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domingo, 4 de junho de 2017

Olhares (Parte 4)



- Vamos falar sobre coisas sérias.

- Já é mais que hora de falarmos a sério…

Ele chegou-se um pouco para frente e começou a falar. Eu, de minha parte, a ouvir com atenção, não conseguia deixar de ficar impressionado pelo que aquele homem ruivo dizia.

***
- Nós somos prisioneiros.

- Como assim? Prisioneiros?

- Ainda não percebeste que tudo o que nós fazemos tem uma consequência? Nós somos prisioneiros das nossas vontades, dos nossos vícios e dos nossos medos.

- Isso é retórica…

- Será? Eu sei que tu gostas daquela frase. E é uma verdade.

- Qual frase?

Ele sorriu. Eu sabia à qual frase ele se referia, mas como sempre, queria que fosse ele a ser claro e específico. Eu sempre precisava de uma confirmação.

- Tu sabes… ah, sabes… e sabes muito bem!

Eu sorri. A ele não se podia enganar.

- Que mal há em desejar? Se o desejo for mesmo firme… se acreditarmos…

- Aí é que está o perigo… Por sorte, nem todos acreditam o suficiente… “Se tiverdes fé como um gão de mostarda” …

Eu ri, um tanto desconcertado. Não esperava que ele fosse usar uma citação daquelas.

- Tu deves saber que eu não defendo as coisas transcendentais, nem sigo nenhuma religião. A frase, entretanto, faz mais sentido que possas imaginar.

- Assim como minha frase preferida… Mas não esperava uma citação desta, de alguém que se diz “não-seguidor” de religiões.

- Nós dois sabemos que foram os homens, nos seus primórdios, que inventaram seus deuses para compensar a inépcia em explicar os fenómenos naturais, dando nomes românticos e atribuindo, assim, super-poderes às forças do universo.

E ele desfiou um longo discurso sobre como foram criadas as religiões e como a manipulação do conhecimento, pelos mais eruditos, ricos e espertos, conseguiu atravessar as eras e impingir o medo naqueles que não podiam - ou não deviam - tomar ciência da verdade.  

- Os homens têm sido enganados ao longo deste tempo todo, levados a acreditar numa grande mentira, tentando dar sentido às suas vidas insípidas e salvar suas almas pecadoras. Se soubessem a força que possuem, acima desta mentira toda, mudavam o curso da História…

- Por outro lado, não acreditar em nada pode ser tão ou mais perigoso ainda. Veja o que acontece com o mundo, quando as pessoas não têm no que acreditar ou estão simplesmente perdidas, sem fé e sem direcção. Elas não têm medo da impunidade, não tem consciência e não sentem culpa. Veja o caos que o mundo acabou se tornando, com os crimes mais absurdos e hediondos, não só uns contra os outros, mas também contra si mesmos. Nunca se cometeram tantos homicídios, nem suicídios como agora.

- Num mundo onde o acesso às informações é tão imediato, as mentiras e as notícias sem profundidade e sem sentido, espalham-se com a velocidade de um incêndio na palha seca, levado pelo vento. Poucos querem ler os jornais, mas todos acreditam no que lêm nas redes sociais. Alguma coisa precisa ser feita urgentemente.

- Mas eu sou muito pequeno para promover qualquer mudança que possa ser considerável…

- Será que és mesmo?

***

Eu nunca havia pensado naquilo, daquela forma. Era bastante triste, complexo e profundo, embora muito verdadeiro e credível.

O som de um estranho e intermitente bip começou a perturbar-me a cabeça, quando ele me estendeu a mão e disse:

- Está na hora de voltares ao outro lado…

Eu olhei para o fim daquele emaranhado de túneis, numa galeria muito iluminada, cada qual com um tipo diferente de saída, onde pessoas vestidas de negro iam e vinham apressadas. Ele conduziu-me até um dos terminais de passagem e disse-me que dali para diante eu tinha que ir sozinho, mas que tudo ia dar certo...

Confesso que tive um certo receio, quando vi o carro preto e reluzente parado do lado de fora, mas quando a porta se abriu, tive a sensação de ser sugado para fora, com uma violência inesperada, na direcção de uma luz muito forte.

