Leona caminhou até
o fundo do corredor e abriu a porta, com cuidado. O homem que lá estava,
ocupava-se com o arquivamento dos últimos processos de análises de ADN. Havia
muito tempo que não entrava ninguém, além dele e do chefe do laboratório,
naquela parte do edifício. O rapaz levantou a cabeça e deparou com a figura
conhecida da mulher, sua irmã. Ele falou no idioma oficial daquele mundo, para o
Anno Domini de 4697.
- Ora, ora. Que fazes aqui, neste lugar tão pouco
frequentado pelo povo das áreas quentes? Deve ser uma coisa muito grave, para
ter-te tirado do conforto da tua vida e feito esta deslocação tão incomum.
- Não sejas irónico. As coisas já não são como eram
antigamente. Tivemos muitas mudanças, desde que foste tirado de lá. Devias
estar agradecido por ter-te poupado a vida.
- Eu nunca te pedi nada. Era melhor ter morrido…
Leona fez que não
ouviu aquela última parte e ignorou a ironia do irmão.
- Preciso de tua ajuda. É mesmo sério.
- Deve ser mesmo. Mas não sei se estou disposto a
meter-me com teus problemas. Não conte comigo, nem com minha ajuda…
- Em nome do nosso pai…
- Não fale do pai. Ele morreu por tua causa. O que eu
passei foi, também, por tua causa. E estar aqui, assim, nesta vida, também é
culpa tua, por isso, não envolva o nome do nosso pai nisso e nem peça nada em
nome dele. Tu não tens este direito.
- Nós já falamos sobre isso. Eu sei que a impressão que
eu deixei foi que fugi, quando era mais útil ao pai, mas não foi isso…
- Eu não quero saber. Podes voltar de onde vieste, que
não há nada que ainda reste em mim, que possa ser considerado como vestígio de
solidariedade… nem contigo, nem com ninguém. Vá embora daqui.
- Eu não posso ir embora sem dizer-te o que se passa.
- Eu já te disse que não quero ouvir. Vá embora. Eu
atravessei o tempo para te salvar e o que eu ganhei com isso? Exílio e
desprezo! Achas que eu tenho motivos para te ajudar?
- Salvar-me, matando o homem que eu amava? Essa é a tua ideia de
salvação?
- Era a forma de te salvar daquele encantamento, por um
homem muito diferente de nós: uma aberração! Eu não me arrependo do que fiz e
faria de novo, se necessário fosse…
A mulher ficou
pálida e engoliu sua decepção e angústia, em seco. Virou-se e saiu da sala,
parando na porta e dizendo, baixo, quase como a justificar-se.
- Ele apresenta a mesma reação que tu tiveste, quando o
pai começou a testar as primeiras vacinas em nós… Pensei que pudesses ser
solidário com isso, para podermos resolver o caso, mas estava enganada... para
variar…
Ela saiu, sem olhar
para trás. O homem ficou a olhar o vazio, pensando num tempo que existiu em seu
passado e em outra época, em outro lugar e em outra circunstância.
Levantou-se devagar
e saiu pelo corredor afora, na direção do laboratório principal. A irmã já não
estava à vista.
***
- Já devias saber que não ia ser diferente. O que tu
querias que ele fizesse?
- Esperava que, pelo menos, me ouvisse… ou ajudasse a
resolver…
- Não é função dele ajudar, nem resolver nenhum problema.
Ele está bem onde está. Tem aprendido outras coisas, além do trabalho dele. Nós temos que lidar com isso, sem a ajuda dele ou de quem
quer que seja…
- Eu sei disso, agora. Foi um erro estúpido…
- Talvez não. Foi apenas ingenuidade ou, talvez,
esperança de resolver as coisas, de uma maneira pouco prática. Esse romantismo
já não cabe nessa era e nem nesse lugar… Temos coisas mais prementes a
resolver.
A mulher abaixou a
cabeça. Reconhecia que estava a ser pouco prática. Admitia, também, que estava
a ter um comportamento romântico e pouco adequado. Pensou em como havia chegado
a aquele lugar e na pessoa mais importante que passou pela sua vida, além do
pai e do irmão. Estava prestes a desabar em lágrimas, mas tinha que ser forte.
