiam, perfeitamente, a sequência tradicional, como um grande grupo de artistas do bailado. Embora para alguns fosse a primeira vez, para outros, era mais uma… e era divertido para ambos...

- Deem, aos gregos, comida, bebida e música e eles dançarão, felizes, a noite inteira.

- Vejo que é uma grande verdade…

Eu concordava com a senhora, que ainda observava a multidão a brincar, com os olhos um pouco distantes, como se cheios de saudosismo. Quanta história haveria de estar escondida por detrás daquele olhar cansado e nostálgico …

Quando a dança acabou, minha filha correu ao meu encontro, ofegante e a rir, com as faces rosadas. Era evidente que estava a divertir-se muito. Sentou-se ao meu lado e passou o braço no meu, encostando a cabeça no meu ombro. Eu recostei a minha sobre a dela e ficamos a olhar as pessoas a passar. Pouco tempo depois vimos o rapaz aproximar-se de nós, com dois copos de bebida nas mãos. Sentou-se e ofereceu um deles à rapariga, que aceitou, sorrindo. Ele também tinha as faces afogueadas.

- Vamos ao Zorbás? Há música ao vivo e é menos agitado que a rua.

Eu não estava muito animado para ficar num lugar fechado, mas tendo em conta que ela estava tão excitada por concordar, resolvi acompanhá-los. O Zorbás ficava numa das ruas fora do rebuliço da festa e, por isso mesmo, menos movimentadas, o que nos dava um pouco de paz. Quando entramos, entretanto, o lugar estava apinhado de gente a rir e a beber. Alguns dançavam alegremente, mas a maioria somente bebia e conversava. Havia um grupo no palco, a tocar músicas modernas. Passei os olhos à nossa volta, captando os detalhes do lugar. A decoração era simples, mas bastante interessante. Pequenos quadros emoldurados de paisagens e temas típicos da Grécia estavam dependurados nas paredes de pedra nua, à nossa volta. Apesar da pouca luz, alguns pontos estratégicos por sobre as mesas e no bar, assim como no palco, podiam ser vistos com clareza suficiente. Estávamos de pé no meio do recinto, a observar o que se passava. O rapaz pediu licença e deixou-nos. Eu assumi que havia saído para buscar alguma bebida.

Só dei-me conta que ele, ao invés disso, sentara-se numa banqueta de pés altos, no centro do palco, quando começou a cantarolar os primeiros acordes de Thelo na me niosis. A canção, gravada por Nikos Vertis, estava muito bem interpretada na voz do nosso amigo mais recente. Eu não esperava que ele fosse tão afinado e tivesse a voz tão clara. Os outros músicos pareciam conhecê-lo, pela forma como o tratavam. Ele não tirava os olhos da minha filha, enquanto cantava, como se o fizesse somente para ela.

- Να 'ξερες τα βράδια πως μισώ          
  Που με τιμωρούν που σε 'χω χάσει      
  Θέλω να σε δω το ομολογώ                  
  Άλλη τέτοια νύχτα ας μη περάσει         


*(Na 'xeres ta vrádia po̱s misó̱
   Pou me timo̱roún pou se 'cho̱ chásei
  Thélo̱ na se do̱ to omologó̱
 Álli̱ tétoia nýchta as mi̱ perásei)*

- Sabes o que significa?

- Não. Parece triste, por um lado e, mesmo assim, muito bonita e tocante…

- É uma canção de amor… Fala da agonia, que a separação de dois amantes deixa, especialmente quando a noite chega. Tens razão. É romântica e triste, ao mesmo tempo.

- Pois é…

***

*Se soubesses como eu odeio a noite
  Porque sou punido por perder-te
  Eu admito que quero ver-te
  E não quero passar outra noite assim...

***

Pelo jeito que ela tinha toda a sua atenção voltada para o cantor e sorria, enrubescida, tive a impressão que minhas férias daquele verão iam ser, de alguma forma, mais solitárias que haviam sido nos últimos anos. Percebi que eu não estava realmente preocupado, quando aquele pensamento formou-se na minha mente. Quando a performance acabou, ele voltou a juntar-se a nós, sorrindo. Minha menina recebeu-o com um abraço e, consequentemente, com um terno beijo. Vi que estava sendo demais na cena e resolvi dar a noite por encerrada. Ela parecia radiante e, por mais estranho que pudesse parecer, aquilo me deixava feliz. Pedi desculpas e retirei-me. Na saída, esbarrei num rapaz de cabelos muito claros, que entrava apressado e visivelmente alcoolizado.

***

Algumas horas depois, acordei no meio da madrugada, totalmente confuso, com um tumulto de sirenes e vozerio, do lado de fora do condomínio onde ficava a kitchenette. Só dei-me conta do que acontecia, quando minha filha entrou, aos prantos, com a blusa manchada de sangue. Entrei em pânico imediatamente, mas ela não estava ferida.

Um policial, que entrou com ela,  contou-me o que acontecera, já que a menina parecia estar em completo choque. Um rapaz, de cabelos muito claros e visivelmente alcoolizado, entrara no Zorbás e tentara puxar a rapariga para dançar, mas ela recusara-se, sendo defendida pelo parceiro que estava com ela. O outro não aceitou bem a rejeição e partiu para cima do nosso amigo, que esmurrou-o e saiu, antes de causar maior dano. Na porta, chamaram os seguranças, para tomarem providências e controlar o rapaz, que gritava por vingança.

Quando estavam a chegar à casa, algumas horas depois, o rapaz loiro, que os seguira, sem ser visto, puxou uma faca e enfiou-a nas costas do meu futuro genro, um par de vezes e fugiu, quando minha filha gritou, desesperadamente, por socorro. Os ferimentos foram tão profundos, que ele não resistiu até a chegada da ambulância, falecendo no local, esvaindo-se em sangue, pelos pulmões perfurados pela longa e afiada lâmina. Foi tudo muito rápido. Uma verdadeira tragédia, num dia que havia sido tão especial para o jovem casal. Estávamos todos absolutamente horrorizados e revoltados.

