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segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Receios & Desencontros


- Olha para mim. Olha para mim. Só um bocadinho. Um segundo que seja...

Isso...  Tu não tens ideia do que se passa, não é? 

Eu venho cá todos os dias, à mesma hora, sento-me à mesma mesa e espero ansiosamente pela tua chegada. Tu me olhas, mas não me vês, como se eu fosse transparente… e eu sou… completamente transparente. Basta veres como os talheres escapam-me das mãos, cada vez que teus olhos cruzam os meus. 

Às vezes tu sorris, quando me olhas e pensas que eu não noto, mas basta eu te olhar e tu desvias e disfarças, como se a minha invasão te ferisse. 

Tenho medo de ferir-te. Tenho medo de ferir-me, na tentativa de não ferir-te. 

Receio que teu riso seja de troça e que o desvio de teu olhar seja por impaciência. Receio dirigir-te a palavra. Tenho medo da rejeição. Prefiro que troces de mim e rias do meu mau-jeito do que nunca mais me olhes ou evites minha presença desajeitada. 

Só queria ter mais coragem e cumprimentar-te, mas este pensamento assusta-me.  

Já não consigo engolir a comida. Já não consigo organizar meus pensamentos. Já nem consigo tirar os olhos de ti. 

Droga! Corei. 

E se fugires, ao perceberes, impaciente, que eu passei do limite, corando deste jeito?  

Devo ir, antes que faça uma vergonheira. Meu coração está destroçado, mas meu orgulho está intacto. Mas nem ficaria triste se meu orgulho deixasse minha coragem entrar em cena… em grande! 

Não me olhes agora. Tenho as faces afogueadas. Meu corpo inteiro arde. Apesar do frio, sinto um calor infernal. 

É verão dentro de mim… Mas teus olhos não perceberão. Tuas mãos não sentirão. Teus lábios não tocarão. 

Tenho que ir, antes que caia à tua frente e peça-te para falares comigo. Antes que eu perca o controlo e te diga como me sinto. 

Tenho medo de mim. Melhor sair correndo, já que, se ficar, dói-me o peito. Adeus. Amanhã volto cá e faço este filme todo outra vez. Quem sabe o destino aja a meu favor e faça-te sentar perto de mim… Se isso acontecer, não serei capaz de almoçar. 

Melhor que fiques longe de mim... Assim, numa distância segura, onde nossos olhos possam olhar e cruzar, sem que nossos outros sentidos sejam afetados, assim, no meio da multidão. 

Vou-me, que meu peito dói muito. Minha cabeça dói. Minha garganta está seca. Melhor eu ir… já… antes que seja tarde demais...
 
***

- Oh! Foi-se... Como todos os dias...

Daria tudo para ter certeza que aquele olhar tão tímido volte amanhã. Passo os dias a pensar naquele olhar e tentar perceber porque deixa cair os talheres cada vez que eu olho naquela direção. 

Às vezes sorrio, desajeitadamente, só para ver se recebo, pelo menos, um traço de resposta, mas qual nada! Só desvias o olhar. E quando isso acontece, meu peito dói e minha cabeça diz-me para esquecer, de vez, que aquele olhar, tão magnético, poderia, um dia, olhar-me para sempre, admirar-me, desejar-me, como eu desejo. 

Tenho medo. De machucar-me. De magoar-te. 

Não consigo tirar meus olhos de ti, por mais que tente, mas não consigo sustentar tua timidez com a minha. Vejo-te enrubescer e sinto que invadi tua tão salvaguardada privacidade. Mas ficas tão bem, assim, com esse rubor a decorar-te as faces pálidas. 

Quem me dera ter coragem para dizer-te olá. Queria tanto sentir teu cheiro, o calor da tua pele, o toque de tua boca. Queria sentir a força das tuas mãos a apertar as minhas e fazer-te as promessas que tenho medo de ouvir. 

Por que a coragem falta-me justamente quando mais devia dar-me incentivo? Tenho que seguir-te. 

Tenho que chegar perto de ti, mas tenho medo que rias de mim. Tenho receio que ao ver-me, assim tão perto, chames a segurança e levem-me para longe de ti. 