O homenzinho fingiu não perceber que Leona travava uma luta interna. Ela era, agora, uma mulher muito diferente daquela que chegara à aquela época e lugar, há muito tempo atrás.
O homenzinho fingiu não perceber que Leona travava uma luta interna. Ela era, agora, uma mulher muito diferente daquela que chegara à aquela época e lugar, há muito tempo atrás.
Respirou fundo e
decidiu deixar o assunto com quem podia tratar dele. Era hora de voltar ao seu
posto e lugar. Entrou no terminal de transporte e esperou pela abertura do
portal. Ainda deu uma última olhada ao chefe dos cientistas, que olhava, sério,
para onde estava a desmaterializar-se.
Não percebeu que a
porta do laboratório foi aberta, naquele exato momento, e que um homem, muito
diferente daquele com quem esteve a falar, entrava na grande sala.
***
Leona chegou à
Estação Estelar poucos segundos após partir da Glacial. Estava séria e cansada.
A conversa não havia sido nada de acordo com o que tinha pensado e planejado e
ela se sentia enganada pela sua própria ingenuidade.
Passados alguns
minutos entrava em contacto com os dois cientistas, para reportar sobre o que
havia conseguido, como resultado da sua viagem.
Os dois chegaram em
poucos minutos. Estavam ansiosos para saber o que havia de novidade, sobre a
conversa com o chefe dos cientistas, mas não contavam que teriam que esperar
até o relatório ser enviado da Estação Glacial. Haveriam de controlar a
aflição, até saberem mais.
Leona não lhes contou
tudo o que foi fazer, nem quão mal correu a conversa com o irmão. Resolveu que
tinha que manter aquele assunto em família, somente.
Ela sabia, também,
que o Supremo iria querer falar com ela… Se não resolvesse aquele assunto logo,
não iria ficar em paz… nem dormir… mas não ia conseguir falar com ele naquele
momento.
Já era tarde e ela
resolveu esperar até o dia seguinte. Teria que pensar no que iria dizer.
Naquele caso, talvez fosse melhor falar a verdade… apenas a parte que
interessava, obviamente. Já havia-se exposto demais e não queria ouvir nenhuma reprimenda
sobre sua atitude ou sua parvoíce.
Embora o Supremo
não fosse muito dado a passar sermões, pelo respeito que tinha por ela, bastava
um olhar dele, para saber que ela não havia conseguido chegar a bom termo com o
irmão e ela teria que manter a frieza diante dele, ou poria outras coisas a
perder. Se ele fizesse muitas perguntas, ela não sabia se ia conseguir manter
em segredo o teor da conversa que havia tido na Estação.
A mulher, de
intensos olhos verdes, dirigiu-se ao seu aposento para tentar descansar. Em sua
mente ainda pairava uma dúvida, que não a deixava sossegada.
Como é que, depois
de tanto tempo, aquele efeito foi aparecer num clone aleatório, que foi criado
na linha normal? De onde viera aquela mutação, após tantas gerações terem sido
produzidas?
***
- Eu sei que não é normal. Será que poderá ser revertido?
Historicamente sabemos que é possível.
- Sabemos que em humanos normais foi possível. Não
sabemos se podemos fazer o mesmo em clones.
- Nós somos cientistas. Temos que tentar.
- Já estamos tentando, Leona. Já estudei, já desenvolvi
um protótipo e também já o testei.
- E como ele reagiu?
- Ainda não vi nenhum efeito, mas é cedo. Segundo consta, a cura não foi imediata no organismo humano puro…
- Meu irmão…
- Sim. Ele me está ajudando com isso. Estamos trabalhando
juntos desde aquele dia em que vieste… O protótipo da nova vacina foi
trabalhado a partir do sangue e ADN dele… Pelo menos sabemos que funcionou com
ele, no passado. Se tivermos sorte, o sangue dele já tem anticorpos naturais, desenvolvidos para corrigir o efeito de uma futura ocorrência. Mas já tivemos
outra ocorrência reportada do laboratório: outro clone com a mesma reacção…Temos
que apressar a solução.
Leona ficou ali,
olhando muito séria para o chefe do laboratório. O último comentário não ficou
retido em sua perceção. Estava mais preocupada com a informação sobre seu
irmão. Não tinha ideia que, afinal, sua conversa com ele havia surtido algum efeito.
