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segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Pelo Litoral (Parte 1)


- De carro?

- Sim. Por que não?

- Eu odeio viajar de carro, ainda mais numa distância destas. Podíamos ir de avião e chegar em poucas horas. Assim levaremos dias…

- Deixa de ser chato. O país nem é tão grande assim. Vai ser divertido. Encara como uma aventura.

- É isso que me assusta. Eu lembro muito bem que tipo de aventura nós tivemos que enfrentar nas outras vezes… e quem teve que se ferrar fui eu…

- Que exagero. Nós sempre nos saímos bem… no final… Além do mais, indo de carro, desse jeito, nós teremos controlo de toda a viagem. Nós vamos descansar. Vamos fazer a viagem só pelo litoral. Paramos pelo caminho, quando estivermos cansados, e só faremos aquilo que quisermos.

O rapaz de óculos olhou o outro, nem um pouco convencido de que o argumento era sustentável. Podia ser muito boa ideia, mas ele já sabia que tipo de aventuras acabavam por se meter. Mas o outro, totalmente excitado com a ideia, não iria ser demovido daquilo, tão facilmente. Ele sabia que ia perder a argumentação, por isso deu-se por vencido, mesmo sem dizê-lo em alta voz.

- Já recebi a confirmação da folga. Teremos duas semanas inteirinhas, só para descansarmos. Já até aluguei o carro… E, por via das dúvidas, vamos levar a tenda, para o caso de necessitarmos, se não arranjarmos onde ficar, vez ou outra. Será até mais barato.

- Por que tu sempre fazes isso, sem me avisar?

- Se eu te avisasse, tu ias começar com argumentos e desculpas desnecessárias e eu levaria muito mais tempo, até conseguir autorização e começar o processo de reservas e outras coisas.

- Estás a ver?

- Por isso eu me adiantei. Assim, só tens que arrumar a mochila e aproveitar.

O outro jogou-se na cama do quarto conjunto que tinham no alojamento do exército. Sabia que o amigo tinha razão, de uma certa forma. Eles precisavam de férias e descanso. Sempre que saíam juntos, porém, algo inusitado acontecia, deixando-os com mais ação que precisavam. Desta vez, porém, não sentiu aquela apreensão que das outras vezes anteriores, o que parecia ser um bom sinal.

- Eu desisto de discutir contigo! Quando vamos?

- Pela manhã. Devemos partir cedo, para poder aproveitar o dia. O carro já está disponível.

O rapaz levantou-se e olhou o outro com um ar desesperado. Não ia nem ter tempo de se acostumar com a ideia. Ele mal ia ter tempo de arrumar a mochila. Pelo menos teriam uma folga da vida do exército… E bem que mereciam aquelas duas semanas de descanso. Agora, porém tinha que se apressar…

Incrível como a sua mente trabalhava em alta velocidade, quando estava sob pressão.

Só tinha que juntar umas poucas roupas - afinal iam estar mais tempo na praia, que em qualquer outro lugar -, protetor solar, chapéu, calções, sandálias… Que mais?

O quarto parecia mais arejado e cheio de vida, naquele rompante momentâneo de arrumação de bagagem.

O rapaz parou junto à janela e fechou os olhos. Uma suave e fresca brisa noturna acariciou-lhe o rosto. Por um momento parecia que já até sentia a areia branca e fofa entre os dedos dos pés e a água refrescante do mar a bater-lhe nas pernas…

***

Um dia quente e seco, como os dias de Verão deviam ser, despontou por trás dos montes, numa explosão de cores quentes. Os dois rapazes já estavam com o equipamento e as mochilas prontas, no carro alugado. Iam parar na primeira estação de serviço da estrada e tomar um pequeno-almoço, para não perderem muito tempo. Não queriam chegar à praia muito tarde.  A primeira parte da viagem deveria tomar cerca de três horas até o litoral, onde começariam a descer pela orla, até o sul do país.

