‘Desta vez pareceu-me tão
real… O que será que poderia significar, afinal?’
O
dia mal começava e eu já estava estranhamente confuso. Aquele sonho pareceu-me
mais uma verdadeira visão, de tão realístico e intenso que havia sido.
Olhei
para fora, através da grande porta de vidro que levava à varanda, com uma
xícara de café quente na mão. Percebi que chovia e ventava, como num dia de
inverno, embora a Primavera já tivesse começado há algumas semanas.
Cheguei
a pensar em voltar para a cama, mas logo desisti, pois não queria correr o
risco de voltar a adormecer e sonhar. Era melhor ocupar-me com alguma coisa
mais proveitosa, até compreender o que se passava com minha cabeça… ou
esquecer, de vez, o sonho de alguns momentos atrás.
***
Sentado
ao lado de uma grande janela, no Café da esquina, eu olhava distraidamente para
fora, quando o telefone tocou. Não foi surpresa, quando ouvi a mesma rouca e
monótona voz, já velha conhecida minha. Ouvi, com atenção, sem responder mais
que uns poucos resmungos. Levantei-me, paguei a conta e fui até a garagem,
entrei no meu carro e saí em direção à praia. Tinha vontade de acabar com
aquilo de vez, ou não teria paz.
Evitando
pensar muito, durante o percurso de pouco mais de quinze minutos, aumentei o
volume do som e fui cantando a plenos pulmões, até chegar ao meu destino. No
fundo, eu tinha um certo medo a rondar minha cabeça e perturbar minha razão e
discernimento.
Quando
cheguei ao meu destino, a chuva ainda caía insistentemente. Pensei que era um
péssimo dia para qualquer tipo de encontro, ainda mais sendo na praia.
Não
estava bem-disposto, nem muito paciente. Esperei uns minutos e, como não
apareceu ninguém, resolvi sair dali e voltar à minha vida. Dei partida no
carro, engatei a marcha à trás e pressionei o acelerador, devagar. Quando virei o
volante e ia sair do estacionamento do pequeno restaurante, à beira da praia, a
porta do passageiro abriu-se e ele entrou, para meu espanto, pois julguei que
estava trancada por dentro.
***
- Acelera e vai em frente,
em linha reta...
- Mas isso é suicídio!
- Não sejas covarde! Acreditas
ou não?
Eu
não gosto de ser desafiado, nem de ser chamado de covarde. Não olhei para o
lado. O carro subia a estrada e eu devia fazer a curva, mas não virei o volante. Acelerei
e fui em frente.
Pensei
que ia acordar, quando o carro passasse do limite do penhasco, quebrando a pequena
cerca de madeira e voando, na direção do mar, algumas dezenas de metros abaixo
de nós, mas aquilo não era um sonho. Era a dura realidade. O homem, entretanto,
sorria satisfeito, sentado ao meu lado.
O
som que se seguiu foi estranhamente ensurdecedor. Senti um gosto estranho na
boca e apaguei completamente.
***
- Foi uma bela queda.
Poderia ter sido morte certa. Se pensarmos bem, o resultado do acidente até que
nem foi tão grave, como poderia ter sido, tendo em vista a altura do penhasco… Se
não fosse pelos surfistas que viram o acidente e foram logo em teu socorro…
- Será? E o homem que
estava comigo? O que aconteceu com ele?
Eu
quase nem reconhecia o som da minha própria voz, que parecia, apenas, um eco do
que costumava ser. O médico olhou-me, muito sério, sem esconder uma manifesta preocupação.
- Não havia ninguém
contigo no carro…
Encarei,
com os olhos arregalados, aquele homem vestido de branco. Uma forte angústia
aninhou-se em meu peito. Eu ouvi o som do aparelho ligado ao meu corpo acelerar
o ritmo dos bips, quase ao mesmo tempo.
- Acalme-se, por favor.
Agora, é melhor, primeiramente, tomar todos os medicamentos, com rigor.
Acrescentei uns comprimidos com sais de Lítio, só para testarmos uma teoria. A
princípio não pode ser nada muito grave, mas é conveniente termos mais certezas...
Respirei
fundo e fechei os olhos, pensando no que havia ouvido.
‘Teoria… Teoria, o cacete!’
Eu
sabia para que tipo de distúrbios os sais de Lítio eram usados. Era
inconcebível que aquilo estivesse acontecendo comigo.
Quando
reabri os olhos, o médico já seguia pelo corredor, andando na direcção da sala
de Raio-X, com um grande envelope, que continha minhas radiografias, na mão.
Minha
cabeça doía.
A
enfermeira estendeu-me um copinho plástico com um bocado de comprimidos e pediu-me
que ingerisse todos de uma vez, com um pouco de água. Até então, nem havia dado
por sua presença naquele quarto. Ela observou-me com cuidado, certificando-se
que eu engolia os medicamentos e saiu em seguida.
Ainda a ouvi conversar baixinho com alguém, mas não consegui perceber o que dizia,
nem com quem ela falava. Pareceu-me, entretanto, que era algo como: ‘tudo vai ficar bem’…
Ela
puxou a porta atrás de si, deixando-me sozinho, deitado, quase imóvel, por
conta de duas pernas quebradas e umas costelas fracturadas, na cama do hospital.
