- De carro?
- Sim. Por que não?
- Eu odeio viajar de carro, ainda mais numa distância
destas. Podíamos ir de avião e chegar em poucas horas. Assim levaremos dias…
- Deixa de ser chato. O país nem é tão grande assim. Vai
ser divertido. Encara como uma aventura.
- É isso que me assusta. Eu lembro muito bem que tipo de
aventura nós tivemos que enfrentar nas outras vezes… e quem teve que se ferrar
fui eu…
- Que exagero. Nós sempre nos saímos bem… no final… Além
do mais, indo de carro, desse jeito, nós teremos controlo de toda a viagem. Nós
vamos descansar. Vamos fazer a viagem só pelo litoral. Paramos pelo caminho,
quando estivermos cansados, e só faremos aquilo que quisermos.
O rapaz de óculos
olhou o outro, nem um pouco convencido de que o argumento era sustentável.
Podia ser muito boa ideia, mas ele já sabia que tipo de aventuras acabavam por
se meter. Mas o outro, totalmente excitado com a ideia, não iria ser demovido
daquilo, tão facilmente. Ele sabia que ia perder a argumentação, por isso
deu-se por vencido, mesmo sem dizê-lo em alta voz.
- Já recebi a confirmação da folga. Teremos duas semanas inteirinhas,
só para descansarmos. Já até aluguei o carro… E, por via das dúvidas, vamos
levar a tenda, para o caso de necessitarmos, se não arranjarmos onde ficar, vez
ou outra. Será até mais barato.
- Por que tu sempre fazes isso, sem me avisar?
- Se eu te avisasse, tu ias começar com argumentos e
desculpas desnecessárias e eu levaria muito mais tempo, até conseguir
autorização e começar o processo de reservas e outras coisas.
- Estás a ver?
- Por isso eu me adiantei. Assim, só tens que arrumar a
mochila e aproveitar.
O outro jogou-se na
cama do quarto conjunto que tinham no alojamento do exército. Sabia que o amigo
tinha razão, de uma certa forma. Eles precisavam de férias e descanso. Sempre
que saíam juntos, porém, algo inusitado acontecia, deixando-os com mais ação
que precisavam. Desta vez, porém, não sentiu aquela apreensão que das outras
vezes anteriores, o que parecia ser um bom sinal.
- Eu desisto de discutir contigo! Quando vamos?
- Pela manhã. Devemos partir cedo, para poder aproveitar
o dia. O carro já está disponível.
O rapaz levantou-se
e olhou o outro com um ar desesperado. Não ia nem ter tempo de se acostumar com
a ideia. Ele mal ia ter tempo de arrumar a mochila. Pelo menos teriam uma folga
da vida do exército… E bem que mereciam aquelas duas semanas de descanso. Agora,
porém tinha que se apressar…
Incrível como a sua
mente trabalhava em alta velocidade, quando estava sob pressão.
Só tinha que juntar
umas poucas roupas - afinal iam estar mais tempo na praia, que em qualquer
outro lugar -, protetor solar, chapéu, calções, sandálias… Que mais?
O quarto parecia mais
arejado e cheio de vida, naquele rompante momentâneo de arrumação de bagagem.
O rapaz parou junto
à janela e fechou os olhos. Uma suave e fresca brisa noturna acariciou-lhe o
rosto. Por um momento parecia que já até sentia a areia branca e fofa entre os
dedos dos pés e a água refrescante do mar a bater-lhe nas pernas…
***
Um dia quente e
seco, como os dias de Verão deviam ser, despontou por trás dos montes, numa
explosão de cores quentes. Os dois rapazes já estavam com o equipamento e as
mochilas prontas, no carro alugado. Iam parar na primeira estação de serviço da
estrada e tomar um pequeno-almoço, para não perderem muito tempo. Não queriam
chegar à praia muito tarde. A primeira
parte da viagem deveria tomar cerca de três horas até o litoral, onde
começariam a descer pela orla, até o sul do país.
Pouco mais de três
horas depois, parados em frente à ria, os dois jovens aspiravam o ar agradável
do mar e do rio. A natureza era calma e convidativa. Aliás, nem foi preciso um convite
especial para os dois descerem até a praia e entrarem na água.