Tenho medo de mim. Tenho medo de não conseguir controlar-me amanhã, quando sentar à mesa à tua frente, tão cuidadosamente escolhida por mim, para não perder-te de vista... naqueles poucos minutos em que estamos frente a frente... tão perto e tão distantes...

 Sinto um calor quando levantas e sais. Depois, minha alma congela, por sentir tanto tua falta perto de mim. 

Passas, sem olhar-me. Meus olhos, desejosos de ti, não te perdem, jamais, de vista. 

Amanhã tenho que tomar coragem. Não consigo mais viver assim, sem poder chegar mais perto de ti. Quem sabe, amanhã, eu consiga dizer-te algo estúpido, só para ter tua atenção e para ouvir tua voz... 

Quem sabe até sorrias para mim e respondas com algo mais estúpido ainda... e aquilo nos faça rir do ridículo da situação... e nos aproximemos... e... 

Amanhã... Quem sabe, amanhã não fujas de mim, como foges todos os dias... 

Amanhã... 

Hoje... infelizmente... já perdi-te... mais uma vez!

*** 


domingo, 3 de março de 2013

O Que Passar Pelo Meu Coração… (Whatever Walks In My Heart)1








A conexão perdida, por atraso e irresponsabilidade de uma companhia aérea, dias perdidos em fila de espera, até finalmente conseguir lugar em um voo cheio, mas garantido, haviam dado cabo de qualquer sinal de tolerância e educação que ele alguma vez tivera. 

O homem de meia-idade - cabelos castanho-claros, levemente ruivos, cortados curtos e cuidadosamente penteados – ajustou os óculos de aro de metal, que escorregavam lentamente de seu nariz. Aparentemente alheio aos outros expectantes sentados à sua volta, no movimentado hall do aeroporto internacional, aguardando a hora de, finalmente, viajar de volta ao bem-vindo conforto de seu pequeno lar, nunca pensara que fosse desejar tanto estar em outro lugar, que não ali, naquele momento. Ele só queria mesmo que aquele dia passasse o mais rápido possível… 

Seu humor estava pior a cada hora que passava. Além de abominar as infindáveis horas entre as conexões, considerava cada viagem intercontinental, em si, uma verdadeira perda de tempo e um teste à sua parca tolerância. Até chegar de volta à casa, cerca de vinte e quatro horas ter-se-iam passado, numa situação normal. Aquela jornada, porém, já gastara praticamente mais de meia semana de seu tempo… e sua paciência já havia passado do limite aceitável. 

Chegar em casa… aquele era um conceito estranho. “Home is where your heart is”2 (Lar é onde teu coração está)… E onde estava seu coração, afinal? Entre dois países, entre aquilo que parecia como se fossem duas vidas diferentes, separadas por um imenso oceano, ele já não sabia mais exactamente onde ficava o lugar que pudesse chamar de lar

Sentado à desconfortável cadeira plástica, por muito tempo, ele estava inquieto e se irritava com qualquer coisa que ouvia ou lia. Ao invés de ficar contente por finalmente ter as coisas alinhadas, ainda remoía os dias passados e as dificuldades que tivera para chegar ao ponto em que estava. A certa altura, mesmo a música a tocar nos fones de ouvido tivera que ser desligada e devidamente guardada, pois ao invés de acalmá-lo, estava a deixá-lo mais tenso. Seu único consolo, naquele momento, era o vôo ser nocturno, o que se constituía uma vantagem, pois tencionava dormir durante boa parte do tempo.

Até então, não percebera que também era alvo dos olhares e da curiosidade de outros viajantes, acomodados ali à sua volta, à espera do mesmo que ele: entrar no grande avião, que os levaria, por mais de dez horas, ao destino comum - um pequeno país da velha Europa. 