Ela, que havia saído da Estação com a sensação de impotência, diante da
situação, agora sentia-se injusta.
Precisava falar com
o irmão e dizer-lhe que estava agradecida. Sentia que devia ter sido mais
paciente, confiante e, talvez, mais justa. Ainda havia algo de bom, talvez uma
herança do pai, nele, afinal.
Ela saiu do
laboratório e dirigiu-se à sala no fundo do corredor. Estava feliz, como há
muito tempo não se sentia. Abriu a porta com energia e entrou na sala, com um
sorriso nos lábios.
O vazio da sala
tomou-a de surpresa. Onde poderia ter ido? O chefe disse que ele estaria na
sala, a trabalhar com os arquivos de pesquisa e com as análises do sangue do
clone. Mas ele não estava.
Ela voltou,
apressada, ao laboratório principal, para falar com o chefe, mas a meio do
corredor encontrou o homem, que vinha com uma expressão agitada no semblante. Parecia
desconcertado e extremamente preocupado.
- O Décimo-Terceiro clone e as novas vacinas sumiram…
- Meu irmão também…
Os dois se
entreolharam. Não precisavam de muito para deduzir o que havia acontecido.
- O que faremos agora?
- Temos que verificar a programação do terminal de
transporte. Eles devem ter ido por lá, já que outras rotas seriam facilmente
detetáveis….
Os dois entraram na
sala de teletransporte e constataram, imediatamente, que os dados de memória do
terminal haviam sido apagados, provavelmente de propósito. A programação não
estava disponível.
Para poder ter
acesso aos dados, teriam que fazer uma solicitação à Central, mas isso iria
acarretar uma série de perguntas, gerando procedimentos especiais de segurança.
Leona olhou para o
chefe do laboratório e decidiu.
- Temos que saber. Não importa o que isso possa
acarretar.
O homem, embora bastante
preocupado, acedeu. Era o melhor a fazer.
- Eu vou falar com o Supremo. Ele tem que saber a
verdade.
- Isso vai colocar-nos a todos nós em um grande problema.
Tu sabes disso.
- Eu sei. Mas precisamos fazer o que é certo. Aliás, foi
um erro não ter feito desde o começo. Eu enfrento as consequências, se for
necessário…
***
O Supremo deu
ordens para verificar o banco de dados imediatamente após ser informado, por
Leona, acerca do que havia acontecido. Ele ficou irritado e decepcionado com a
atitude tomada por ela e pelos cientistas, mas, agora, tinha que ser prático e agir
rápido.
Quando o relatório
foi-lhe entregue, ele levantou os olhos, com uma evidente preocupação,
estampada no rosto sério e, quase sempre, desprovido de emoções. Suas faces
estavam menos pálidas que de costume.
- Eles voltaram ao passado. Isto é muito grave!
- Mas todos sabem que isso é proibido! As consequências
podem ser terríveis e irreversíveis…
- E desde quando teu irmão se importa com o que é certo
ou errado? Olha esta data. Isto diz alguma coisa?
Leona olhou para o
homem com uma expressão preocupada e ficou sem saber o que falar. O Supremo
tinha razão. Aquilo era bastante grave e, com certeza, ia ter perigosas
consequências. De uma maneira ou de outra, ela se sentia responsável pelo que
acontecera. Tinha que remediar a situação urgentemente.
- Eu tenho que ir atrás deles. Tenho que impedir que uma
catástrofe aconteça, por causa desta atitude inconsequente.
- Não posso permitir! De jeito nenhum.
- Eu sinto-me responsável pelo que aconteceu. Tenho que
tentar, pelo menos. É nossa única hipótese. Se enviarmos outro, ele vai-se
defender e tornar-se imprevisível e perigoso. Eu posso, pelo menos, tentar
controlar a situação, antes que ele faça algum outro grande erro.
- Ele sempre foi imprevisível, mas talvez tenhas razão.
Vamos programar a tua ida, da maneira mais apropriada, mas não terás muito
tempo para remediar esta situação. Qualquer minuto em que estiveres no passado
será extremamente perigoso para o futuro.
- Eu sei. E estou preparada para isso. É melhor irmos
para o terminal de transporte, agora.