- Vamos falar sobre coisas
sérias.
- Já é mais que hora de
falarmos a sério…
Ele
chegou-se um pouco para frente e começou a falar. Eu, de minha parte, a ouvir
com atenção, não conseguia deixar de ficar impressionado pelo que aquele homem ruivo dizia.
***
- Nós somos
prisioneiros.
- Como
assim? Prisioneiros?
- Ainda não
percebeste que tudo o que nós fazemos tem uma consequência? Nós somos
prisioneiros das nossas vontades, dos nossos vícios e dos nossos medos.
- Isso é
retórica…
- Será? Eu
sei que tu gostas daquela frase. E é uma verdade.
- Qual
frase?
Ele sorriu. Eu sabia à qual frase ele se
referia, mas como sempre, queria que fosse ele a ser claro e específico. Eu
sempre precisava de uma confirmação.
- Tu sabes…
ah, sabes… e sabes muito bem!
Eu sorri. A ele não se podia enganar.
- Que mal
há em desejar? Se o desejo for mesmo firme… se acreditarmos…
- Aí é que
está o perigo… Por sorte, nem todos acreditam o suficiente… “Se tiverdes fé
como um gão de mostarda” …
Eu ri, um tanto desconcertado. Não esperava que
ele fosse usar uma citação daquelas.
- Tu deves saber que eu
não defendo as coisas transcendentais, nem sigo nenhuma religião. A frase,
entretanto, faz mais sentido que possas imaginar.
- Assim como minha frase
preferida… Mas não esperava uma citação desta, de alguém que se diz
“não-seguidor” de religiões.
- Nós dois sabemos que foram
os homens, nos seus primórdios, que inventaram seus deuses para compensar a
inépcia em explicar os fenómenos naturais, dando nomes românticos e atribuindo,
assim, super-poderes às forças do universo.
E
ele desfiou um longo discurso sobre como foram criadas as religiões e como a
manipulação do conhecimento, pelos mais eruditos, ricos e espertos, conseguiu
atravessar as eras e impingir o medo naqueles que não podiam - ou não deviam -
tomar ciência da verdade.
- Os homens têm sido
enganados ao longo deste tempo todo, levados a acreditar numa grande mentira, tentando
dar sentido às suas vidas insípidas e salvar suas almas pecadoras. Se soubessem
a força que possuem, acima desta mentira toda, mudavam o curso da História…
- Por outro lado, não
acreditar em nada pode ser tão ou mais perigoso ainda. Veja o que acontece com
o mundo, quando as pessoas não têm no que acreditar ou estão simplesmente perdidas,
sem fé e sem direcção. Elas não têm medo da impunidade, não tem consciência e
não sentem culpa. Veja o caos que o mundo acabou se tornando, com os crimes
mais absurdos e hediondos, não só uns contra os outros, mas também contra si
mesmos. Nunca se cometeram tantos homicídios, nem suicídios como agora.
- Num mundo onde o acesso
às informações é tão imediato, as mentiras e as notícias sem profundidade e sem
sentido, espalham-se com a velocidade de um incêndio na palha seca, levado pelo
vento. Poucos querem ler os jornais, mas todos acreditam no que lêm nas redes
sociais. Alguma coisa precisa ser feita urgentemente.
- Mas eu sou muito pequeno
para promover qualquer mudança que possa ser considerável…
- Será que és mesmo?
***
Eu nunca havia pensado naquilo, daquela forma. Era bastante
triste, complexo e profundo, embora muito verdadeiro e credível.
O
som de um estranho e intermitente bip começou a perturbar-me a cabeça, quando
ele me estendeu a mão e disse:
- Está na hora de voltares
ao outro lado…
Eu
olhei para o fim daquele emaranhado de túneis, numa galeria muito iluminada,
cada qual com um tipo diferente de saída, onde pessoas vestidas de negro iam e vinham
apressadas. Ele conduziu-me até um dos terminais de passagem e disse-me que
dali para diante eu tinha que ir sozinho, mas que tudo ia dar certo...
Confesso
que tive um certo receio, quando vi o carro preto e reluzente parado do lado de
fora, mas quando a porta se abriu, tive a sensação de ser sugado para fora, com
uma violência inesperada, na direcção de uma luz muito forte.
Os
bips pareceram mais altos e intermitentes e em cadência mais rápida.
Fechei
os olhos com força. Eu, porém, sabia que tinha de encarar os factos. Senti um
calor sobre meu rosto e abri os olhos, gradualmente. Uma luz muito forte ainda
parecia cegar-me, mas foi diminuindo a intensidade, conforme eu piscava os
olhos, tentando manter o foco nas figuras disformes à volta dela.
Poucos
segundos depois, ouvi uma voz agradável, que acompanhou a solidez e forma do
rosto suave e conhecido da mulher vestida de branco.
‘Um rosto familiar afinal’...
Eu
sorri e ela correspondeu.
- Que bom vê-la novamente.
Ela
sorriu, condescendentemente e falou, com muita delicadeza.