***
- Isso que é vida! Sem preocupação com o dia de amanhã…
em termos…
- Ahahah… Até parece! Mas, pelo menos, não temos horários
para nada. É bom descansar da rigidez do Exército, pelo menos de vez em quando.
- Por falar nisso, estou com fome. Vamos comer algo e,
depois, descansar um tempo, antes de pegar a estrada.
- Podemos pegar a estrada mais tarde ou amanhã somente.
Não temos pressa. Aqui está tão bom… É tranquilo que baste…
- Vamos ver se conseguimos lugar para dormir na pousada,
esta noite. Assim, aproveitamos o dia, vamos dormir quando quisermos e
retomamos a viagem amanhã, pela manhã.
- OK. Parece-me bem.
***
Um farto prato de
peixe assado na brasa, acompanhado de vinho branco, maduro, bem fresco, seguido
de uma mousse de manga e um café forte, foram o bastante para deixar os rapazes
com caras de satisfeitos e bem-dispostos. A noite estava bastante agradável,
sem vento, mas não estava quente. Os dois haviam escolhido um restaurante com
uma varanda voltada para o mar, não muito distante da pousada, onde iriam
pernoitar, antes de retomarem a estrada, na manhã seguinte.
- Ainda bem que conseguimos ficar. Gosto desta
tranquilidade daqui. Por mim, até ficávamos mais tempo.
- Eu sei. Mas se não continuarmos a viagem, podemos
perder de ver coisas mais interessantes no caminho…Podemos voltar mais cedo e passar
mais uma noite ou duas novamente por cá.
- Olhe que não é má ideia…
- Vamos dar uma volta na praia e aproveitar a noite
agradável. Preciso caminhar um pouco depois desta comida todo e do vinho…
Pediram a conta e
levantaram, ao mesmo tempo que uma carrinha branca parava na rua em frente ao
restaurante, despercebida dos dois. Na lateral, pintadas em vermelho, as três
letras, N.M.E., não chamavam mais
atenção que o próprio veículo.
Os rapazes desceram
um lance com três degraus de granito cortado de maneira bastante rústica e
começaram a caminhar pela orla, com as sandálias em uma mão e uma latinha de
cerveja, recém-adquirida, na outra. Apesar da noite agradável, a praia estava
quase deserta, o que não era impedimento para uma saudável caminhada.
Um clarão riscou o
céu, vindo da frente deles, chamando-lhes a atenção, especialmente porque o céu
parecia limpo, estrelado e sem previsão de chuva. Parecia um pequeno cometa,
porém estava muito baixo. O som de algo, atingindo o mar, com força, bem atrás
de onde vinham, fê-los parar e voltar.
A luz dos postes
refletiu no estranho objeto metálico, boiando na água salgada e balançando ao
sabor das ondas, que fumegava, não muito longe de onde estavam.
Os dois não
hesitaram e largaram as sandálias e as latas de bebida, jogando-se na água,
nadando com energia, na direção do objeto. A poucos metros, outros homens também
entraram no mar, ao mesmo tempo e com a mesma intenção. Os dois grupos chegaram
juntos até onde estava a cápsula metálica e unindo forças, começaram a arrastar
o mesmo para a praia. Os rapazes não prestaram muita atenção nos outros homens
que os ajudavam no resgate, pensando tratar-se de transeuntes aleatórios, que
viram o esforço deles e resolveram ajudar, estando tão curiosos quanto eles.
Não podiam estar
mais enganados…
***
- Hey! Vocês estão bem?
- Acho que sim. O que foi que aconteceu?
Vocês dormiram na praia. Estavam bêbados.
- O quê? Não!
O rapaz de óculos
sentia náuseas e a cabeça a doer. Parecia mesmo que estava com ressaca, mas não
lembrava de haver bebido tanto.
Os pescadores
encontraram os dois rapazes dormindo na areia da praia, quando passaram a
caminho do mar. Estavam somente de calções e pareciam estar com frio, pois
estavam encolhidos. O sol ainda era uma fina e pálida faixa de luz a subir no
horizonte, na frescura agradável da manhã de Verão. Ao lado dos corpos dos dois
haviam algumas latas vazias de cerveja.
- O que aconteceu com a esfera metálica que tiramos do
mar?
- Vocês tomaram drogas?
