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sábado, 24 de outubro de 2015

Espirais (Parte 2)

- Férias?
- Sim. Férias. Nós nunca tiramos férias. Desde que…
- Mas nem sabemos o que fazer… Não sei se é uma boa ideia.
- Lembras dos nossos acampamentos? Aquilo era divertido.
- Lembro. Lembro muito bem do último acampamento e dos problemas que tivemos… muito embora isso já tenha acontecido há tanto tempo…
- Pois então. Nós estamos vivos por causa do incidente. Vamos ficar longe de problemas. Não vai acontecer nada de mal desta vez. Eu prometo. OK?
- Não prometa. Ficar na base é que significa ficar longe de problemas.
- Vamos lá. Eu já consegui autorização para sairmos por três semanas.
- Como assim? Conseguiste autorização? Quer dizer que eu fui traído, então!
O rapaz riu e deu um leve soco no braço do amigo. Sabia que ele tinha, ainda, reticências sobre aquele programa, mas estava praticamente convencido a tirar as tais férias, depois de estarem tanto tempo reclusos naquela base militar.
***
- Temos que passar num lugar, primeiro.
- Que lugar? Não era esse o plano…
- Vamos ver como está a área, depois desse tempo todo.
O rapaz de óculos calou-se. Embora não tivesse previsto aquela aparente mudança de planos, também tinha curiosidade em saber. Um súbito desconforto no estômago e peito deu sinal de apreensão, mas ele só fechou os olhos e respirou fundo.
O local, como era de esperar, ainda estava cercado e tinha muitas placas de advertência, indicando proibição ao acesso e entrada de todos. O jeep alugado cortou caminho pela lateral, onde havia uma brecha na cerca de arame farpado e entrou no vasto campo destruído pela explosão nuclear, muitos anos atrás. O coração do rapaz de óculos acelerou. O outro, ao volante, conduzia com o cenho franzido e o semblante fechado e com uma seriedade e silêncio que já lhe eram peculiares. Cerca de cinquenta quilómetros adiante e meia hora depois, chegaram ao que parecia ser o centro da área. O rapaz consultou o GPS, para confirmar se estava certo. Saltou do carro e olhou à volta. O deserto estendia-se, a perder de vista, em um círculo de provavelmente bem mais que o dobro dos cinquenta quilómetros que já haviam viajado.
- Eu tinha que ter esta certeza… Eu só precisava ter mesmo certeza absoluta… Nunca nos deixaram voltar, depois daquele dia.
O outro estava de pé ao seu lado, com os olhos fixos num ponto à esquerda, onde um dia houvera uma mata e onde ficaram soterradas muitas lembranças. Uma imensa fenda estendia-se pelo campo até abrir-se numa grande cratera. Os dois soldados aproximaram-se da borda e olharam para baixo. Terra seca e não fértil escorreu para dentro da fenda, por baixo dos pés deles, até desaparecer da vista, na escuridão.
O vento assobiou na borda do precipício aberto. Um arrepio correu-lhes pela espinha acima.
Os dois viraram-se e voltaram ao jeep, em meio à uma angústia silenciosa e com o propósito tácito de nunca mais retornar a aquele árido, vazio e infecundo deserto, onde o passado havia sido enterrado para todo o sempre. Estavam definitivamente convencidos que já não pertenciam a aquele lugar. Era o destino a colocar uma pedra no passado e a abrir novos horizontes, provavelmente cheios de novas oportunidades.
O tempo encarregar-se-ia de transformá-los, aos poucos… ou não… mas constantemente.
Aqueles dois rapazes eram, agora, soldados de elite, treinados numa base militar, que lhes servia de lar, desde que o dia em que foram resgatados pelo exército, há bastante tempo atrás.
***
Sentados no hall do aeroporto, à espera da chamada para o voo, os dois jovens homens não conversavam. Tinham as faces sérias e os olhares distantes, ambos a olharem para fora, onde aeronaves de várias companhias e localidades subiam e desciam, umas após as outras, de e para os mais variados destinos.