Passou os olhos à volta, esquadrinhando as faces dos desconhecidos vizinhos, já que não havia muito mais a fazer e ainda tinha muitos minutos de sobra, até a hora do embarque. Sua atenção voltou-se, por uma fracção de segundos, para um rapaz de cabelos e olhos claros, sentado ali perto, ainda que sem causar mais que um simples interesse momentâneo - daqueles que se tem por uma pessoa que considera agradável e sabe que nunca mais encontrará em nosso caminho - aquelas pequenas distracções que a gente tem, ao encontrar estranhos, de passagem, em lugares igualmente desconhecidos. 

Às vezes, generalizar os eventos simples que se sucedem em nossas vidas, pode levar a um grande engano. E ele ia perceber isso naquela mesma situação, apenas um pouco mais tarde. 

‘Nada acontece por acaso’, havia-lhe sido dito, naquela mesma tarde, em conversa informal com o motorista do táxi - um visionário, provavelmente - quando iam a caminho do aeroporto.

Em triste consequência da paranóia deixada pelos atrasos e confusão até então acontecidos naquela viagem, perdeu o interesse em praticamente tudo – a não ser o de alojar-se na sua poltrona - do momento em que entrou na fila de embarque, até sentar-se, finalmente, no seu lugar. A partir dali, já menos preocupado, ficou a observar as pessoas passarem, à procura de seus assentos. Algumas pareciam meio perdidas - provavelmente marinheiros de primeira viagem; outras vinham a caminhar, indiferentes, ao longo da grande nave - com certeza os chamados “frequent flyers”

Quando estava inspirado, em viagens normais, enquanto observava, fazia análises mentais rápidas, tentando construir uma pequena história para um e outro passageiro, que lhe parecessem mais singulares. Pessoas constituíam-se materiais interessantes para um espectador imaginativo como ele. Naquele dia, contudo, nada lhe era muito atractivo. Estava cansado…

Um jovem que aproximava-se pelo lado esquerdo, a procurar, com os olhos, o número de seu lugar, parou ao lado do homem sentado junto ao corredor, na mesma fileira que ele. Acomodou sua pequena mochila de lona parda no compartimento acima das poltronas, abriu um largo e simpático sorriso e pediu licença para sentar-se a seu lado. Reconheceu-o como o tal rapaz que havia-lhe chamado a atenção um pouco antes, na sala de espera do aeroporto. Daquela vez, observou-lhe, detalhadamente, cada pormenor. 

Tinha estatura mediana, penetrantes olhos azuis, cabelos claros cortados curtos e um corpo vigoroso, em contraponto às mãos quase pequenas, não exactamente delicadas. Ele, que tinha um interesse acima do normal por mãos – esteticamente - observou-as tão longamente quanto pode. Eram firmes, pareciam um pouco calejadas pelo trabalho árduo e tinham, ao mesmo tempo, forma e graça genuínas. Passaram-lhe a ideia de uma força generosa e destemidamente disponível.  

Já devidamente acomodado no assento a seu lado, apresentou-se polidamente e começaram a conversar. Muito inversamente ao que lhe era de costume em viagens como aquela, a prosa fluiu livre a noite inteira, como se fossem conhecidos de longa data. Esqueceu o sono e outras distracções habituais - os filmes, revistas e livros - naquela noite e dormiu o mínimo possível… A jornada, afinal, acabara transcorrida rápida demais. 

Apesar da tenra idade, o rapaz apresentava uma maturidade incomum para um homem tão jovem e, quando ria, parecia uma criança – tão aparentemente inocente e livre de qualquer preconceito… tão cheio de um frescor sem igual e tão aberto para a vida. Era como se vivesse num mundo muito diferente do seu – o mundo de um razoavelmente bem sucedido executivo de meia-idade - o que era, de certa forma, a mais pura verdade.

Quando se olharam, quase acidentalmente, um nos olhos do outro, o homem sentiu-se quase desconfortável e fora de contexto, como um menino que experimentava as estranhas emoções do primeiro dia na escola. O rapaz exibia uma postura, perante à vida, que o fez sentir-se bastante mesquinho e materialista. Ele ficara encantado com aquela visão de mundo e com outras prioridades existenciais - absolutamente tão díspares das suas próprias. Sentia-se como se fosse uma desengonçada, lenta e sombria lagarta a contemplar, invejoso, aquele ser já tão completamente provido de asas… e que asas enormes ele tinha!!!  