***

- Por que, pai? Por que a vida é assim cruel?

- Não sei, filha...

Choramos abraçados, como duas crianças, consolando-nos pelo passado recente e pelo passado distante. A história, que se repetia, tinha a crueldade de demónios que tomam nossas mãos, quando os lenços, inadvertidamente, caem delas.

***

Evitamos voltar ao lugar nos três anos subsequentes, após o trágico acidente. Por insistência dela, porém, retornamos no começo do verão do quarto ano.

Assim que parei o carro na beira da praia, já tão conhecida nossa, o menino de cerca de três anos, com cabelos muito negros, pele clara e olhos azuis, como o céu que se estendia por sobre nós, saltou, impaciente, correndo descalço pela praia, como se fosse um filho de pescador. Ao chegar à beira da água, parou. Ele deu um passo curto e molhou as pontas dos pés. Meio passo atrás, virou-se, olhou-nos e correu na direção das ondas, que quebravam próximas, com seu som característico. Ele ria e saltava as ondas, molhando a roupa toda, sem preocupar-se. A mãe sorriu, divertida, apesar do olhar triste.

- É mesmo meu filho...

- Sem dúvida nenhuma. Meu neto tem uma afinidade muito grande com o grande dragão...

Ela sorriu, mas eu percebi que uma lágrima teimosa, caiu-lhe pelo canto do olho.

O menino correu pela beira da água, até desaparecer na curva da baía. Minutos depois, voltava com uma garrafinha azul numa das mãos e um velho pergaminho, atado com uma linha vermelha, na outra. Disse que havia encontrado a garrafa na praia, meio enterrada na areia, perto de um tronco caído. O papelzinho tinha um pequeno poema escrito.


"Quando me vires,

saberás quem sou,

pela forma como eu te olhar.

Se hesitares em chegar-te,

pensa que eu posso ter esperado

muito tempo

por este encontro

e que já não posso esperar mais.

Se me abraçares,

fá-lo por inteiro,

como se nossos corpos

fossem um só.

Quando me beijares,

então,

que seja como um último,

mesmo que seja o primeiro,

pois o primeiro,

bem pode ser,

também,

o derradeiro."


domingo, 2 de novembro de 2014

Uma Garrafinha Azul (Parte 1 de 2)


- Fala-me do mar. Eu gosto de ouvir as histórias e de imaginar como deve ser… imenso… talvez até assustador…

- É mesmo como um imenso lago, mas com as águas sempre revoltas, mesmo quando parece calmo. É salgado, profundo… e frio… No meio da noite, quando os ruídos todos desaparecem, pode-se ouvir seu rugir, como se fosse um dragão inquieto, a reclamar a posse de algo que sempre havia sido seu, mas que lhe fora roubado por algum deus cruel e injusto…

- Eu quero conhecer o mar. Levas-me, um dia?

Ela olhava-me com os olhos de súplica, sonhadores e cheios de uma antecipação estranha e extremamente doce.

- …Por favor?

- Levo, sim. Um dia…

E seus verdes olhos miravam um ponto distante, a desejar a viagem… a imaginar um grande dragão pardo, deitado sobre um imenso areal, preso na angústia de um vazio inexplicado, a rugir inquieto e impotente, atormentado por sonhos de liberdade e a lamentar uma grande perda.

Eu nascera na ilha, numa sexta-feira de Outono. Talvez por este motivo, sempre tivera um estreito e íntimo contacto com o mar e os ventos, durante toda a minha vida. Eram tão parte de mim, como o sangue que me corria nas veias. Quando menino, a primeira coisa que fazia, ao levantar, era abrir a janela e olhar o mar, para ver de que lado o vento soprava. Neto de pescador, aprendi a ler os sinais da natureza, para ter uma previsão aproximada do tempo.

O avô levantava cedo e ia para o mar, buscar a rede que havia colocado na noite anterior. Eu sempre o via, de longe, na canoa, a recolher a rede com os peixinhos, que ele sempre trazia, no tempo em que abundavam na baía. Muitas vezes mandava alguns para o nosso almoço. Eu era uma criança, mas sabia da afinidade que tínhamos com o mar e os peixes. Minha mãe dizia que ele descendia de espanhóis.

Era um homem alto, mas já andava meio curvado pelo peso dos anos. Tinha o nariz adunco e usava óculos com aro de tartaruga. A cabeça calva, estava sempre coberta por um chapéu de feltro, clássico e cinzento. Vestia sempre camisas brancas, com as mangas arregaçadas e calças cinzentas. Em dias de gala, ou de missa, vestia um terno preto, de risca de giz e o chapéu, também preto, reservado para aquelas ocasiões. Era engraçado vê-lo alinhado, quando na maioria dos dias, parecia vestir a mesma roupa. O avô morava no continente, para onde nos mudamos, quando eu tinha cinco anos de idade.

A ilha ficava sempre à nossa vista, quando abríamos as janelas, que tinham face para o leste. O pai ensinara-me a nadar. No mar. Eu adorava passar horas dentro da água quase morna da baía, a nadar, mergulhar, aprender a segurar o fôlego dentro da água. No verão, as águas eram sempre verdes, exceto em dias de vento sul, quando ficavam turvas e pardacentas. No inverno, em dias claros, o mar parecia um espelho. Em dias de vento tinha o mesmo tom pardacento, com as ondas a quebrar-se, violentas, contra as rochas e as paredes das casas, construídas muito próximas da linha das marés. Eu passava horas a olhar o mar, com os pensamentos longe, sendo embalado pelo som característico das ondas, que lambiam as areias, constante e insistentemente. Adorava caminhar pela orla, com os pés dentro da água, a pisar a areia fofa e branca. O mar era meu elemento mais natural. Era onde eu me sentia mais à vontade, mais tranquilo e mais seguro, dentro do limite do respeito que tinha, pela sua grandeza e força indomada.

Ela nunca havia estado frente a frente com uma energia tão poderosa e tão incompreendida, como aquela imensidão verde escura, salpicada de linhas brancas, entrecortadas, na distância.