Pouco mais de três horas depois, parados em frente à ria, os dois jovens aspiravam o ar agradável do mar e do rio. A natureza era calma e convidativa. Aliás, nem foi preciso um convite especial para os dois descerem até a praia e entrarem na água.  

***

- Isso que é vida! Sem preocupação com o dia de amanhã… em termos…

- Ahahah… Até parece! Mas, pelo menos, não temos horários para nada. É bom descansar da rigidez do Exército, pelo menos de vez em quando.

- Por falar nisso, estou com fome. Vamos comer algo e, depois, descansar um tempo, antes de pegar a estrada.

- Podemos pegar a estrada mais tarde ou amanhã somente. Não temos pressa. Aqui está tão bom… É tranquilo que baste…

- Vamos ver se conseguimos lugar para dormir na pousada, esta noite. Assim, aproveitamos o dia, vamos dormir quando quisermos e retomamos a viagem amanhã, pela manhã.

- OK. Parece-me bem.

***

Um farto prato de peixe assado na brasa, acompanhado de vinho branco, maduro, bem fresco, seguido de uma mousse de manga e um café forte, foram o bastante para deixar os rapazes com caras de satisfeitos e bem-dispostos. A noite estava bastante agradável, sem vento, mas não estava quente. Os dois haviam escolhido um restaurante com uma varanda voltada para o mar, não muito distante da pousada, onde iriam pernoitar, antes de retomarem a estrada, na manhã seguinte.  

- Ainda bem que conseguimos ficar. Gosto desta tranquilidade daqui. Por mim, até ficávamos mais tempo.

- Eu sei. Mas se não continuarmos a viagem, podemos perder de ver coisas mais interessantes no caminho…Podemos voltar mais cedo e passar mais uma noite ou duas novamente por cá.

- Olhe que não é má ideia…

- Vamos dar uma volta na praia e aproveitar a noite agradável. Preciso caminhar um pouco depois desta comida todo e do vinho…

Pediram a conta e levantaram, ao mesmo tempo que uma carrinha branca parava na rua em frente ao restaurante, despercebida dos dois. Na lateral, pintadas em vermelho, as três letras, N.M.E., não chamavam mais atenção que o próprio veículo. 

Os rapazes desceram um lance com três degraus de granito cortado de maneira bastante rústica e começaram a caminhar pela orla, com as sandálias em uma mão e uma latinha de cerveja, recém-adquirida, na outra. Apesar da noite agradável, a praia estava quase deserta, o que não era impedimento para uma saudável caminhada.

Um clarão riscou o céu, vindo da frente deles, chamando-lhes a atenção, especialmente porque o céu parecia limpo, estrelado e sem previsão de chuva. Parecia um pequeno cometa, porém estava muito baixo. O som de algo, atingindo o mar, com força, bem atrás de onde vinham, fê-los parar e voltar.

A luz dos postes refletiu no estranho objeto metálico, boiando na água salgada e balançando ao sabor das ondas, que fumegava, não muito longe de onde estavam.

Os dois não hesitaram e largaram as sandálias e as latas de bebida, jogando-se na água, nadando com energia, na direção do objeto. A poucos metros, outros homens também entraram no mar, ao mesmo tempo e com a mesma intenção. Os dois grupos chegaram juntos até onde estava a cápsula metálica e unindo forças, começaram a arrastar o mesmo para a praia. Os rapazes não prestaram muita atenção nos outros homens que os ajudavam no resgate, pensando tratar-se de transeuntes aleatórios, que viram o esforço deles e resolveram ajudar, estando tão curiosos quanto eles.

Não podiam estar mais enganados…

***

- Hey! Vocês estão bem?

- Acho que sim. O que foi que aconteceu?

Vocês dormiram na praia. Estavam bêbados.

- O quê? Não!

O rapaz de óculos sentia náuseas e a cabeça a doer. Parecia mesmo que estava com ressaca, mas não lembrava de haver bebido tanto.