Gentes de todas as raças, nacionalidades e origens misturavam-se, arrastando malas de todos os tamanhos, cores e formas, pelos corredores afora e em todas as possíveis direções.
Os fortes aromas das caras fragrâncias francesas exalavam das perfumarias do ‘Duty Free’, misturando-se com tantos outros, nem todos tão nobres, pela longa avenida, repleta de viajantes e seus pequenos grandes mundos. Vozes de diversas tonalidades e em vários idiomas misturavam-se às chamadas para os voos, provenientes dos altifalantes, em múltiplos e diferentes pontos do aeroporto internacional, caracterizando uma verdadeira e moderna torre de Babel.
O monitor exibiu, finalmente, a mensagem esperada com bastante aflição. O embarque estava autorizado. Os dois levantaram-se, ajeitaram as mochilas às costas e entraram na fila, em frente ao balcão de controlo. Alguns metros atrás deles, dois olhos observaram seus movimentos, com cuidadosa atenção e com discrição exemplar, certificando-se que não os perdia de vista.
Os dois soldados passaram pela funcionária uniformizada, cruzaram a porta de vidro, desceram a rampa e desapareceram na curva do corredor móvel, que levava até a pequena porta da aeronave.
Poucos minutos depois, acomodando-se nos assentos próximos às asas e ocupados em ajeitar as mochilas nos apertados compartimentos acimas das cabeças, não perceberam quando um dos passageiros passou e tomou o assento no lado oposto, algumas fileiras atrás, assegurando-se que os dois eram mantidos sob constante e criteriosa observação.
***
- Onde é que nós estamos?
- Não sei.
- Como é que nós viemos parar neste lugar?
- Não tenho ideia. Não sei o que aconteceu…
O rapaz de óculos olhou à volta e não viu a mochila com seus pertences. Sua face manifestava uma visível preocupação. O outro compreendeu sua confusão com genuína empatia. Era evidente que estavam numa grande enrascada, mesmo sem saber a razão pela qual estavam naquela sala trancada e muito mal iluminada. As paredes eram altas e nuas, pintadas de um tom impessoal, provavelmente de bege, pouco distinto na penumbra. O teto era apenas um borrão na escuridão. A sala era totalmente desprovida de móveis, mas estava muitíssimo limpa, ainda com cheiro de detergente no ar. A porta era de madeira lisa e escura, pesada e maciça e não tinha fechadura, pelo lado de dentro. Como estava muito firmemente trancada, provavelmente tinha um fecho com cadeado ou algo similar.
O chão, feito de um bloco único de cerâmica polida, era de um pardo monocromático. Havia uma impessoalidade muito fria e marcante no aposento e que dava-lhes a impressão que servia para fins não muito dignos.
- Temos que repassar os últimos acontecimentos a limpo e com cuidado, para tentar resgatar alguma memória. Qual é a última coisa que tu lembras? Lembras de termos saído do avião? Lembras de chegarmos até a saída?
- Sim. Lembro bem. Até acenarmos para o táxi, já do lado de fora do aeroporto. Disso eu lembro claramente...
- Mas uma 'van' escura parou antes... e alguém esbarrou em mim.
- Em mim também… Depois tudo ficou confuso… Não consigo lembrar de nada direito. Acho que fomos drogados e assaltados.
- Ou sequestrados…
Os dois rapazes chegaram à aquela conclusão com alarme nos olhos e com um aperto no coração.
Um estranho silêncio instalou-se no meio dos dois, quando ouviram o som de passos a reverberar no piso do lado de fora do aposento onde estavam aprisionados. O ruído de metal roçando contra metal e batendo solto na madeira deixou-os em posição de alerta. Alguém mexia no ferrolho, abria a porta e entrava, sem ser anunciado, nem convidado...