Quando chegamos ao local que eu amava, desde criança e parei o carro, nós saltamos e caminhamos, lado a lado, até a beira do penhasco. Eu podia sentir a apreensão e a ansiedade que emanava dela, enquanto tentava controlar o ritmo de seus passos. Ela, então, abriu um sorriso imenso e inspirou o ar salino, com ambos, o nariz e a boca. Parecia faminta de mar e aquele momento era um grande marco em sua vida, quando ia finalmente conhecer o grande e inquieto dragão, que rugia, intrépido e inconformado, lá em baixo.

Ela, então, meteu a mão dentro da bolsa, donde resgatou uma pequena garrafa azul, que tinha, dentro, um rolinho de papel amarrado com uma linha vermelha e com um detalhe, que eu considerei de um requinte excepcional: a rolha estava lacrada com cera. Ela pensara em tudo, por incrível que pudesse parecer-me. A intenção de manter a mensagem protegida, seca e intacta, com aquele subtil pormenor, surpreendeu-me, a ponto de achar graça da esperteza dela. Eu não teria pensado naquilo… jamais...

- O que tens aí?

- É uma mensagem que eu escrevi. Coisa minha… não vale a pena incomodar-se com isso.

Ela jogou a garrafinha ao mar, antes mesmo que eu pudesse pensar em fazer qualquer coisa. 

De cima do penhasco, ficamos, os dois, a olhar o mar a bramir lá em baixo, com sua fúria incontida, seus braços de ondas e suas mãos de espuma, a receber e a carregar, para longe, a garrafinha que continha uma inocente mensagem secreta. Ela levantou a mão, mas parou o movimento a meio, quando deu-se conta que eu havia percebido seu gesto quase involuntário.

- A quem tu ias saudar? Neptuno? Ou ias acenar um adeus à garrafinha? Eu não acredito que, na tua idade, ainda acredites em deuses do mar e mensagens secretas. Deves estar brincando comigo…

Ela enrubesceu, com uma irritação quase fingida. Olhou-me e soltou um imprecativo qualquer, entre dentes. Depois disse-me em voz alta:

- Não adianta conversar contigo sobre certas coisas. Tu és muito pragmático… não tens imaginação. Quando eu era criança, tu eras bem mais… aceitável… Sabes o que mais? Falta-te fantasia. Por isso tua vida é tão previsível e sem cor.

- Pois é verdade. Assim, pelo menos, sei exatamente onde piso. Não achas que seja melhor?

Ela virou-se, impaciente e caminhou de volta ao carro. Não tinha muitos argumentos contra minha triste realidade. Eu ri alto. Meus olhos acompanharam aquela jovem mulher, a seguir, com passos firmes, para longe de mim, enquanto meus pensamentos desbobinavam os fios do tempo, tentando encontrar um ponto de referência. Virei-me de volta para o penhasco, a olhar o imenso e infinito mar e disse, para mim mesmo, em voz baixa:

- Onde foi que eu perdi a capacidade de sonhar e de fantasiar, afinal? Quando foi que deixei de ouvir o dragão a rugir sobre as areias da praia, acorrentado em seus próprios medos e angústias? Quando foi que os meus próprios problemas cegaram-me, ante a beleza da imaginação e da minha capacidade de sonhar?

- Vamos!

Ela estava ao volante, a buzinar. Tinha uma necessidade premente de chegar à praia. Queria molhar os pés na água salgada. Apressei-me a entrar no carro, ao seu lado. Ela parecia uma criança, num dia do aniversário, correndo para o local da festa. Eu ri dela. Ela simplesmente conduziu até o fim da estrada e, quase sem assegurar-se que o carro estava mesmo parado, saltou e tratou de livrar-se dos sapatos, enquanto corria na areia fina e fofa, que rangia a cada passo que dava.

Parou quando chegou a beira da linha da água. Eu a observava de longe, estudando sua reação. Ela deu um passo curto e molhou as pontas dos pés. Meio passo atrás, virou-se, olhou-me e correu na direção das ondas que quebravam próximas. Ela ria e saltava as ondas, molhando a roupa toda, sem preocupar-se. Eu via a mesma criança que ouvia as histórias sobre os dragões e o grande e imenso mar, a enfrentá-los, destemida, apesar do choque inicial e a portar-se como se fosse tão íntima deles quanto eu havia sido, desde meus tempos de menino.

***

- Ouves?

- Uhum… Está calmo… Parece que ronrona…

Deitada no banco da varanda, ela tinha os olhos fechados, a cabeça recostada nas minhas pernas e sorria. Deu um salto, com os olhos arregalados, a olhar-me como se tivesse tido o lampejo de uma brilhante ideia.

- Onde será que está a garrafinha? Será que alguém a achou?

- Deve estar no outro lado da praia. Normalmente as marés carregam os pedaços de madeira de um lado ao outro… a garrafinha não deve estar muito longe…

Ela ficou séria. Pareceu-me grandemente decepcionada.

- Oh. Pensei que ia bem mais longe…

- Às vezes vai… depende das marés…

Tentei deixá-la esperançosa, mas eu não tinha certeza do que dizia. Ela deitou a cabeça nas minhas pernas, outra vez, e ficou a ouvir o silêncio da noite e o ressonar, baixinho, do dragão… Adormeceu ali mesmo. Tomei-a no colo e deitei-a na cama que ela mesma havia preparado, depois de jantar. Eu tinha que dormir na sala, porque a pequena kitchenette que alugamos, para uma semana, tinha apenas um quarto.    

Todas as manhãs, saíamos a caminhar pela praia, abraçados, a molhar os pés na água. Almoçávamos na aldeia, passeávamos, mas o mar era nosso ponto mais frequente. Ficávamos horas e horas a olhar as ondas a quebrar, ou as gaivotas a voar, a sentir a quietude da vida e sem dizermos nada.

