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terça-feira, 25 de abril de 2017

Olhares (Parte 3)


‘Desta vez pareceu-me tão real… O que será que poderia significar, afinal?’

O dia mal começava e eu já estava estranhamente confuso. Aquele sonho pareceu-me mais uma verdadeira visão, de tão realístico e intenso que havia sido.

Olhei para fora, através da grande porta de vidro que levava à varanda, com uma xícara de café quente na mão. Percebi que chovia e ventava, como num dia de inverno, embora a Primavera já tivesse começado há algumas semanas.

Cheguei a pensar em voltar para a cama, mas logo desisti, pois não queria correr o risco de voltar a adormecer e sonhar. Era melhor ocupar-me com alguma coisa mais proveitosa, até compreender o que se passava com minha cabeça… ou esquecer, de vez, o sonho de alguns momentos atrás.

***

Sentado ao lado de uma grande janela, no Café da esquina, eu olhava distraidamente para fora, quando o telefone tocou. Não foi surpresa, quando ouvi a mesma rouca e monótona voz, já velha conhecida minha. Ouvi, com atenção, sem responder mais que uns poucos resmungos. Levantei-me, paguei a conta e fui até a garagem, entrei no meu carro e saí em direção à praia. Tinha vontade de acabar com aquilo de vez, ou não teria paz.

Evitando pensar muito, durante o percurso de pouco mais de quinze minutos, aumentei o volume do som e fui cantando a plenos pulmões, até chegar ao meu destino. No fundo, eu tinha um certo medo a rondar minha cabeça e perturbar minha razão e discernimento.

Quando cheguei ao meu destino, a chuva ainda caía insistentemente. Pensei que era um péssimo dia para qualquer tipo de encontro, ainda mais sendo na praia.

Não estava bem-disposto, nem muito paciente. Esperei uns minutos e, como não apareceu ninguém, resolvi sair dali e voltar à minha vida. Dei partida no carro, engatei a marcha à trás e pressionei o acelerador, devagar. Quando virei o volante e ia sair do estacionamento do pequeno restaurante, à beira da praia, a porta do passageiro abriu-se e ele entrou, para meu espanto, pois julguei que estava trancada por dentro.

***

- Acelera e vai em frente, em linha reta...

- Mas isso é suicídio!

- Não sejas covarde! Acreditas ou não?

Eu não gosto de ser desafiado, nem de ser chamado de covarde. Não olhei para o lado. O carro subia a estrada e eu devia fazer a curva, mas não virei o volante. Acelerei e fui em frente.

Pensei que ia acordar, quando o carro passasse do limite do penhasco, quebrando a pequena cerca de madeira e voando, na direção do mar, algumas dezenas de metros abaixo de nós, mas aquilo não era um sonho. Era a dura realidade. O homem, entretanto, sorria satisfeito, sentado ao meu lado.

O som que se seguiu foi estranhamente ensurdecedor. Senti um gosto estranho na boca e apaguei completamente.

***

- Foi uma bela queda. Poderia ter sido morte certa. Se pensarmos bem, o resultado do acidente até que nem foi tão grave, como poderia ter sido, tendo em vista a altura do penhasco… Se não fosse pelos surfistas que viram o acidente e foram logo em teu socorro…

- Será? E o homem que estava comigo? O que aconteceu com ele?

Eu quase nem reconhecia o som da minha própria voz, que parecia, apenas, um eco do que costumava ser. O médico olhou-me, muito sério, sem esconder uma manifesta preocupação.

- Não havia ninguém contigo no carro…

Encarei, com os olhos arregalados, aquele homem vestido de branco. Uma forte angústia aninhou-se em meu peito. Eu ouvi o som do aparelho ligado ao meu corpo acelerar o ritmo dos bips, quase ao mesmo tempo.

- Acalme-se, por favor. Agora, é melhor, primeiramente, tomar todos os medicamentos, com rigor. Acrescentei uns comprimidos com sais de Lítio, só para testarmos uma teoria. A princípio não pode ser nada muito grave, mas é conveniente termos mais certezas...

Respirei fundo e fechei os olhos, pensando no que havia ouvido.

‘Teoria… Teoria, o cacete!’

Eu sabia para que tipo de distúrbios os sais de Lítio eram usados. Era inconcebível que aquilo estivesse acontecendo comigo.

Quando reabri os olhos, o médico já seguia pelo corredor, andando na direcção da sala de Raio-X, com um grande envelope, que continha minhas radiografias, na mão.

Minha cabeça doía.

A enfermeira estendeu-me um copinho plástico com um bocado de comprimidos e pediu-me que ingerisse todos de uma vez, com um pouco de água. Até então, nem havia dado por sua presença naquele quarto. Ela observou-me com cuidado, certificando-se que eu engolia os medicamentos e saiu em seguida.

Ainda a ouvi conversar baixinho com alguém, mas não consegui perceber o que dizia, nem com quem ela falava. Pareceu-me, entretanto, que era algo como: ‘tudo vai ficar bem’…

Ela puxou a porta atrás de si, deixando-me sozinho, deitado, quase imóvel, por conta de duas pernas quebradas e umas costelas fracturadas, na cama do hospital.