Os bips pareceram mais altos e intermitentes e em cadência mais rápida.

Fechei os olhos com força. Eu, porém, sabia que tinha de encarar os factos. Senti um calor sobre meu rosto e abri os olhos, gradualmente. Uma luz muito forte ainda parecia cegar-me, mas foi diminuindo a intensidade, conforme eu piscava os olhos, tentando manter o foco nas figuras disformes à volta dela.

Poucos segundos depois, ouvi uma voz agradável, que acompanhou a solidez e forma do rosto suave e conhecido da mulher vestida de branco.

‘Um rosto familiar afinal’...

Eu sorri e ela correspondeu.

- Que bom vê-la novamente.

Ela sorriu, condescendentemente e falou, com muita delicadeza.

- O senhor acaba de sair do coma em que estava, desde que sofreu o acidente de carro. Esteve naquele estado há vários meses.

- Mas eu saí do hospital, logo em seguida… Nós já nos encontramos depois daquilo e até conversamos…

- Só se foi em sonho. É normal sonhar sonhos muito realísticos, em alguns estados comatosos. Mas agora tudo vai ficar bem. Só tem que tomar os medicamentos e fazer a fisioterapia direitinho. Em pouco tempo vai voltar à sua vida de antes…

‘Isso é impossível! Não pode estar a acontecer. Acho que estou dentro de um pesadelo recorrente’

- E o meu amigo? Ele veio fazer-me uma nova visita, pelo menos?

- Que amigo? O senhor não teve nenhuma visita.

- Aquele que se veste sempre com roupas pretas…

Ela riu e puxou o lençol, cobrindo-me até o peito. Ajustou o fluxo do medicamento intravenoso, pediu-me para ficar calmo e saiu do quarto, em silêncio.

Fechei os olhos, meio entorpecido pelo efeito dos analgésicos. Senti-me a cair num poço sem fundo, em câmara lenta, não sei por quanto tempo.

***

No canto do quarto, um homem vestido de negro mantinha os olhos fixos em mim.

- Deixei ali uma mensagem importante para ti, dentro da gaveta. Vais reconhecer pelo símbolo desenhado no papel dobrado.

Eu senti-me muito cansado, de repente, e fechei os olhos.

***

Quando abri olhos novamente, já não havia ninguém, além de mim, no pequeno quarto do hospital. Ouvi o silêncio, para ter certeza que eu estava mesmo sozinho.

Com um pouco de esforço, abri a gaveta da cómoda, na cabeceira da cama e procurei por qualquer coisa deixada lá, mas não encontrei nada, além de um Novo Testamento deixado pelos Gideões Missionários. Pensei que estava mesmo a delirar. Eu já devia saber que havia tido outro sonho…

Tive sede. Precisava de água. Olhei à volta. Havia uma garrafa plástica com água mineral, sobre a mesinha. Ao lado dela, um copo. Tentei mudar para uma posição mais sentado que deitado, para alcançar ambos, mas como não segurei a garrafa com firmeza, ela caiu no chão, com um estrondo seco e rolou pelo piso térmico.

- Que droga!

- Calma. Eu ajudo.

- O quê? Como…?

Ela juntou a garrafa, pegou o copo e serviu-me um pouco de água, que eu bebi com satisfação. Tive a impressão que não bebia água há muito tempo.

Ela sentou-se numa cadeira, cruzou as pernas e ajustou o casaco do tailleur de um moderno tweed cinzento-escuro, muito elegante, que trajava. Passou a mão pelos cabelos, trazendo uma mecha para trás da orelha direita, certificando-se que o coque estava bem preso atrás, no alto da cabeça. 

Eu ainda estava atónito, a olhar para ela, que me falou, sorrindo:

- Podes fechar a boca… Pareces muito surpreso de me ver aqui.

- Estou, claro. Não te vi entrar… Pensei que estivesse sozinho...

- Tu nunca estás sozinho.