Na manhã do dia da partida, quando acordei, não a vi. A porta estava destrancada. Era cedo ainda. Ela saíra, sozinha, a caminhar. Preparei um café fresco e esperei um pouco, mas não havia sinal dela. Antes de ficar preocupado demais, vesti uma sweatshirt e saí a procurá-la na praia. Segui as poucas pegadas deixadas na areia, por um par de pés pequenos. Deviam ser dela. Encontrei-a sentada sobre um tronco caído, a olhar a linha do horizonte, com a expressão mais sonhadora que jamais havia visto.

Ela parecia diferente. Eu aproximei-me e sentei-me ao seu lado, sem dizer nada. Estávamos ambos a olhar o horizonte. Ela suspirou.

- Nunca chegamos a encontrar a garrafinha. Deve ter sido levada para mais longe… Isso é bom…. Acho…

Eu passei o braço por trás dela e puxei-a para mim. Ela recostou a cabeça no meu peito e ficou quieta.

- Queres falar sobre isso?

- Não.

Respeitei sua privacidade e seu secretismo. Ela não acreditava que eu pudesse compreender a fantasia que criara e a mensagem que, talvez, nunca viesse a saber o teor que continha. Levantei-me e convidei-a para caminhar de volta, para comer alguma coisa.

 - Podemos ficar um dia a mais? Quero ter certeza que não vou encontrar a garrafinha destruída, na praia.

Eu levantei o sobrolho e ela fez um muxoxo.

- Por favor…

- Não era este o plano, mas tudo bem. Temos que ver se podemos ficar na kitchenette por mais esta noite.

Ela deu um salto e, sorrindo, abraçou-me, beijando-me a face.

- Obrigada.

Eu tentava ser um pai complacente, desde que ela perdera a mãe, fazendo-lhe algumas vontades e restringindo outras. Ela não era muito exigente, mas o mar era uma questão à parte. Era um desejo que tinha desde menina, quando ainda acreditava em fantasias e dragões. 

Reconheci que eu mesmo não tinha vontade de voltar. Estava tão bem, ali na praia. Ela, portando-se, definitivamente, como minha única e legítima filha, demonstrou uma afinidade descomunal, com um elemento com o qual entrava em contacto pela primeira vez. O mar era nosso elemento natural. Estava no nosso sangue, sem dúvida alguma. 


O meu avô teria orgulho da bisneta.


segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Super-Herói (Verso e Reverso)


Às vezes, ele chora… quase em silêncio, como a chuva fina de Outono, quando os dias são cinzentos e melancólicos e as noites são escuras, densas e longas demais. Sua tristeza parece-me tão lancinante e amarga, que deixa-me sem saber o que fazer para tentar apaziguar aquela dor. Seu olhar fica distante e as lágrimas rolam, silenciosas, rosto abaixo.

Aquele sofrimento evidente enche a minha alma de pesar, como se a sua angústia fosse, também, uma melancolia a pintar minha alma com tons lúgubres e pardacentos. Ouço seu longo suspiro e entro no quarto, a fingir que preciso de alguma atenção para abrandar qualquer medo que me pareça coerente naquela hora.

Ele me toma no colo e pede-me para acalmar. Eu recosto-me sobre seu peito, fecho os olhos e aquieto-me, finalmente. Ele, então, beija-me a cabeça, com um carinho triste e, mais sereno, abraça-me com firmeza, como se tentasse assegurar-se que não vou deixá-lo só.

Mal sabe ele que o que faço é uma tentativa desajeitada de aplacar-lhe aquela aflição, demonstrando uma calculada dependência ao seu afecto e à segurança e paz que ele me traz.

Algumas outras vezes, entretanto, seu pranto vem em torrentes, como os temporais de verão, pesados e ruidosos, que chegam a assustar os corações mais desavisados. Nestas horas, sou eu quem o abraça, com meus braços pequenos e, que em silêncio, dá-lhe o peito para que ele chore, sem vergonha e sem receio de parecer, de alguma maneira, ridículo. Faço-me de forte, para que ele tenha onde se apoiar.

Aquela tormenta é mais cortante. É um mistério não revelado, na minha incauta mente. Ele tenta controlar-se, pede-me desculpas e recompõe-se a procurar algo imediato para fazer e espairecer, tentando aliviar minha preocupação evidente. Finjo que acredito que está tudo bem, sabendo que nunca saberei a razão daquele momento em que suas defesas caem todas por terra.

Às vezes, capto um flagrante dele, quando observa-me a brincar e vejo tão-somente ternura e leveza na expressão que sua face amadurecida revela, quase sem querer. São naqueles momentos em que tenho a certeza absoluta que ele me ama. A sua forma de me olhar demonstra isso claramente... e comove-me sobremaneira.

Quando os trovões me acordam em sobressalto e eu choro assustado, no meio da noite, ele me acode, senta-se ao meu lado e, acariciando-me as costas e a cabeça com suas mãos grandes e fortes, faz-me sentir seguro com sua presença marcante de super-herói. E ele diz-me ao ouvido, para não ter medo, que ele está ali a proteger-me e pede-me para ter coragem. Ele deita-se ao meu lado e espera que eu adormeça, finalmente, sentindo-me o mais afortunado e protegido ser do universo.

À noite, olho as estrelas e a lua, sentado à janela do meu quarto, pensando nas histórias que ele me conta, imaginando como pode alguém ter chegado lá em cima, tão distante daqui… e ainda caminhado naquele imenso deserto de prata…

Ele disse que somos dois guerreiros – parceiros de luta... sobreviventes… Eu não sei se percebo bem o sentido das palavras, mas sinto o que ele quer dizer. Nós enfrentamos, juntos, o sufocante e imenso escuro do quarto, as noites de tempestades, o frio dos invernos e uma série de novas aventuras na cozinha e no jardim.

Ele é mesmo um grande guerreiro. Talvez o maior de todos os tempos. Um herói feito de força e pujança, sentimentos e ternura, com uma alma generosa e gigantesca.