Os pescadores encontraram os dois rapazes dormindo na areia da praia, quando passaram a caminho do mar. Estavam somente de calções e pareciam estar com frio, pois estavam encolhidos. O sol ainda era uma fina e pálida faixa de luz a subir no horizonte, na frescura agradável da manhã de Verão. Ao lado dos corpos dos dois haviam algumas latas vazias de cerveja.

- O que aconteceu com a esfera metálica que tiramos do mar?

- Vocês tomaram drogas?

- Claro que não! Nós retiramos a esfera da água, com a ajuda de alguns homens. Achamos que eram pescadores ou turistas…

- É melhor vocês contarem outra história, se alguém perguntar. Essa não os vai livrar de problemas. Vocês estão hospedados por cá?

- Na pensão.

Os homens riram.

- Então perderam o custo da diária dormindo na praia. Se estão bem, melhor voltarem para a pensão e tomarem um bom banho. Vocês estão cheios de areia e fedendo a suor e álcool.

Os dois rapazes levantaram e recolheram os pertences espalhados pela praia, agradeceram aos pescadores e subiram a rua, na direção da pensão. Uma marca vermelha nas costas deles passou totalmente despercebida até os dois estarem sozinhos, depois de tomarem um bom banho e começarem a vestir-se para continuar a viagem.

- O que é isso? Tens uma marca vermelha nas costas. Parece queimado. Será que…

- Tu também, mas a tua está mais ao lado… Que estranho! Parece uma queimadura elétrica… algo como um… um taser, talvez?

Os dois se olharam e começaram a suspeitar que havia mais mistério que eles imaginavam, na história que acabara de se passar.

- Nós fomos derrubados e deixados na praia. Aqueles homens…

- …Nos roubaram… Eram ladrões!

- Será que eram meros ladrões? E a roubar, levaram o que não era nosso… Então por que nos ajudaram?

- Nós fomos usados, para ajudar a tirar aquela esfera da água. A nossa ajuda foi aproveitada, por estarmos à mão. O que será que havia de tão importante naquela esfera?

- Não sei, mas não quero saber. Vamos embora daqui o quanto antes. Eu conheço este olhar… Estás começando a pensar em nos colocar em problemas. Vamos embora, enquanto ainda é cedo.

O rapaz estava com o cenho franzido e a mente a trabalhar em alta velocidade. Ele repetiu o pensamento em voz alta.

- O que poderia haver, de tão interessante, ou importante, naquela esfera, que os levou a nos derrubarem e levarem aquilo daqui, fazendo-nos passar por dois bêbados, caídos na praia? Por que a preocupação em fazer-nos passar por tolos?

- Se estivéssemos bêbados ou drogados poderíamos contar uma história, que seria tomada como uma alucinação… ninguém iria acreditar.

- É verdade…

- Mas, se para todos os efeitos, somos apenas turistas, em férias, por que alguém se daria a este trabalho?

- É o que precisamos descobrir.

- Oh! Não… não e não! Nós estamos de férias e não vamos procurar encrencas. Não é certo e nem justo.

- Errado é sairmos daqui, deixando a ideia de que somos dois marginais, que contam mentiras e dormem, drogados, na praia… É uma questão de honra. Imagina se o exército sabe disso…

***

- O carro está pronto. Já arranjei lanche e a minha mochila. Só falta fecharmos a conta e sair.

- Já vou terminar de arranjar a minha também. Podes descer à receção, para acertar as contas, que eu já vou, em seguida.

Poucos minutos depois, quando desceu com a mochila em mãos, o rapaz de óculos não avistou o amigo. Ao perguntar por ele, à empregada que atendia na receção, foi informado que ele estava a conversar com dois homens e que saíram os três numa carrinha branca.

- E ele não deixou-me nenhum recado?