Dizer adeus, foi mais difícil que ele poderia alguma vez sequer imaginado. Suas vidas tomavam destinos bastante separados a partir dali. Por algum estranho motivo, porém, aquele aperto de mãos, na despedida, mostrou-lhe que sua emoção havia sido seriamente afectada por aquele encontro que pareceu tão casual - no início - mas na verdade, abriu-lhe os olhos para realidades que ele não estava acostumado a vislumbrar.

Não chegou a questionar-se o que acontecia com suas emoções. Aceitou de peito aberto aquela sensação nova, que se apossava dele, com a celeridade, o carinho e o aconchego de um bem-vindo e forte abraço. Era o Universo fazendo-o contradizer as impressões que tivera apenas algumas horas atrás.

Quando saiu pela porta giratória do aeroporto, o ar fresco da manhã esfriou seu corpo e sua alma, numa cruel onda de choque, que lhe fez vir, imediatamente, lágrimas aos olhos. 

Estava de volta ao mundo real, que passava em alta velocidade pela janela do táxi e o levava de volta à sua vidinha medíocre que, de repente, pareceu-lhe extremamente fria, melancólica e até um tanto obscura. No bolso, guardado como um pequeno tesouro, um pedacinho de papel trazia, escrito numa letra miúda e singular, o que parecia uma frágil âncora com a esperança: um endereço de e-mail. 

O despojamento que invejou naquele homem – provavelmente vinte anos mais jovem que ele - detectado numa conversa breve, de apenas algumas horas, passou a assumir instintiva e gradualmente em sua vida, a partir daquele momento. 

Sentia necessidade daquela transformação – natural -, motivado por influência da exuberância e da forte presença daquela criatura, que não pareceu ter noção do profundo e extremo efeito que causara em sua vida e em seu comportamento. 

Era como se fosse um filho que houvesse ensinado, com o seu simples exemplo, uma grande lição de vida a seu pai que, mais agradecido que surpreso, decidira mudar seu próprio comportamento, tentando ser um homem melhor dali para diante. 

Não somente por educação, uma mensagem de contacto fora imediatamente respondida, para sua completa surpresa. A cortesia foi retribuída com pedaços desastrados de emoção – pequenos poemas, escritos com exclusividade. Iniciava-se ali um período de contactos bastante frequentes, apesar da grande distância física que os separava.

Quando conversavam, por e-mail, Messenger ou telefone, ele perdia a noção do tempo e abria completamente sua alma. Falavam sobre assuntos que ele não costumava discutir com qualquer outra pessoa. Percebeu também que não era o único a sentir-se tão à vontade. De sua parte, teve a certeza que seu coração havia-se transformado num lugar melhor. 

Foi a primeira vez que as palavras de carinho fizeram-lhe algum sentido. Acreditou piamente no significado e valor delas e na sinceridade do interlocutor. Absorvido pela simpatia e afeição que recebia, não pensava em futuro: só queria estar naquele momento presente, naquele estado e, com certeza quase absoluta, em outro lugar – desde que fosse mais perto do jovem que lhe abrira os olhos. No conforto de um abraço, onde nunca esteve, ele se imaginava aquecido e protegido.

Foi tomando conhecimento, aos poucos, de sua história de vida e de algumas de suas maiores angústias e desilusões. Seu espírito estilhaçou-se em milhares de pedaços, quando o rapaz lhe disse, certa vez que, no começo de sua vida, procurava alguém que amasse, depois contentou-se apenas em ser amado e, mais tarde, ficava feliz em ter alguém que não o fizesse sofrer… 

Aquela triste constatação - vinda de uma alma tão jovem - atingiu, como um tiro certeiro, seu pobre e frágil coração - distante demais para ajudá-lo ou ampará-lo… Ouvir seu desabafo era o melhor que ele podia fazer. Não era por ele que o rapaz sofria, mas era a ele que recorria. Que mais podia-se esperar da vida?
 