Ela sorriu. Impressionante como parecia tão senhora de si… e, dependendo do que estava lá a fazer, talvez, também, senhora de mim…

- Tu não procuraste direito na gaveta. Devias ter aberto o livro…

Naquele instante a porta abriu-se e a enfermeira entrou e falou firme e directamente à outra mulher.

- Já acabou o horário de visitas. Ele precisa descansar.

A mulher levantou-se, aproximou-se da cama e deu-me uma palmadinha na mão.

- Eu volto outro dia, com mais tempo. Ainda temos muito a conversar…

Encarou a enfermeira, olhando-a nos olhos e saiu sem dizer mais nada. A enfermeira não pareceu abalar-se com o confronto, ainda mais que a outra obedeceu as regras do hospital.

- Se amanhã estiver bem, retiramos a intravenosa e iniciamos com as sessões de fisioterapia.

- OK.

Quando ela saiu, eu abri a gaveta e tomei o livrete de capa cinzenta, distribuído gratuitamente pelos missionários, com o objectivo de fornecer conforto espiritual aos doentes de corpo e alma. Folheei, rapidamente, as finíssimas páginas, para confirmar a informação que havia recebido. Um pequeno bilhete dobrado havia, realmente, sido deixado bem no meio do livro, onde se lia o Salmo 91. Reconheci o símbolo desenhado do lado de fora, assim que pousei meus olhos no papel.

Comecei a abrir o bilhete, com dedos trémulos. Meu coração deu um salto e senti um desconforto no estômago, como acontece quando levamos um susto, ou quando temos que enfrentar uma situação desagradável.

Era hora da verdade…


terça-feira, 25 de abril de 2017

Olhares (Parte 3)


‘Desta vez pareceu-me tão real… O que será que poderia significar, afinal?’

O dia mal começava e eu já estava estranhamente confuso. Aquele sonho pareceu-me mais uma verdadeira visão, de tão realístico e intenso que havia sido.

Olhei para fora, através da grande porta de vidro que levava à varanda, com uma xícara de café quente na mão. Percebi que chovia e ventava, como num dia de inverno, embora a Primavera já tivesse começado há algumas semanas.

Cheguei a pensar em voltar para a cama, mas logo desisti, pois não queria correr o risco de voltar a adormecer e sonhar. Era melhor ocupar-me com alguma coisa mais proveitosa, até compreender o que se passava com minha cabeça… ou esquecer, de vez, o sonho de alguns momentos atrás.

***

Sentado ao lado de uma grande janela, no Café da esquina, eu olhava distraidamente para fora, quando o telefone tocou. Não foi surpresa, quando ouvi a mesma rouca e monótona voz, já velha conhecida minha. Ouvi, com atenção, sem responder mais que uns poucos resmungos. Levantei-me, paguei a conta e fui até a garagem, entrei no meu carro e saí em direção à praia. Tinha vontade de acabar com aquilo de vez, ou não teria paz.

Evitando pensar muito, durante o percurso de pouco mais de quinze minutos, aumentei o volume do som e fui cantando a plenos pulmões, até chegar ao meu destino. No fundo, eu tinha um certo medo a rondar minha cabeça e perturbar minha razão e discernimento.

Quando cheguei ao meu destino, a chuva ainda caía insistentemente. Pensei que era um péssimo dia para qualquer tipo de encontro, ainda mais sendo na praia.

Não estava bem-disposto, nem muito paciente. Esperei uns minutos e, como não apareceu ninguém, resolvi sair dali e voltar à minha vida. Dei partida no carro, engatei a marcha à trás e pressionei o acelerador, devagar. Quando virei o volante e ia sair do estacionamento do pequeno restaurante, à beira da praia, a porta do passageiro abriu-se e ele entrou, para meu espanto, pois julguei que estava trancada por dentro.

***

- Acelera e vai em frente, em linha reta...

- Mas isso é suicídio!

- Não sejas covarde! Acreditas ou não?

Eu não gosto de ser desafiado, nem de ser chamado de covarde. Não olhei para o lado. O carro subia a estrada e eu devia fazer a curva, mas não virei o volante. Acelerei e fui em frente.