- Não. Não disse nada, quando saiu com os dois homens, depois de pagar a conta. Ainda olhou para trás, antes de entrar na carrinha, mas ele não parecia preocupado. Lembro que haviam três letras pintadas em vermelho, na lateral: N.M.E.

- E agora, essa! Para onde ele foi?

Ao caminhar para fora, na direção do carro, que estava estacionado na frente da pensão, o rapaz notou que o pneu da frente estava murcho. Ele olhou à volta, para ver se via alguém. Àquela hora da manhã, ainda antes do sol estar muito acima do horizonte, as ruas estavam vazias. Ele foi até o porta-malas e tirou o pneu suplente e o macaco, com sentimentos variando entre o irritado e o confuso.

Quando abaixou-se, para começar a desapertar as porcas de fixação do pneu, ouviu um ruido atrás de si e sentiu que alguém tocou-lhe no braço. Antes mesmo que pudesse saber quem estava atrás de si, sentiu uma picada na parte de trás do pescoço e tudo escureceu de imediato.
 

terça-feira, 25 de abril de 2017

Olhares (Parte 3)


‘Desta vez pareceu-me tão real… O que será que poderia significar, afinal?’

O dia mal começava e eu já estava estranhamente confuso. Aquele sonho pareceu-me mais uma verdadeira visão, de tão realístico e intenso que havia sido.

Olhei para fora, através da grande porta de vidro que levava à varanda, com uma xícara de café quente na mão. Percebi que chovia e ventava, como num dia de inverno, embora a Primavera já tivesse começado há algumas semanas.

Cheguei a pensar em voltar para a cama, mas logo desisti, pois não queria correr o risco de voltar a adormecer e sonhar. Era melhor ocupar-me com alguma coisa mais proveitosa, até compreender o que se passava com minha cabeça… ou esquecer, de vez, o sonho de alguns momentos atrás.

***

Sentado ao lado de uma grande janela, no Café da esquina, eu olhava distraidamente para fora, quando o telefone tocou. Não foi surpresa, quando ouvi a mesma rouca e monótona voz, já velha conhecida minha. Ouvi, com atenção, sem responder mais que uns poucos resmungos. Levantei-me, paguei a conta e fui até a garagem, entrei no meu carro e saí em direção à praia. Tinha vontade de acabar com aquilo de vez, ou não teria paz.

Evitando pensar muito, durante o percurso de pouco mais de quinze minutos, aumentei o volume do som e fui cantando a plenos pulmões, até chegar ao meu destino. No fundo, eu tinha um certo medo a rondar minha cabeça e perturbar minha razão e discernimento.

Quando cheguei ao meu destino, a chuva ainda caía insistentemente. Pensei que era um péssimo dia para qualquer tipo de encontro, ainda mais sendo na praia.

Não estava bem-disposto, nem muito paciente. Esperei uns minutos e, como não apareceu ninguém, resolvi sair dali e voltar à minha vida. Dei partida no carro, engatei a marcha à trás e pressionei o acelerador, devagar. Quando virei o volante e ia sair do estacionamento do pequeno restaurante, à beira da praia, a porta do passageiro abriu-se e ele entrou, para meu espanto, pois julguei que estava trancada por dentro.

***

- Acelera e vai em frente, em linha reta...

- Mas isso é suicídio!

- Não sejas covarde! Acreditas ou não?

Eu não gosto de ser desafiado, nem de ser chamado de covarde. Não olhei para o lado. O carro subia a estrada e eu devia fazer a curva, mas não virei o volante. Acelerei e fui em frente.

Pensei que ia acordar, quando o carro passasse do limite do penhasco, quebrando a pequena cerca de madeira e voando, na direção do mar, algumas dezenas de metros abaixo de nós, mas aquilo não era um sonho. Era a dura realidade. O homem, entretanto, sorria satisfeito, sentado ao meu lado.

O som que se seguiu foi estranhamente ensurdecedor. Senti um gosto estranho na boca e apaguei completamente.