Ele está sempre atento. Respeita meus limites e minha individualidade e dá-me tempo para explorar e aprender. Ensinou-me, também, a prezar por todas as coisas e todos os seres, mesmo os mais pequeninos – que podem ser, também, os mais indefesos. Acho que este homem conhece o verdadeiro sentido da palavra amor e da responsabilidade que a mesma traz. Tudo, nele, é bondade e tolerância – especialmente quando se refere a mim.

E quando me olha, até mesmo aquele seu olhar triste e sofrido, de quem já enfrentou tantas lutas, com tantas vitórias e umas tantas derrotas, torna-se completamente afável e condescendente. É forte e maduro, como todo grande homem deve ser. É também delicado e vulnerável, como poucos grandes homens conseguem ser, diante de quem confiam cegamente.


Eu sou apenas uma criança, mas tenho plena noção que meu pai sabe que, na minha inocência e fragilidade, eu dou-lhe toda a energia e o apoio que ele precisa, para ser um homem admirável e um herói magnífico... um verdadeiro Super-Herói.

domingo, 3 de março de 2013

O Que Passar Pelo Meu Coração… (Whatever Walks In My Heart)1








A conexão perdida, por atraso e irresponsabilidade de uma companhia aérea, dias perdidos em fila de espera, até finalmente conseguir lugar em um voo cheio, mas garantido, haviam dado cabo de qualquer sinal de tolerância e educação que ele alguma vez tivera. 

O homem de meia-idade - cabelos castanho-claros, levemente ruivos, cortados curtos e cuidadosamente penteados – ajustou os óculos de aro de metal, que escorregavam lentamente de seu nariz. Aparentemente alheio aos outros expectantes sentados à sua volta, no movimentado hall do aeroporto internacional, aguardando a hora de, finalmente, viajar de volta ao bem-vindo conforto de seu pequeno lar, nunca pensara que fosse desejar tanto estar em outro lugar, que não ali, naquele momento. Ele só queria mesmo que aquele dia passasse o mais rápido possível… 

Seu humor estava pior a cada hora que passava. Além de abominar as infindáveis horas entre as conexões, considerava cada viagem intercontinental, em si, uma verdadeira perda de tempo e um teste à sua parca tolerância. Até chegar de volta à casa, cerca de vinte e quatro horas ter-se-iam passado, numa situação normal. Aquela jornada, porém, já gastara praticamente mais de meia semana de seu tempo… e sua paciência já havia passado do limite aceitável. 

Chegar em casa… aquele era um conceito estranho. “Home is where your heart is”2 (Lar é onde teu coração está)… E onde estava seu coração, afinal? Entre dois países, entre aquilo que parecia como se fossem duas vidas diferentes, separadas por um imenso oceano, ele já não sabia mais exactamente onde ficava o lugar que pudesse chamar de lar

Sentado à desconfortável cadeira plástica, por muito tempo, ele estava inquieto e se irritava com qualquer coisa que ouvia ou lia. Ao invés de ficar contente por finalmente ter as coisas alinhadas, ainda remoía os dias passados e as dificuldades que tivera para chegar ao ponto em que estava. A certa altura, mesmo a música a tocar nos fones de ouvido tivera que ser desligada e devidamente guardada, pois ao invés de acalmá-lo, estava a deixá-lo mais tenso. Seu único consolo, naquele momento, era o vôo ser nocturno, o que se constituía uma vantagem, pois tencionava dormir durante boa parte do tempo.

Até então, não percebera que também era alvo dos olhares e da curiosidade de outros viajantes, acomodados ali à sua volta, à espera do mesmo que ele: entrar no grande avião, que os levaria, por mais de dez horas, ao destino comum - um pequeno país da velha Europa. 

Passou os olhos à volta, esquadrinhando as faces dos desconhecidos vizinhos, já que não havia muito mais a fazer e ainda tinha muitos minutos de sobra, até a hora do embarque. Sua atenção voltou-se, por uma fracção de segundos, para um rapaz de cabelos e olhos claros, sentado ali perto, ainda que sem causar mais que um simples interesse momentâneo - daqueles que se tem por uma pessoa que considera agradável e sabe que nunca mais encontrará em nosso caminho - aquelas pequenas distracções que a gente tem, ao encontrar estranhos, de passagem, em lugares igualmente desconhecidos. 

Às vezes, generalizar os eventos simples que se sucedem em nossas vidas, pode levar a um grande engano. E ele ia perceber isso naquela mesma situação, apenas um pouco mais tarde. 

‘Nada acontece por acaso’, havia-lhe sido dito, naquela mesma tarde, em conversa informal com o motorista do táxi - um visionário, provavelmente - quando iam a caminho do aeroporto.

Em triste consequência da paranóia deixada pelos atrasos e confusão até então acontecidos naquela viagem, perdeu o interesse em praticamente tudo – a não ser o de alojar-se na sua poltrona - do momento em que entrou na fila de embarque, até sentar-se, finalmente, no seu lugar. A partir dali, já menos preocupado, ficou a observar as pessoas passarem, à procura de seus assentos. Algumas pareciam meio perdidas - provavelmente marinheiros de primeira viagem; outras vinham a caminhar, indiferentes, ao longo da grande nave - com certeza os chamados “frequent flyers”

Quando estava inspirado, em viagens normais, enquanto observava, fazia análises mentais rápidas, tentando construir uma pequena história para um e outro passageiro, que lhe parecessem mais singulares. Pessoas constituíam-se materiais interessantes para um espectador imaginativo como ele. Naquele dia, contudo, nada lhe era muito atractivo. Estava cansado…

Um jovem que aproximava-se pelo lado esquerdo, a procurar, com os olhos, o número de seu lugar, parou ao lado do homem sentado junto ao corredor, na mesma fileira que ele. Acomodou sua pequena mochila de lona parda no compartimento acima das poltronas, abriu um largo e simpático sorriso e pediu licença para sentar-se a seu lado. Reconheceu-o como o tal rapaz que havia-lhe chamado a atenção um pouco antes, na sala de espera do aeroporto. Daquela vez, observou-lhe, detalhadamente, cada pormenor. 