Ouvi
uma batida muito leve na porta e esperei, mas meus olhos fecharam-se, sem que
eu conseguisse enxergar se via alguém a entrar. O efeito dos analgésicos era
muito poderoso e eu adormeci muito rapidamente, naquele sono sem sonhos…
***
Poucos
meses depois, com muita terapia e o uso rigoroso dos medicamentos, deixei o
hospital e recomecei minha vida. Fui buscar o gato, que havia ficado na casa da
minha sobrinha e trouxe-o de volta comigo. Aquele ato simples representava que
minha vida voltava ao normal, aos poucos e que eu podia retomar minhas rotinas
e meu emprego.
Ainda
tinha que fazer fisioterapia até recuperar meus movimentos na normalidade e
visitava o hospital, pelo menos, uma vez por semana.
Numa
das visitas, topei com a enfermeira que estava no quarto no dia em que acordei
pela primeira vez, depois do acidente. Ela reconheceu-me e cumprimentou-me com
um largo sorriso.
- Vejo que está melhor. Como
vai seu amigo? Ele demonstrou uma preocupação muito grande quando o viu na
cama, todo engessado…
- Que amigo?
- Aquele que se veste sempre de negro…
Devo
ter feito uma cara muito estranha, pois ela logo completou.
- Ele veio cá várias
vezes, até o dia em que você recuperou a consciência. Naquele mesmo dia, disse
que ia viajar, por uns tempos…
- Pois. Já não o vejo há
algum tempo. Obrigado pela preocupação.
***
No
sábado, ainda de manhã, estava em casa arrumando minhas roupas, quando senti
que, num dos bolsos de um casaco, havia um papel dobrado. Reconheci o pequeno símbolo
desenhado em negro, assim que o tive na mão. Desdobrei, novamente, aquela
pequena mensagem, entregue a mim, por um funcionário de um restaurante, alguns
meses antes e li-a, com novo interesse.
Foi
como se minha cabeça voltasse no tempo. Fiquei ali, não sei por quanto tempo,
com o bilhete na mão, pensando no que havia acontecido…
O
gato entrou, lembrando-me que era sua hora de comer e eu fui até a cozinha,
servir-lhe a ração, mas ele parou diante da tigela de água, que estava vazia.
Eu tinha certeza que havia enchido a mesma, logo depois do café da manhã, mas
voltei a preencher, para satisfação do bichano, que bebeu em seguida. Ele
agradeceu com uma leve cabeçada e roçou o corpo nas minhas pernas. Acariciei-lhe
o dorso e a cabeça, ouvindo seu ronronar satisfeito.
Resolvi
almoçar fora. Vesti o casaco e saí, com intenção de ir na direção da estação de
metro. Ainda não podia conduzir normalmente e, ademais, não tinha o carro. Quando
cheguei ao saguão do prédio, vi que, no vidro empoeirado da porta de entrada, havia
um símbolo desenhado e que eu reconheci de imediato. Procurei algum vestígio do
autor daquela façanha, do lado de fora, mas não havia ninguém por perto.
‘Alguém anda de
brincadeiras comigo.’
***
Estava
sentado na esplanada, num pequeno restaurante à beira da praia, com os
pensamentos a vaguear muito longe. Um cálice de vinho verde, branco e fresco,
pela metade, descansava ao lado do prato de peixe, que eu havia terminado há pouco.
- Pensei que preferias
vinho tinto…
Reconheci
o tom da voz assim que ouvi as primeiras palavras. A mesma monotonia e o timbre
rouco, típicos dele, denunciaram o interlocutor.
- E prefiro, mas dado ao
calor e à leveza do prato, acabei decidindo pelo branco. Senta-te.
Ele
sentou à minha frente e à sombra do para-sol. Vestir-se de negro, daquele
jeito, não era comum na hora do almoço e nem na esplanada de um restaurante à
beira da praia, mas não comentei nada.
Seus olhos azuis pousaram sobre os meus,
naquela maneira fixa e provocadora, que era característica dele e que me incomodava sobremaneira. Senti um arrepio. Ele logo percebeu e sorriu.
- Vejo que estás bem
melhor…
- Em pouco tempo estarei a
cem por cento… Vi o sinal que deixaste na porta.
Ele
sorriu, novamente.
- Não fui eu quem deixou o
sinal.
- Ai, não? E quem foi,
então?
- Quando é que vais
acreditar? Ainda não tiveste provas suficientes?
- Acreditar? Eu quase
morri, por tua causa e por acreditar… Queres mais que isso? Olha como eu estou.
Saia da minha vida de uma vez. Isso tem que acabar…
- Mesmo que eu quisesse,
isso já não seria possível.
Ele
esperou pela minha reação, olhando-me fixamente. Senti que a confusão
transpareceu nos meus olhos, pela forma como ele franziu o cenho.
- Vamos sair daqui.
Ele
levantou-se e esperou que pagasse a conta e viesse para o lado de fora, onde as
calçadas estavam povoadas de gente a caminhar ao sol. Seus cabelos reluziam com
a luz de início de tarde e sua cabeça parecia incendiar. A minha parecia que ia
explodir…
Caminhamos
por uns minutos, sem falar nada, quando um carro preto, com os vidros
protegidos por películas escuras, parou ao lado da calçada e ele disse:
- Vamos!
- Mas esse é o carro que
quase me atropelou há tempos atrás!
- Mas tu estavas bem
protegido. Não foste puxado para trás, na hora certa? Nós estamos sempre atentos…
- A mulher…
Ele
riu e abriu a porta. Eu segui meu instinto e entrei, com ele, no carro, que
partiu imediatamente dali. Sentado no banco de trás e com os olhos no motorista, eu ainda me sentia meio atordoado pelo que acabara de
ouvir... e de ver...
***
Mais pimenta...e vinho... na história.
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