***

- Foi uma bela queda. Poderia ter sido morte certa. Se pensarmos bem, o resultado do acidente até que nem foi tão grave, como poderia ter sido, tendo em vista a altura do penhasco… Se não fosse pelos surfistas que viram o acidente e foram logo em teu socorro…

- Será? E o homem que estava comigo? O que aconteceu com ele?

Eu quase nem reconhecia o som da minha própria voz, que parecia, apenas, um eco do que costumava ser. O médico olhou-me, muito sério, sem esconder uma manifesta preocupação.

- Não havia ninguém contigo no carro…

Encarei, com os olhos arregalados, aquele homem vestido de branco. Uma forte angústia aninhou-se em meu peito. Eu ouvi o som do aparelho ligado ao meu corpo acelerar o ritmo dos bips, quase ao mesmo tempo.

- Acalme-se, por favor. Agora, é melhor, primeiramente, tomar todos os medicamentos, com rigor. Acrescentei uns comprimidos com sais de Lítio, só para testarmos uma teoria. A princípio não pode ser nada muito grave, mas é conveniente termos mais certezas...

Respirei fundo e fechei os olhos, pensando no que havia ouvido.

‘Teoria… Teoria, o cacete!’

Eu sabia para que tipo de distúrbios os sais de Lítio eram usados. Era inconcebível que aquilo estivesse acontecendo comigo.

Quando reabri os olhos, o médico já seguia pelo corredor, andando na direcção da sala de Raio-X, com um grande envelope, que continha minhas radiografias, na mão.

Minha cabeça doía.

A enfermeira estendeu-me um copinho plástico com um bocado de comprimidos e pediu-me que ingerisse todos de uma vez, com um pouco de água. Até então, nem havia dado por sua presença naquele quarto. Ela observou-me com cuidado, certificando-se que eu engolia os medicamentos e saiu em seguida.

Ainda a ouvi conversar baixinho com alguém, mas não consegui perceber o que dizia, nem com quem ela falava. Pareceu-me, entretanto, que era algo como: ‘tudo vai ficar bem’…

Ela puxou a porta atrás de si, deixando-me sozinho, deitado, quase imóvel, por conta de duas pernas quebradas e umas costelas fracturadas, na cama do hospital.

Ouvi uma batida muito leve na porta e esperei, mas meus olhos fecharam-se, sem que eu conseguisse enxergar se via alguém a entrar. O efeito dos analgésicos era muito poderoso e eu adormeci muito rapidamente, naquele sono sem sonhos…

***

Poucos meses depois, com muita terapia e o uso rigoroso dos medicamentos, deixei o hospital e recomecei minha vida. Fui buscar o gato, que havia ficado na casa da minha sobrinha e trouxe-o de volta comigo. Aquele ato simples representava que minha vida voltava ao normal, aos poucos e que eu podia retomar minhas rotinas e meu emprego. 

Ainda tinha que fazer fisioterapia até recuperar meus movimentos na normalidade e visitava o hospital, pelo menos, uma vez por semana.

Numa das visitas, topei com a enfermeira que estava no quarto no dia em que acordei pela primeira vez, depois do acidente. Ela reconheceu-me e cumprimentou-me com um largo sorriso.

- Vejo que está melhor. Como vai seu amigo? Ele demonstrou uma preocupação muito grande quando o viu na cama, todo engessado…

- Que amigo?

- Aquele que se veste sempre de negro…

Devo ter feito uma cara muito estranha, pois ela logo completou.

- Ele veio cá várias vezes, até o dia em que você recuperou a consciência. Naquele mesmo dia, disse que ia viajar, por uns tempos…

- Pois. Já não o vejo há algum tempo. Obrigado pela preocupação.

***

No sábado, ainda de manhã, estava em casa arrumando minhas roupas, quando senti que, num dos bolsos de um casaco, havia um papel dobrado. Reconheci o pequeno símbolo desenhado em negro, assim que o tive na mão. Desdobrei, novamente, aquela pequena mensagem, entregue a mim, por um funcionário de um restaurante, alguns meses antes e li-a, com novo interesse.