Ouvi uma batida muito leve na porta e esperei, mas meus olhos fecharam-se, sem que eu conseguisse enxergar se via alguém a entrar. O efeito dos analgésicos era muito poderoso e eu adormeci muito rapidamente, naquele sono sem sonhos…

***

Poucos meses depois, com muita terapia e o uso rigoroso dos medicamentos, deixei o hospital e recomecei minha vida. Fui buscar o gato, que havia ficado na casa da minha sobrinha e trouxe-o de volta comigo. Aquele ato simples representava que minha vida voltava ao normal, aos poucos e que eu podia retomar minhas rotinas e meu emprego. 

Ainda tinha que fazer fisioterapia até recuperar meus movimentos na normalidade e visitava o hospital, pelo menos, uma vez por semana.

Numa das visitas, topei com a enfermeira que estava no quarto no dia em que acordei pela primeira vez, depois do acidente. Ela reconheceu-me e cumprimentou-me com um largo sorriso.

- Vejo que está melhor. Como vai seu amigo? Ele demonstrou uma preocupação muito grande quando o viu na cama, todo engessado…

- Que amigo?

- Aquele que se veste sempre de negro…

Devo ter feito uma cara muito estranha, pois ela logo completou.

- Ele veio cá várias vezes, até o dia em que você recuperou a consciência. Naquele mesmo dia, disse que ia viajar, por uns tempos…

- Pois. Já não o vejo há algum tempo. Obrigado pela preocupação.

***

No sábado, ainda de manhã, estava em casa arrumando minhas roupas, quando senti que, num dos bolsos de um casaco, havia um papel dobrado. Reconheci o pequeno símbolo desenhado em negro, assim que o tive na mão. Desdobrei, novamente, aquela pequena mensagem, entregue a mim, por um funcionário de um restaurante, alguns meses antes e li-a, com novo interesse.

Foi como se minha cabeça voltasse no tempo. Fiquei ali, não sei por quanto tempo, com o bilhete na mão, pensando no que havia acontecido…

O gato entrou, lembrando-me que era sua hora de comer e eu fui até a cozinha, servir-lhe a ração, mas ele parou diante da tigela de água, que estava vazia. Eu tinha certeza que havia enchido a mesma, logo depois do café da manhã, mas voltei a preencher, para satisfação do bichano, que bebeu em seguida. Ele agradeceu com uma leve cabeçada e roçou o corpo nas minhas pernas. Acariciei-lhe o dorso e a cabeça, ouvindo seu ronronar satisfeito.

Resolvi almoçar fora. Vesti o casaco e saí, com intenção de ir na direção da estação de metro. Ainda não podia conduzir normalmente e, ademais, não tinha o carro. Quando cheguei ao saguão do prédio, vi que, no vidro empoeirado da porta de entrada, havia um símbolo desenhado e que eu reconheci de imediato. Procurei algum vestígio do autor daquela façanha, do lado de fora, mas não havia ninguém por perto.

‘Alguém anda de brincadeiras comigo.’

***

Estava sentado na esplanada, num pequeno restaurante à beira da praia, com os pensamentos a vaguear muito longe. Um cálice de vinho verde, branco e fresco, pela metade, descansava ao lado do prato de peixe, que eu havia terminado há pouco.

- Pensei que preferias vinho tinto…

Reconheci o tom da voz assim que ouvi as primeiras palavras. A mesma monotonia e o timbre rouco, típicos dele, denunciaram o interlocutor.

- E prefiro, mas dado ao calor e à leveza do prato, acabei decidindo pelo branco. Senta-te.

Ele sentou à minha frente e à sombra do para-sol. Vestir-se de negro, daquele jeito, não era comum na hora do almoço e nem na esplanada de um restaurante à beira da praia, mas não comentei nada. 

Seus olhos azuis pousaram sobre os meus, naquela maneira fixa e provocadora, que era característica dele e que me incomodava sobremaneira. Senti um arrepio. Ele logo percebeu e sorriu.

- Vejo que estás bem melhor…

- Em pouco tempo estarei a cem por cento… Vi o sinal que deixaste na porta.

Ele sorriu, novamente.

- Não fui eu quem deixou o sinal.

- Ai, não? E quem foi, então?

- Quando é que vais acreditar? Ainda não tiveste provas suficientes?

- Acreditar? Eu quase morri, por tua causa e por acreditar… Queres mais que isso? Olha como eu estou. Saia da minha vida de uma vez. Isso tem que acabar…

- Mesmo que eu quisesse, isso já não seria possível.

Ele esperou pela minha reação, olhando-me fixamente. Senti que a confusão transpareceu nos meus olhos, pela forma como ele franziu o cenho.

- Vamos sair daqui.

Ele levantou-se e esperou que pagasse a conta e viesse para o lado de fora, onde as calçadas estavam povoadas de gente a caminhar ao sol. Seus cabelos reluziam com a luz de início de tarde e sua cabeça parecia incendiar. A minha parecia que ia explodir…

Caminhamos por uns minutos, sem falar nada, quando um carro preto, com os vidros protegidos por películas escuras, parou ao lado da calçada e ele disse:

- Vamos!  

- Mas esse é o carro que quase me atropelou há tempos atrás!

- Mas tu estavas bem protegido. Não foste puxado para trás, na hora certa? Nós estamos sempre atentos…

- A mulher…

Ele riu e abriu a porta. Eu segui meu instinto e entrei, com ele, no carro, que partiu imediatamente dali. Sentado no banco de trás e com os olhos no motorista, eu ainda me sentia meio atordoado pelo que acabara de ouvir... e de ver...

***