- O senhor acaba de sair
do coma em que estava, desde que sofreu o acidente de carro. Esteve naquele
estado há vários meses.
- Mas eu saí do hospital,
logo em seguida… Nós já nos encontramos depois daquilo e até conversamos…
- Só se foi em sonho. É
normal sonhar sonhos muito realísticos, em alguns estados comatosos. Mas agora
tudo vai ficar bem. Só tem que tomar os medicamentos e fazer a fisioterapia
direitinho. Em pouco tempo vai voltar à sua vida de antes…
‘Isso é impossível! Não
pode estar a acontecer. Acho que estou dentro de um pesadelo recorrente’…
- E o meu amigo? Ele veio fazer-me
uma nova visita, pelo menos?
- Que amigo? O senhor não
teve nenhuma visita.
- Aquele que se veste
sempre com roupas pretas…
Ela
riu e puxou o lençol, cobrindo-me até o peito. Ajustou o fluxo do medicamento
intravenoso, pediu-me para ficar calmo e saiu do quarto, em silêncio.
Fechei
os olhos, meio entorpecido pelo efeito dos analgésicos. Senti-me a cair num
poço sem fundo, em câmara lenta, não sei por quanto tempo.
***
No
canto do quarto, um homem vestido de negro mantinha os olhos fixos em mim.
- Deixei ali uma mensagem importante
para ti, dentro da gaveta. Vais reconhecer pelo símbolo desenhado no papel
dobrado.
Eu
senti-me muito cansado, de repente, e fechei os olhos.
***
Quando
abri olhos novamente, já não havia ninguém, além de mim, no pequeno quarto do
hospital. Ouvi o silêncio, para ter certeza que eu estava mesmo sozinho.
Com
um pouco de esforço, abri a gaveta da cómoda, na cabeceira da cama e procurei
por qualquer coisa deixada lá, mas não encontrei nada, além de um Novo
Testamento deixado pelos Gideões
Missionários. Pensei que estava mesmo a delirar. Eu já devia saber que havia
tido outro sonho…
Tive
sede. Precisava de água. Olhei à volta. Havia uma garrafa plástica com água
mineral, sobre a mesinha. Ao lado dela, um copo. Tentei mudar para uma posição
mais sentado que deitado, para alcançar ambos, mas como não segurei a garrafa
com firmeza, ela caiu no chão, com um estrondo seco e rolou pelo piso térmico.
- Que droga!
- Calma. Eu ajudo.
- O quê? Como…?
Ela
juntou a garrafa, pegou o copo e serviu-me um pouco de água, que eu bebi com satisfação.
Tive a impressão que não bebia água há muito tempo.
Ela
sentou-se numa cadeira, cruzou as pernas e ajustou o casaco do tailleur de um moderno tweed cinzento-escuro,
muito elegante, que trajava. Passou a mão pelos cabelos, trazendo uma mecha
para trás da orelha direita, certificando-se que o coque estava bem preso
atrás, no alto da cabeça.
Eu
ainda estava atónito, a olhar para ela, que me falou, sorrindo:
- Podes fechar a boca…
Pareces muito surpreso de me ver aqui.
- Estou, claro. Não te vi
entrar… Pensei que estivesse sozinho...
- Tu nunca estás sozinho.
- Tu nunca estás sozinho.
Ela
sorriu. Impressionante como parecia tão senhora de si… e, dependendo do que
estava lá a fazer, talvez, também, senhora de mim…
- Tu não procuraste
direito na gaveta. Devias ter aberto o livro…
Naquele
instante a porta abriu-se e a enfermeira entrou e falou firme e directamente à
outra mulher.
- Já acabou o horário de
visitas. Ele precisa descansar.
A
mulher levantou-se, aproximou-se da cama e deu-me uma palmadinha na mão.
- Eu volto outro dia, com
mais tempo. Ainda temos muito a conversar…
Encarou
a enfermeira, olhando-a nos olhos e saiu sem dizer mais nada. A enfermeira não
pareceu abalar-se com o confronto, ainda mais que a outra obedeceu as regras do
hospital.
- Se amanhã estiver bem,
retiramos a intravenosa e iniciamos com as sessões de fisioterapia.
- OK.
Quando ela saiu, eu abri a gaveta e tomei o livrete de capa
cinzenta, distribuído gratuitamente pelos missionários, com o objectivo de fornecer
conforto espiritual aos doentes de corpo e alma. Folheei, rapidamente, as
finíssimas páginas, para confirmar a informação que havia recebido. Um pequeno
bilhete dobrado havia, realmente, sido deixado bem no meio do livro, onde se
lia o Salmo 91. Reconheci o símbolo desenhado do lado de fora, assim que pousei
meus olhos no papel.
Comecei a abrir o bilhete, com dedos trémulos. Meu
coração deu um salto e senti um desconforto no estômago, como acontece quando
levamos um susto, ou quando temos que enfrentar uma situação desagradável.
Era hora da verdade…