Pensei que ia acordar, quando o carro passasse do limite do penhasco, quebrando a pequena cerca de madeira e voando, na direção do mar, algumas dezenas de metros abaixo de nós, mas aquilo não era um sonho. Era a dura realidade. O homem, entretanto, sorria satisfeito, sentado ao meu lado.

O som que se seguiu foi estranhamente ensurdecedor. Senti um gosto estranho na boca e apaguei completamente.

***

- Foi uma bela queda. Poderia ter sido morte certa. Se pensarmos bem, o resultado do acidente até que nem foi tão grave, como poderia ter sido, tendo em vista a altura do penhasco… Se não fosse pelos surfistas que viram o acidente e foram logo em teu socorro…

- Será? E o homem que estava comigo? O que aconteceu com ele?

Eu quase nem reconhecia o som da minha própria voz, que parecia, apenas, um eco do que costumava ser. O médico olhou-me, muito sério, sem esconder uma manifesta preocupação.

- Não havia ninguém contigo no carro…

Encarei, com os olhos arregalados, aquele homem vestido de branco. Uma forte angústia aninhou-se em meu peito. Eu ouvi o som do aparelho ligado ao meu corpo acelerar o ritmo dos bips, quase ao mesmo tempo.

- Acalme-se, por favor. Agora, é melhor, primeiramente, tomar todos os medicamentos, com rigor. Acrescentei uns comprimidos com sais de Lítio, só para testarmos uma teoria. A princípio não pode ser nada muito grave, mas é conveniente termos mais certezas...

Respirei fundo e fechei os olhos, pensando no que havia ouvido.

‘Teoria… Teoria, o cacete!’

Eu sabia para que tipo de distúrbios os sais de Lítio eram usados. Era inconcebível que aquilo estivesse acontecendo comigo.

Quando reabri os olhos, o médico já seguia pelo corredor, andando na direcção da sala de Raio-X, com um grande envelope, que continha minhas radiografias, na mão.

Minha cabeça doía.

A enfermeira estendeu-me um copinho plástico com um bocado de comprimidos e pediu-me que ingerisse todos de uma vez, com um pouco de água. Até então, nem havia dado por sua presença naquele quarto. Ela observou-me com cuidado, certificando-se que eu engolia os medicamentos e saiu em seguida.

Ainda a ouvi conversar baixinho com alguém, mas não consegui perceber o que dizia, nem com quem ela falava. Pareceu-me, entretanto, que era algo como: ‘tudo vai ficar bem’…

Ela puxou a porta atrás de si, deixando-me sozinho, deitado, quase imóvel, por conta de duas pernas quebradas e umas costelas fracturadas, na cama do hospital.

Ouvi uma batida muito leve na porta e esperei, mas meus olhos fecharam-se, sem que eu conseguisse enxergar se via alguém a entrar. O efeito dos analgésicos era muito poderoso e eu adormeci muito rapidamente, naquele sono sem sonhos…

***

Poucos meses depois, com muita terapia e o uso rigoroso dos medicamentos, deixei o hospital e recomecei minha vida. Fui buscar o gato, que havia ficado na casa da minha sobrinha e trouxe-o de volta comigo. Aquele ato simples representava que minha vida voltava ao normal, aos poucos e que eu podia retomar minhas rotinas e meu emprego. 

Ainda tinha que fazer fisioterapia até recuperar meus movimentos na normalidade e visitava o hospital, pelo menos, uma vez por semana.

Numa das visitas, topei com a enfermeira que estava no quarto no dia em que acordei pela primeira vez, depois do acidente. Ela reconheceu-me e cumprimentou-me com um largo sorriso.

- Vejo que está melhor. Como vai seu amigo? Ele demonstrou uma preocupação muito grande quando o viu na cama, todo engessado…

- Que amigo?

- Aquele que se veste sempre de negro…

Devo ter feito uma cara muito estranha, pois ela logo completou.

- Ele veio cá várias vezes, até o dia em que você recuperou a consciência. Naquele mesmo dia, disse que ia viajar, por uns tempos…

- Pois. Já não o vejo há algum tempo. Obrigado pela preocupação.