Separados por mais de um continente, embora desejasse, de alguma forma, protegê-lo de qualquer sofrimento, o máximo que conseguia oferecer-lhe era sua disponibilidade para ouvir seus lamentos e chorar junto com ele, ao telefone, por minutos incontáveis...

Sabe quando a gente gosta tanto de alguém, que chega a doer?

Ele rezava, todas as noites, para que o jovem fosse feliz e para que os céus lhe enviassem anjos protectores, cada vez que ele se sentisse só ou triste. Seu maior desejo passou a ser de defendê-lo de todos os perigos que pudessem aparecer. “Almost hope you’re in heaven, so no one can hurt your soul”3 (Quase desejo que estivesses no Paraíso, de modo que ninguém pudesse machucar tua alma) …
 
Mas, como já devia esperar, os contactos começaram a escassear. Não era exactamente por culpa de nenhum deles. As circunstâncias de suas vidas, tão separadas e tão distantes, bem como os pequenos – e também os grandes - problemas diários, não os favoreceram…

A distância aumentava com o passar de semanas sem as notícias - que ele procurava insistentemente - dia após dia, quando chegava em casa. O silêncio tornara-se profundo e sombrio, como os mistérios do mar. O tempo dilacerava-lhe as entranhas e turvava-lhe a memória, com seu punhal lento e perverso, a cortar-lhe a alma, sem piedade nenhuma, enquanto um veneno corria-lhe pelas veias, intoxicando-lhe o discernimento e causando-lhe delírios de insegurança.

Mesmo assim, sem forma de favorecê-lo com sua espontânea protecção, ele continuava a rezar, insistentemente, para que o outro se encontrasse… que fosse feliz… que não sofresse… Seus primeiros pensamentos do dia e também os últimos da noite eram, invariavelmente, dirigidos para ele. 

Para compensar a ausência e a distância que os separava, ele procurava aqueles olhos em outros rostos, tentando reacender a memória e resgatar pedaços perdidos dele mesmo, sabendo que estava se iludindo, para diminuir a dor da saudade que sentia. Tentava convencer-se que aquilo tudo era uma outra realidade, criada em sua mente, para manter-se vivo, enquanto finíssimos grãos de areia dourada corriam, incessantes, na grande - e rebuscadamente decorada - ampulheta da existência. 

Decidiu que tinha que dar-se espaço e tempo, para que aquela espécie de obsessão não sufocasse seu incomum relacionamento. Temia, porém, que estivesse cometendo suicídio ou compensando sua débil paixão, com uma falsa esperança. 

Para apaziguar seu coração e dirimir todas as dúvidas e incertezas, convenceu-se que precisavam se reencontrar. Não seria uma tarefa fácil. Tentou organizar-se de muitas maneiras, em várias ocasiões. Alguma coisa sempre dava errado, na última hora, para seu grande desespero. Ou o Universo - ou o rapaz - estavam lutando contra sua vontade.

Desconfiado que fosse uma combinação de ambos, quase desistiu, mas por uma feliz coincidência, foi surpreendido pelo acaso do destino, mais uma vez. Acabaram por combinar almoçarem juntos, num domingo de verão. Pegou a estrada bem cedo pela manhã, enquanto o sol ainda não castigava demais o longo caminho de asfalto. A viagem devia levar cerca de três horas. Estava ansioso… e inseguro, ao mesmo tempo. 

A educação e gentileza que o jovem lhe dirigiu foram sem precedentes e ele deixou-se ficar à vontade desde o primeiro instante em que se viram. Passaram o dia a conversar, rir, almoçaram juntos e contaram histórias, como dois grandes amigos de longa data. Com um forte abraço de despedida, o encontro acabou… assim, educadamente.