Tinha estatura mediana, penetrantes olhos azuis, cabelos claros cortados curtos e um corpo vigoroso, em contraponto às mãos quase pequenas, não exactamente delicadas. Ele, que tinha um interesse acima do normal por mãos – esteticamente - observou-as tão longamente quanto pode. Eram firmes, pareciam um pouco calejadas pelo trabalho árduo e tinham, ao mesmo tempo, forma e graça genuínas. Passaram-lhe a ideia de uma força generosa e destemidamente disponível.  

Já devidamente acomodado no assento a seu lado, apresentou-se polidamente e começaram a conversar. Muito inversamente ao que lhe era de costume em viagens como aquela, a prosa fluiu livre a noite inteira, como se fossem conhecidos de longa data. Esqueceu o sono e outras distracções habituais - os filmes, revistas e livros - naquela noite e dormiu o mínimo possível… A jornada, afinal, acabara transcorrida rápida demais. 

Apesar da tenra idade, o rapaz apresentava uma maturidade incomum para um homem tão jovem e, quando ria, parecia uma criança – tão aparentemente inocente e livre de qualquer preconceito… tão cheio de um frescor sem igual e tão aberto para a vida. Era como se vivesse num mundo muito diferente do seu – o mundo de um razoavelmente bem sucedido executivo de meia-idade - o que era, de certa forma, a mais pura verdade.

Quando se olharam, quase acidentalmente, um nos olhos do outro, o homem sentiu-se quase desconfortável e fora de contexto, como um menino que experimentava as estranhas emoções do primeiro dia na escola. O rapaz exibia uma postura, perante à vida, que o fez sentir-se bastante mesquinho e materialista. Ele ficara encantado com aquela visão de mundo e com outras prioridades existenciais - absolutamente tão díspares das suas próprias. Sentia-se como se fosse uma desengonçada, lenta e sombria lagarta a contemplar, invejoso, aquele ser já tão completamente provido de asas… e que asas enormes ele tinha!!!  

Dizer adeus, foi mais difícil que ele poderia alguma vez sequer imaginado. Suas vidas tomavam destinos bastante separados a partir dali. Por algum estranho motivo, porém, aquele aperto de mãos, na despedida, mostrou-lhe que sua emoção havia sido seriamente afectada por aquele encontro que pareceu tão casual - no início - mas na verdade, abriu-lhe os olhos para realidades que ele não estava acostumado a vislumbrar.

Não chegou a questionar-se o que acontecia com suas emoções. Aceitou de peito aberto aquela sensação nova, que se apossava dele, com a celeridade, o carinho e o aconchego de um bem-vindo e forte abraço. Era o Universo fazendo-o contradizer as impressões que tivera apenas algumas horas atrás.

Quando saiu pela porta giratória do aeroporto, o ar fresco da manhã esfriou seu corpo e sua alma, numa cruel onda de choque, que lhe fez vir, imediatamente, lágrimas aos olhos. 

Estava de volta ao mundo real, que passava em alta velocidade pela janela do táxi e o levava de volta à sua vidinha medíocre que, de repente, pareceu-lhe extremamente fria, melancólica e até um tanto obscura. No bolso, guardado como um pequeno tesouro, um pedacinho de papel trazia, escrito numa letra miúda e singular, o que parecia uma frágil âncora com a esperança: um endereço de e-mail. 

O despojamento que invejou naquele homem – provavelmente vinte anos mais jovem que ele - detectado numa conversa breve, de apenas algumas horas, passou a assumir instintiva e gradualmente em sua vida, a partir daquele momento. 

Sentia necessidade daquela transformação – natural -, motivado por influência da exuberância e da forte presença daquela criatura, que não pareceu ter noção do profundo e extremo efeito que causara em sua vida e em seu comportamento. 

Era como se fosse um filho que houvesse ensinado, com o seu simples exemplo, uma grande lição de vida a seu pai que, mais agradecido que surpreso, decidira mudar seu próprio comportamento, tentando ser um homem melhor dali para diante. 

Não somente por educação, uma mensagem de contacto fora imediatamente respondida, para sua completa surpresa. A cortesia foi retribuída com pedaços desastrados de emoção – pequenos poemas, escritos com exclusividade. Iniciava-se ali um período de contactos bastante frequentes, apesar da grande distância física que os separava.

Quando conversavam, por e-mail, Messenger ou telefone, ele perdia a noção do tempo e abria completamente sua alma. Falavam sobre assuntos que ele não costumava discutir com qualquer outra pessoa. Percebeu também que não era o único a sentir-se tão à vontade. De sua parte, teve a certeza que seu coração havia-se transformado num lugar melhor. 

Foi a primeira vez que as palavras de carinho fizeram-lhe algum sentido. Acreditou piamente no significado e valor delas e na sinceridade do interlocutor. Absorvido pela simpatia e afeição que recebia, não pensava em futuro: só queria estar naquele momento presente, naquele estado e, com certeza quase absoluta, em outro lugar – desde que fosse mais perto do jovem que lhe abrira os olhos. No conforto de um abraço, onde nunca esteve, ele se imaginava aquecido e protegido.

Foi tomando conhecimento, aos poucos, de sua história de vida e de algumas de suas maiores angústias e desilusões. Seu espírito estilhaçou-se em milhares de pedaços, quando o rapaz lhe disse, certa vez que, no começo de sua vida, procurava alguém que amasse, depois contentou-se apenas em ser amado e, mais tarde, ficava feliz em ter alguém que não o fizesse sofrer… 

Aquela triste constatação - vinda de uma alma tão jovem - atingiu, como um tiro certeiro, seu pobre e frágil coração - distante demais para ajudá-lo ou ampará-lo… Ouvir seu desabafo era o melhor que ele podia fazer. Não era por ele que o rapaz sofria, mas era a ele que recorria. Que mais podia-se esperar da vida?
 
Separados por mais de um continente, embora desejasse, de alguma forma, protegê-lo de qualquer sofrimento, o máximo que conseguia oferecer-lhe era sua disponibilidade para ouvir seus lamentos e chorar junto com ele, ao telefone, por minutos incontáveis...