Foi como se minha cabeça voltasse no tempo. Fiquei ali, não sei por quanto tempo, com o bilhete na mão, pensando no que havia acontecido…

O gato entrou, lembrando-me que era sua hora de comer e eu fui até a cozinha, servir-lhe a ração, mas ele parou diante da tigela de água, que estava vazia. Eu tinha certeza que havia enchido a mesma, logo depois do café da manhã, mas voltei a preencher, para satisfação do bichano, que bebeu em seguida. Ele agradeceu com uma leve cabeçada e roçou o corpo nas minhas pernas. Acariciei-lhe o dorso e a cabeça, ouvindo seu ronronar satisfeito.

Resolvi almoçar fora. Vesti o casaco e saí, com intenção de ir na direção da estação de metro. Ainda não podia conduzir normalmente e, ademais, não tinha o carro. Quando cheguei ao saguão do prédio, vi que, no vidro empoeirado da porta de entrada, havia um símbolo desenhado e que eu reconheci de imediato. Procurei algum vestígio do autor daquela façanha, do lado de fora, mas não havia ninguém por perto.

‘Alguém anda de brincadeiras comigo.’

***

Estava sentado na esplanada, num pequeno restaurante à beira da praia, com os pensamentos a vaguear muito longe. Um cálice de vinho verde, branco e fresco, pela metade, descansava ao lado do prato de peixe, que eu havia terminado há pouco.

- Pensei que preferias vinho tinto…

Reconheci o tom da voz assim que ouvi as primeiras palavras. A mesma monotonia e o timbre rouco, típicos dele, denunciaram o interlocutor.

- E prefiro, mas dado ao calor e à leveza do prato, acabei decidindo pelo branco. Senta-te.

Ele sentou à minha frente e à sombra do para-sol. Vestir-se de negro, daquele jeito, não era comum na hora do almoço e nem na esplanada de um restaurante à beira da praia, mas não comentei nada. 

Seus olhos azuis pousaram sobre os meus, naquela maneira fixa e provocadora, que era característica dele e que me incomodava sobremaneira. Senti um arrepio. Ele logo percebeu e sorriu.

- Vejo que estás bem melhor…

- Em pouco tempo estarei a cem por cento… Vi o sinal que deixaste na porta.

Ele sorriu, novamente.

- Não fui eu quem deixou o sinal.

- Ai, não? E quem foi, então?

- Quando é que vais acreditar? Ainda não tiveste provas suficientes?

- Acreditar? Eu quase morri, por tua causa e por acreditar… Queres mais que isso? Olha como eu estou. Saia da minha vida de uma vez. Isso tem que acabar…

- Mesmo que eu quisesse, isso já não seria possível.

Ele esperou pela minha reação, olhando-me fixamente. Senti que a confusão transpareceu nos meus olhos, pela forma como ele franziu o cenho.

- Vamos sair daqui.

Ele levantou-se e esperou que pagasse a conta e viesse para o lado de fora, onde as calçadas estavam povoadas de gente a caminhar ao sol. Seus cabelos reluziam com a luz de início de tarde e sua cabeça parecia incendiar. A minha parecia que ia explodir…

Caminhamos por uns minutos, sem falar nada, quando um carro preto, com os vidros protegidos por películas escuras, parou ao lado da calçada e ele disse:

- Vamos!  

- Mas esse é o carro que quase me atropelou há tempos atrás!

- Mas tu estavas bem protegido. Não foste puxado para trás, na hora certa? Nós estamos sempre atentos…

- A mulher…

Ele riu e abriu a porta. Eu segui meu instinto e entrei, com ele, no carro, que partiu imediatamente dali. Sentado no banco de trás e com os olhos no motorista, eu ainda me sentia meio atordoado pelo que acabara de ouvir... e de ver...

***