***

No sábado, ainda de manhã, estava em casa arrumando minhas roupas, quando senti que, num dos bolsos de um casaco, havia um papel dobrado. Reconheci o pequeno símbolo desenhado em negro, assim que o tive na mão. Desdobrei, novamente, aquela pequena mensagem, entregue a mim, por um funcionário de um restaurante, alguns meses antes e li-a, com novo interesse.

Foi como se minha cabeça voltasse no tempo. Fiquei ali, não sei por quanto tempo, com o bilhete na mão, pensando no que havia acontecido…

O gato entrou, lembrando-me que era sua hora de comer e eu fui até a cozinha, servir-lhe a ração, mas ele parou diante da tigela de água, que estava vazia. Eu tinha certeza que havia enchido a mesma, logo depois do café da manhã, mas voltei a preencher, para satisfação do bichano, que bebeu em seguida. Ele agradeceu com uma leve cabeçada e roçou o corpo nas minhas pernas. Acariciei-lhe o dorso e a cabeça, ouvindo seu ronronar satisfeito.

Resolvi almoçar fora. Vesti o casaco e saí, com intenção de ir na direção da estação de metro. Ainda não podia conduzir normalmente e, ademais, não tinha o carro. Quando cheguei ao saguão do prédio, vi que, no vidro empoeirado da porta de entrada, havia um símbolo desenhado e que eu reconheci de imediato. Procurei algum vestígio do autor daquela façanha, do lado de fora, mas não havia ninguém por perto.

‘Alguém anda de brincadeiras comigo.’

***

Estava sentado na esplanada, num pequeno restaurante à beira da praia, com os pensamentos a vaguear muito longe. Um cálice de vinho verde, branco e fresco, pela metade, descansava ao lado do prato de peixe, que eu havia terminado há pouco.

- Pensei que preferias vinho tinto…

Reconheci o tom da voz assim que ouvi as primeiras palavras. A mesma monotonia e o timbre rouco, típicos dele, denunciaram o interlocutor.

- E prefiro, mas dado ao calor e à leveza do prato, acabei decidindo pelo branco. Senta-te.

Ele sentou à minha frente e à sombra do para-sol. Vestir-se de negro, daquele jeito, não era comum na hora do almoço e nem na esplanada de um restaurante à beira da praia, mas não comentei nada. 

Seus olhos azuis pousaram sobre os meus, naquela maneira fixa e provocadora, que era característica dele e que me incomodava sobremaneira. Senti um arrepio. Ele logo percebeu e sorriu.

- Vejo que estás bem melhor…

- Em pouco tempo estarei a cem por cento… Vi o sinal que deixaste na porta.

Ele sorriu, novamente.

- Não fui eu quem deixou o sinal.

- Ai, não? E quem foi, então?

- Quando é que vais acreditar? Ainda não tiveste provas suficientes?

- Acreditar? Eu quase morri, por tua causa e por acreditar… Queres mais que isso? Olha como eu estou. Saia da minha vida de uma vez. Isso tem que acabar…

- Mesmo que eu quisesse, isso já não seria possível.

Ele esperou pela minha reação, olhando-me fixamente. Senti que a confusão transpareceu nos meus olhos, pela forma como ele franziu o cenho.

- Vamos sair daqui.

Ele levantou-se e esperou que pagasse a conta e viesse para o lado de fora, onde as calçadas estavam povoadas de gente a caminhar ao sol. Seus cabelos reluziam com a luz de início de tarde e sua cabeça parecia incendiar. A minha parecia que ia explodir…

Caminhamos por uns minutos, sem falar nada, quando um carro preto, com os vidros protegidos por películas escuras, parou ao lado da calçada e ele disse:

- Vamos!  

- Mas esse é o carro que quase me atropelou há tempos atrás!

- Mas tu estavas bem protegido. Não foste puxado para trás, na hora certa? Nós estamos sempre atentos…

- A mulher…

Ele riu e abriu a porta. Eu segui meu instinto e entrei, com ele, no carro, que partiu imediatamente dali. Sentado no banco de trás e com os olhos no motorista, eu ainda me sentia meio atordoado pelo que acabara de ouvir... e de ver...

***