- Claro que não! Nós retiramos a esfera da água, com a
ajuda de alguns homens. Achamos que eram pescadores ou turistas…
- É melhor vocês contarem outra história, se alguém
perguntar. Essa não os vai livrar de problemas. Vocês estão hospedados por cá?
- Na pensão.
Os homens riram.
- Então perderam o custo da diária dormindo na praia. Se
estão bem, melhor voltarem para a pensão e tomarem um bom banho. Vocês estão
cheios de areia e fedendo a suor e álcool.
Os dois rapazes
levantaram e recolheram os pertences espalhados pela praia, agradeceram aos
pescadores e subiram a rua, na direção da pensão. Uma marca vermelha nas costas
deles passou totalmente despercebida até os dois estarem sozinhos, depois de
tomarem um bom banho e começarem a vestir-se para continuar a viagem.
- O que é isso? Tens uma marca vermelha nas costas.
Parece queimado. Será que…
- Tu também, mas a tua está mais ao lado… Que estranho!
Parece uma queimadura elétrica… algo como um… um taser, talvez?
Os dois se olharam
e começaram a suspeitar que havia mais mistério que eles imaginavam, na
história que acabara de se passar.
- Nós fomos derrubados e deixados na praia. Aqueles
homens…
- …Nos roubaram… Eram ladrões!
- Será que eram meros ladrões? E a roubar, levaram o que
não era nosso… Então por que nos ajudaram?
- Nós fomos usados, para ajudar a tirar aquela esfera da
água. A nossa ajuda foi aproveitada, por estarmos à mão. O que será que havia de
tão importante naquela esfera?
- Não sei, mas não quero saber. Vamos embora daqui o
quanto antes. Eu conheço este olhar… Estás começando a pensar em nos colocar em
problemas. Vamos embora, enquanto ainda é cedo.
O rapaz estava com
o cenho franzido e a mente a trabalhar em alta velocidade. Ele repetiu o
pensamento em voz alta.
- O que poderia haver, de tão interessante, ou importante,
naquela esfera, que os levou a nos derrubarem e levarem aquilo daqui,
fazendo-nos passar por dois bêbados, caídos na praia? Por que a preocupação em
fazer-nos passar por tolos?
- Se estivéssemos bêbados ou drogados poderíamos contar
uma história, que seria tomada como uma alucinação… ninguém iria acreditar.
- É verdade…
- Mas, se para todos os efeitos, somos apenas turistas,
em férias, por que alguém se daria a este trabalho?
- É o que precisamos descobrir.
- Oh! Não… não e não! Nós estamos de férias e não vamos
procurar encrencas. Não é certo e nem justo.
- Errado é sairmos daqui, deixando a ideia de que somos
dois marginais, que contam mentiras e dormem, drogados, na praia… É uma questão
de honra. Imagina se o exército sabe disso…
***
- O carro está pronto. Já arranjei lanche e a minha
mochila. Só falta fecharmos a conta e sair.
- Já vou terminar de arranjar a minha também. Podes
descer à receção, para acertar as contas, que eu já vou, em seguida.
Poucos minutos
depois, quando desceu com a mochila em mãos, o rapaz de óculos não avistou o
amigo. Ao perguntar por ele, à empregada que atendia na receção, foi informado
que ele estava a conversar com dois homens e que saíram os três numa carrinha
branca.
- E ele não deixou-me nenhum recado?
- Não. Não disse nada, quando saiu com os dois homens,
depois de pagar a conta. Ainda olhou para trás, antes de entrar na carrinha,
mas ele não parecia preocupado. Lembro que haviam três letras pintadas em
vermelho, na lateral: N.M.E.
- E agora, essa! Para onde ele foi?
Ao caminhar para
fora, na direção do carro, que estava estacionado na frente da pensão, o rapaz
notou que o pneu da frente estava murcho. Ele olhou à volta, para ver se via
alguém. Àquela hora da manhã, ainda antes do sol estar muito acima do
horizonte, as ruas estavam vazias. Ele foi até o porta-malas e tirou o pneu
suplente e o macaco, com sentimentos variando entre o irritado e o confuso.
Quando abaixou-se,
para começar a desapertar as porcas de fixação do pneu, ouviu um ruido atrás de
si e sentiu que alguém tocou-lhe no braço. Antes mesmo que pudesse saber quem
estava atrás de si, sentiu uma picada na parte de trás do pescoço e tudo
escureceu de imediato.