Enquanto tuas asas
De luz
Refrescavam a febre
Que eu sentia
Em minha alma,
O calor
De teus braços
Aquecia o frio
No meu coração...6

O homem mais velho ficou um pouco preocupado, ao voltar mais uma vez à sua vida. Embora tivesse sido extremamente controlado, pensou que talvez sua ansiedade acabara por decepcioná-lo. Na viagem de volta, ao final da tarde, em meio aos imensos congestionamentos de fim de praia, foi pensando no que acontecera, revivendo os momentos, os sorrisos, as palavras… vezes e vezes incontáveis…

Reflectiu, por muito tempo, sobre o que aconteceu naquele dia. Ele, que tinha tantas expectativas, viu-se um tanto perdido, tendo percebido que tudo passou-se tão serena e educadamente. Não fora, de maneira alguma, decepcionante. Fora, somente, morno demais… certinho demais…

Teria ele esperado mais que realmente merecia? Teria o outro cedido a encontrar-se, apenas por educação, para que o deixasse, finalmente, em paz – pelo menos por uns tempos? 

Ele nunca iria ter respostas para aquelas questões… e talvez não as quisesse respondidas, de qualquer forma…

O tempo confirmou que estava certo em preocupar-se. Teve que aprender a aceitar que a condição de se ter de estar longe aniquila os relacionamentos, mesmo com a proximidade que a tecnologia ‘on line’ traz hoje em dia. Ele achava que a distância diminuiria, mas estava enganado, pois nada resiste à força do tempo, associada à frieza cruel do afastamento. 

O objecto da sua autêntica afeição foi espaçando as notícias, mais que anteriormente. Talvez ele tenha, mesmo, sido apenas educado e cedido aos seus apelos de revê-lo, afinal…

Sentia que ia, aos poucos, abandonando seu pobre coração que, aconselhado pela razão, foi-se conformando com aquela ausência, aceitando a distância e o silêncio, com uma naturalidade que, em outras épocas, até seria fora do normal. 

Aqueles olhos, porém, seguiram-no por mais tempo que esperava. Eram muitas feridas que fechavam demasiadamente vagarosas, deixando profundas cicatrizes, daquelas que não se apagam jamais. Ele ainda mantinha uma palhinha de esperança, embora soubesse, desde o começo, que não acreditava em milagres. Sentia como se não quisesse - ou devesse - preencher aquela lacuna deixada em seu coração.

Procurava, entrementes, aqueles olhos e sorriso nos rostos de outras pessoas, tentando compensar uma tão sentida ausência. Tudo o fazia lembrar daquele jovem… Algumas vezes era aquela curvinha nas extremidades do sorriso largo, às vezes os olhos, extremamente azuis. Seus pequenos detalhes decoravam outras faces, outras personagens que cruzavam seu caminho. Até mesmo o rapaz que trabalhava no prédio ao lado, com seus olhos cor de safira, cabelos claros e corpo semelhante, faziam seu coração pular de alegria, quando passava pela janela, a caminho do restaurante.

Por um bom tempo ainda, suas orações foram para que o rapaz fosse feliz, mesmo que não tivesse mais quase nada com a sorte do outro. Ele queria, mas sabia que não devia, procurar mais contactos, pois acreditava que todas as pessoas têm o direito de ter sua privacidade assegurada. Têm também o direito de não se comunicarem com quem não desejem. 

Era assim que via aquela falta de contacto: sua muito pouca vontade de falar, comunicar, ver…. Uma preservação da espécie. E neste caso, ele se sentia como um verdadeiro predador. E que sensação estranha era!

Embora nunca houvesse sequer falado sobre isto, outras pessoas sempre lhe diziam que nenhum relacionamento resiste à distância, por muito tempo… nem ao silêncio. Ele não queria aceitar o óbvio: que as pessoas tinham razão, afinal de contas. Perguntava-se, porém, por que seu coração não se conformava de vez e tocava a vida adiante, sem sofrer mais que o necessário. Sabia que era o único responsável pela sua própria aflição. 

Mas era um homem maduro com espírito de menino e este, na sua simplicidade, entregava-se sem restrições às emoções a que se via enfrentar. Era difícil aceitar as perdas e ele não queria sentir-se derrotado. Pelo caminho, ia-se enganando de foco, tentando ajustar suas miras, procurando acertar o ritmo da sua vida, que não se conformava em se manter prático e gostar somente de quem gostasse dele. Pelo caminho, ia tentando não sofrer, dançando com seus fantasmas e sua dor, na tentativa de confortar sua razão, com pedaços alquebrados de emoção. 