Sabe quando a gente gosta tanto de alguém, que chega a doer?

Ele rezava, todas as noites, para que o jovem fosse feliz e para que os céus lhe enviassem anjos protectores, cada vez que ele se sentisse só ou triste. Seu maior desejo passou a ser de defendê-lo de todos os perigos que pudessem aparecer. “Almost hope you’re in heaven, so no one can hurt your soul”3 (Quase desejo que estivesses no Paraíso, de modo que ninguém pudesse machucar tua alma) …
 
Mas, como já devia esperar, os contactos começaram a escassear. Não era exactamente por culpa de nenhum deles. As circunstâncias de suas vidas, tão separadas e tão distantes, bem como os pequenos – e também os grandes - problemas diários, não os favoreceram…

A distância aumentava com o passar de semanas sem as notícias - que ele procurava insistentemente - dia após dia, quando chegava em casa. O silêncio tornara-se profundo e sombrio, como os mistérios do mar. O tempo dilacerava-lhe as entranhas e turvava-lhe a memória, com seu punhal lento e perverso, a cortar-lhe a alma, sem piedade nenhuma, enquanto um veneno corria-lhe pelas veias, intoxicando-lhe o discernimento e causando-lhe delírios de insegurança.

Mesmo assim, sem forma de favorecê-lo com sua espontânea protecção, ele continuava a rezar, insistentemente, para que o outro se encontrasse… que fosse feliz… que não sofresse… Seus primeiros pensamentos do dia e também os últimos da noite eram, invariavelmente, dirigidos para ele. 

Para compensar a ausência e a distância que os separava, ele procurava aqueles olhos em outros rostos, tentando reacender a memória e resgatar pedaços perdidos dele mesmo, sabendo que estava se iludindo, para diminuir a dor da saudade que sentia. Tentava convencer-se que aquilo tudo era uma outra realidade, criada em sua mente, para manter-se vivo, enquanto finíssimos grãos de areia dourada corriam, incessantes, na grande - e rebuscadamente decorada - ampulheta da existência. 

Decidiu que tinha que dar-se espaço e tempo, para que aquela espécie de obsessão não sufocasse seu incomum relacionamento. Temia, porém, que estivesse cometendo suicídio ou compensando sua débil paixão, com uma falsa esperança. 

Para apaziguar seu coração e dirimir todas as dúvidas e incertezas, convenceu-se que precisavam se reencontrar. Não seria uma tarefa fácil. Tentou organizar-se de muitas maneiras, em várias ocasiões. Alguma coisa sempre dava errado, na última hora, para seu grande desespero. Ou o Universo - ou o rapaz - estavam lutando contra sua vontade.

Desconfiado que fosse uma combinação de ambos, quase desistiu, mas por uma feliz coincidência, foi surpreendido pelo acaso do destino, mais uma vez. Acabaram por combinar almoçarem juntos, num domingo de verão. Pegou a estrada bem cedo pela manhã, enquanto o sol ainda não castigava demais o longo caminho de asfalto. A viagem devia levar cerca de três horas. Estava ansioso… e inseguro, ao mesmo tempo. 

A educação e gentileza que o jovem lhe dirigiu foram sem precedentes e ele deixou-se ficar à vontade desde o primeiro instante em que se viram. Passaram o dia a conversar, rir, almoçaram juntos e contaram histórias, como dois grandes amigos de longa data. Com um forte abraço de despedida, o encontro acabou… assim, educadamente.

Enquanto tuas asas
De luz
Refrescavam a febre
Que eu sentia
Em minha alma,
O calor
De teus braços
Aquecia o frio
No meu coração...6

O homem mais velho ficou um pouco preocupado, ao voltar mais uma vez à sua vida. Embora tivesse sido extremamente controlado, pensou que talvez sua ansiedade acabara por decepcioná-lo. Na viagem de volta, ao final da tarde, em meio aos imensos congestionamentos de fim de praia, foi pensando no que acontecera, revivendo os momentos, os sorrisos, as palavras… vezes e vezes incontáveis…

Reflectiu, por muito tempo, sobre o que aconteceu naquele dia. Ele, que tinha tantas expectativas, viu-se um tanto perdido, tendo percebido que tudo passou-se tão serena e educadamente. Não fora, de maneira alguma, decepcionante. Fora, somente, morno demais… certinho demais…

Teria ele esperado mais que realmente merecia? Teria o outro cedido a encontrar-se, apenas por educação, para que o deixasse, finalmente, em paz – pelo menos por uns tempos? 

Ele nunca iria ter respostas para aquelas questões… e talvez não as quisesse respondidas, de qualquer forma…

O tempo confirmou que estava certo em preocupar-se. Teve que aprender a aceitar que a condição de se ter de estar longe aniquila os relacionamentos, mesmo com a proximidade que a tecnologia ‘on line’ traz hoje em dia. Ele achava que a distância diminuiria, mas estava enganado, pois nada resiste à força do tempo, associada à frieza cruel do afastamento. 

O objecto da sua autêntica afeição foi espaçando as notícias, mais que anteriormente. Talvez ele tenha, mesmo, sido apenas educado e cedido aos seus apelos de revê-lo, afinal…

Sentia que ia, aos poucos, abandonando seu pobre coração que, aconselhado pela razão, foi-se conformando com aquela ausência, aceitando a distância e o silêncio, com uma naturalidade que, em outras épocas, até seria fora do normal. 

Aqueles olhos, porém, seguiram-no por mais tempo que esperava. Eram muitas feridas que fechavam demasiadamente vagarosas, deixando profundas cicatrizes, daquelas que não se apagam jamais. Ele ainda mantinha uma palhinha de esperança, embora soubesse, desde o começo, que não acreditava em milagres. Sentia como se não quisesse - ou devesse - preencher aquela lacuna deixada em seu coração.