What is love, but the strangest of feeling? A sin you swallow for the rest of your life? You´ve been looking for someone to believe in and love you until your eyes run dry…”4 (O que é o amor, senão o mais estranho dos sentimentos? Um pecado que tu engoles pelo resto da tua vida? Tens procurado por alguém em quem acreditar e que te ame até teus olhos secarem) …

Depois de vários meses de silêncio, como por encanto ou brincadeira do destino, o jovem voltou a aparecer no messenger. Parecia ser a mesma pessoa de sempre, com os mesmos problemas e a mesma conversa adorável de tempos atrás - a mesma pessoa que havia ganho seu coração e sua atenção, sem restrições. Daquela vez, todavia, sua emoção reagiu diferente da sua razão. Alguma coisa no fundo de sua lógica gritou em estado de alerta.

A dor da solidão, a decepção e o abandono amadurecem e enrijecem a alma de uma pessoa de uma maneira um tanto desumana. Sentiu que já não era mais o mesmo que havia sido… infelizmente. Seu coração passara a ansiar por uma reconciliação consigo mesmo e, para alcançá-la, precisava ficar longe de novas… e também de velhas… desilusões. Ele se preparava para que outras emoções pudessem tomar o espaço que fora deixado aberto em sua alma ainda não completamente cicatrizada... 

Há não muito tempo, estaria de cabeça baixa e procurando vestígios da presença do outro, em cada espaço e tempo, em cada olhar que cruzasse com o seu. Naquela ocasião, porém, seu peito abria-se e permitia-se querer ser independente, libertando-se - com desprendimento, mas deixando marcas de um carinho imenso, que sentira desde sempre por aquele airoso personagem - que invadiu sua vida, sem querer - e que ensinou-o a ser melhor que alguma vez já houvesse sido. 

 Never mind I’ll find someone like you… I wish nothing but the best for you too… Sometimes it lasts in love, but sometimes it hurts instead…”5 (Não tem problema, eu encontrarei alguém como tu… Eu desejo nada mais que o melhor para ti também… Algumas vezes o amor permanece e, outras, entretanto, dói) …

Ele passara a esperar que outras pessoas pudessem tomar sua atenção, de uma maneira mais leve... e tencionava poder divertir-se com aquilo. Embora anteriormente suas emoções fossem como as águas do oceano, num vai e vem infinito, à beira da praia, agora ele precisava estabilizar as marés e ser como um lago de águas mais calmas, ainda que, mesmo assim, profundas e um tanto obscuras… Seu espírito ansiava por alguma paz e, talvez, independência. 

Tinha necessidade de ser um novo homem – original e mais leve – que não revivesse sofrimentos e que lembrasse apenas das coisas boas que ficaram gravadas no seu coração, para seu bem e para a preservação da sua estimada sanidade. 

Apesar de sentir falta das palavras que nunca mais ouvira, tinha, definitivamente, que seguir adiante. Era sua vida e ele estava disposto a enfrentar o que viesse pela frente.

- Me abandonar,
Me deixar levar –
Ser um pensamento
Solto
No vento;
Ser sempre uma lembrança
Daqueles pequenos momentos,
Que nunca duram
O suficiente,
Para ser demais:
As pequenas eternidades
Do coração…6

Desejou-lhe felicidades, em alta voz, como se falasse ao vento do mar e abriu-se para o mundo.

Atravessou, então, a rua e o destino, com as mãos nos bolsos do casaco, sentindo uma brisa refrescante a desalinhar-lhe os cabelos e pensou, enquanto esboçava um sorriso um tanto triste: é tão bom estar vivo… e livre… mas desta vez, “Whatever walks in my heart will walk alone*…” 1 (O que passar pelo meu coração, passará sozinho) …



Notas:
1. *De Nightwish: “Forever Yours”
2. De “ O Mágico de Oz”;
3. De Within Temptation: “Somewhere”;
4. De Razorlight: “Wire to Wire);
5. De Adele: “Someone Like You; 
6. De. Em Anjos… (http://aquarelasdepalavras.blogspot.pt/2010/01/em-anjos.html)