Procurava, entrementes, aqueles olhos e sorriso nos rostos de outras pessoas, tentando compensar uma tão sentida ausência. Tudo o fazia lembrar daquele jovem… Algumas vezes era aquela curvinha nas extremidades do sorriso largo, às vezes os olhos, extremamente azuis. Seus pequenos detalhes decoravam outras faces, outras personagens que cruzavam seu caminho. Até mesmo o rapaz que trabalhava no prédio ao lado, com seus olhos cor de safira, cabelos claros e corpo semelhante, faziam seu coração pular de alegria, quando passava pela janela, a caminho do restaurante.

Por um bom tempo ainda, suas orações foram para que o rapaz fosse feliz, mesmo que não tivesse mais quase nada com a sorte do outro. Ele queria, mas sabia que não devia, procurar mais contactos, pois acreditava que todas as pessoas têm o direito de ter sua privacidade assegurada. Têm também o direito de não se comunicarem com quem não desejem. 

Era assim que via aquela falta de contacto: sua muito pouca vontade de falar, comunicar, ver…. Uma preservação da espécie. E neste caso, ele se sentia como um verdadeiro predador. E que sensação estranha era!

Embora nunca houvesse sequer falado sobre isto, outras pessoas sempre lhe diziam que nenhum relacionamento resiste à distância, por muito tempo… nem ao silêncio. Ele não queria aceitar o óbvio: que as pessoas tinham razão, afinal de contas. Perguntava-se, porém, por que seu coração não se conformava de vez e tocava a vida adiante, sem sofrer mais que o necessário. Sabia que era o único responsável pela sua própria aflição. 

Mas era um homem maduro com espírito de menino e este, na sua simplicidade, entregava-se sem restrições às emoções a que se via enfrentar. Era difícil aceitar as perdas e ele não queria sentir-se derrotado. Pelo caminho, ia-se enganando de foco, tentando ajustar suas miras, procurando acertar o ritmo da sua vida, que não se conformava em se manter prático e gostar somente de quem gostasse dele. Pelo caminho, ia tentando não sofrer, dançando com seus fantasmas e sua dor, na tentativa de confortar sua razão, com pedaços alquebrados de emoção. 

What is love, but the strangest of feeling? A sin you swallow for the rest of your life? You´ve been looking for someone to believe in and love you until your eyes run dry…”4 (O que é o amor, senão o mais estranho dos sentimentos? Um pecado que tu engoles pelo resto da tua vida? Tens procurado por alguém em quem acreditar e que te ame até teus olhos secarem) …

Depois de vários meses de silêncio, como por encanto ou brincadeira do destino, o jovem voltou a aparecer no messenger. Parecia ser a mesma pessoa de sempre, com os mesmos problemas e a mesma conversa adorável de tempos atrás - a mesma pessoa que havia ganho seu coração e sua atenção, sem restrições. Daquela vez, todavia, sua emoção reagiu diferente da sua razão. Alguma coisa no fundo de sua lógica gritou em estado de alerta.

A dor da solidão, a decepção e o abandono amadurecem e enrijecem a alma de uma pessoa de uma maneira um tanto desumana. Sentiu que já não era mais o mesmo que havia sido… infelizmente. Seu coração passara a ansiar por uma reconciliação consigo mesmo e, para alcançá-la, precisava ficar longe de novas… e também de velhas… desilusões. Ele se preparava para que outras emoções pudessem tomar o espaço que fora deixado aberto em sua alma ainda não completamente cicatrizada... 

Há não muito tempo, estaria de cabeça baixa e procurando vestígios da presença do outro, em cada espaço e tempo, em cada olhar que cruzasse com o seu. Naquela ocasião, porém, seu peito abria-se e permitia-se querer ser independente, libertando-se - com desprendimento, mas deixando marcas de um carinho imenso, que sentira desde sempre por aquele airoso personagem - que invadiu sua vida, sem querer - e que ensinou-o a ser melhor que alguma vez já houvesse sido. 

 Never mind I’ll find someone like you… I wish nothing but the best for you too… Sometimes it lasts in love, but sometimes it hurts instead…”5 (Não tem problema, eu encontrarei alguém como tu… Eu desejo nada mais que o melhor para ti também… Algumas vezes o amor permanece e, outras, entretanto, dói) …

Ele passara a esperar que outras pessoas pudessem tomar sua atenção, de uma maneira mais leve... e tencionava poder divertir-se com aquilo. Embora anteriormente suas emoções fossem como as águas do oceano, num vai e vem infinito, à beira da praia, agora ele precisava estabilizar as marés e ser como um lago de águas mais calmas, ainda que, mesmo assim, profundas e um tanto obscuras… Seu espírito ansiava por alguma paz e, talvez, independência. 

Tinha necessidade de ser um novo homem – original e mais leve – que não revivesse sofrimentos e que lembrasse apenas das coisas boas que ficaram gravadas no seu coração, para seu bem e para a preservação da sua estimada sanidade. 

Apesar de sentir falta das palavras que nunca mais ouvira, tinha, definitivamente, que seguir adiante. Era sua vida e ele estava disposto a enfrentar o que viesse pela frente.

- Me abandonar,
Me deixar levar –
Ser um pensamento
Solto
No vento;
Ser sempre uma lembrança
Daqueles pequenos momentos,
Que nunca duram
O suficiente,
Para ser demais:
As pequenas eternidades
Do coração…6

Desejou-lhe felicidades, em alta voz, como se falasse ao vento do mar e abriu-se para o mundo.

Atravessou, então, a rua e o destino, com as mãos nos bolsos do casaco, sentindo uma brisa refrescante a desalinhar-lhe os cabelos e pensou, enquanto esboçava um sorriso um tanto triste: é tão bom estar vivo… e livre… mas desta vez, “Whatever walks in my heart will walk alone*…” 1 (O que passar pelo meu coração, passará sozinho) …



Notas:
1. *De Nightwish: “Forever Yours”
2. De “ O Mágico de Oz”;
3. De Within Temptation: “Somewhere”;
4. De Razorlight: “Wire to Wire);
5. De Adele: “Someone Like You; 
6. De. Em Anjos… (http://aquarelasdepalavras.blogspot.pt/2010/01/em-anjos.html)