***

sábado, 17 de outubro de 2015

Espirais (Parte 1)

Os dois jovens homens atravessaram, correndo, o grande hall, a procura de uma saída. O som de seus passos ecoava pelas paredes e pelo teto alto, em forma de abóbada com arcos góticos, que sustentavam a pesada estrutura, num desenho arquitetónico bastante rebuscado. Atrás deles, uma moça, um pouco mais nova que eles seguia, descalça e vestida com uma espécie de túnica azul celeste, amarrada na cintura com um cordão da espessura aproximada de um dedo, feito de fibra dourada e trançada à mão. 
Os rapazes viram um pórtico, também em arco, que dava para fora do edifício e seguiram por lá. A moça ainda tentou avisá-los, mas já era tarde. A tal passagem levava a um pátio murado, mas sem portões de saída, como se fosse uma varanda fechada. As paredes de pedra lisa não permitiam que subissem e não havia nada à volta que pudesse sugerir uma saída ou passagem que pudesse ser usada para chegar a qualquer lado, ou para atravessar para o outro lado do muro. A única alternativa era voltar para dentro. Eles subiram os três degraus de um pequeno lance de escadas e correram na direção de onde vieram, novamente, chegando até onde a moça os observava, sem mover-se, mas demonstrando uma certa impaciência, por eles não lhe haverem dado ouvidos. Os dois passaram e carregaram-na junto com eles, puxando-a pela mão. A moça foi junto, sem resistir. Os três seguiram pelo corredor vazio até uma grande sala, muito maior que o hall por onde vieram e muito mais impressionante.
O piso era de um mármore puro e muito alvo, praticamente sem manchas. As paredes pareciam não haver sido pintadas alguma vez, não tinham nenhuma decoração adicional, nem eram perfuradas por janelas ou quaisquer tipos de aberturas. Não haviam cadeiras ou assentos no aposento, tampouco. Dois círculos concêntricos, um vermelho e um dourado, estavam pintados no chão, à volta de onde uma árvore havia sido plantada, provavelmente há muitas dezenas de anos, no centro daquela sala. Suas muitas e longas raízes aéreas denunciavam sua idade. Seus ramos, longos e pesados, eram sustentados por muitas forquetas de metal, tão antigas, que muitas delas já faziam parte do madeiro, que as envolvia, como se quisesse que nunca deixassem de sustentá-lo. Em volta do enorme tronco, uma encorpada liana, quase sem folhas, subia em espiral, para além do limite do teto e perdia-se da visão. Eles ficaram a olhar, boquiabertos, a imensidão daquela árvore centenária, tão sóbria e respeitosamente senhora daquele lugar.
Passos pesados e ligeiros aproximavam-se pelo corredor, fazendo os três entrarem em estado de alerta, mudando o foco de sua atenção. Homens armados entraram na grande sala, aparentemente dispostos a tudo. Os rapazes apressaram-se a subir pela espiral, mas a moça, que havia ficado por último, foi logo apanhada por um dos homens. O rapaz de óculos quis voltar atrás, mas ela gritou:
- Fujam! Depressa!
Ela foi carregada para fora da sala e do campo de visão dos dois, enquanto um dos homens começava a subir atrás deles. Não foi preciso muito para decidirem para qual lado ir. Só tinham que ser mais rápidos que o seu perseguidor.
Por cima do telhado, os ramos estendiam-se para além do limiar das muralhas da grande edificação. Eles tomaram a direção do que pareceu ser a saída mais próxima, por cima do pátio murado, onde estiveram minutos antes. Este estava construído por cima de uma grande ravina rochosa. Uma névoa impedia de ver o fundo do precipício, mas dali eles podiam ouvir o som de água a correr muito abaixo de onde estavam. Vendo que aquela direção os conduziria à uma morte mais rápida, os dois resolveram voltar.
O rapaz de óculos virou-se e viu que o homem que os perseguia estava sobre o mesmo galho da árvore em que estavam e vinha aproximando-se deles. Sem saber o que fazer, ele paralisou, completamente, a meio caminho. Seu companheiro, ao ver que ele não sabia como reagir, diante daquela situação, puxou-o para trás, certificou-se que ele não caía e correu na direção do homem, que já apontava a arma contra eles. A investida contra seu corpo pegou o homem de surpresa e fê-lo perder o equilíbrio e cair por cima do telhado e rolar dali abaixo. Ainda ouviu-se um tiro, que deve ter sido a reação do homem ao tentar apegar-se a algo enquanto desabava do galho da imensa árvore.
Eles correram para o outro lado, na direção de uma densa floresta, até onde um dos galhos curvava para baixo, devido ao excesso de peso e saltaram para a mata. Tinham que sair dali a qualquer custo.
Havia uma espécie de trilha marcada, pela qual seguiram, por puro instinto. Se havia aquele caminho tão distinto, devia, certamente, levar a algum lugar para fora dali. Correram até onde a tal trilha terminava no topo do paredão da ravina. Apesar de não ver o fundo, sabiam que passava um rio por baixo. Deviam ter andado em círculos, à volta da fortificação. Uma saída era para trás, a tentar encontrar outra alternativa. A outra era para baixo… E era muito abaixo de onde estavam.
As vozes de vários homens a gritar no meio da densa vegetação e aproximando-se deles, rapidamente, fê-los entrar em pânico. Um rugido, aterrorizante e ameaçador, ouvido atrás deles, muito alto e aparentemente muito próximo de onde estavam, foi sinal suficiente para apressar-lhes a única possível decisão. A saída, naquele momento, era, definitivamente, para baixo.
Eles saltaram, antes que a fera – fosse ela qual fosse – e também os homens estivessem perto demais. O tempo pareceu-lhes bastante longo, enquanto caíam no vazio, entre o topo do paredão, a névoa do caminho e o fundo, onde esperavam haver água… muita água…
Quando a adrenalina está correndo muito rapidamente e em nível alto no corpo, a perceção de tempo e espaço, bem como as sensações, são distorcidas pelo cérebro. É como olhar pelo espelho lateral de um veículo, para certificar-se da direção, mas sem saber ao certo se as distâncias estão bem calculadas. Era necessário uma experiência maior, para certificar-se, mas não havia tempo para experimentar.
O impacto foi menor que eles imaginaram, quando chocaram-se contra a água fria do largo e profundo curso de água. As corredeiras, porém, eram mais fortes que eles esperavam e nadar era praticamente impossível. Deixaram-se ser arrastados pela correnteza, rio abaixo, na esperança de que, em algum ponto mais adiante, houvesse calmaria, para poderem sair dali, em segurança. Tentavam não afogar-se nem engolir água demais, no caminho, mantendo a atenção um no outro, para não ficarem perdidos, nem separados. Pelo menos estavam seguros, indo para longe de onde caíram e da perseguição dos homens armados.
Alguns quilômetros abaixo, quando as piores e mais violentas corredeiras já haviam ficado para trás, mas ainda deixando-se levar pela correnteza, avistaram uma região aparentemente mais virgem. Uma espécie de alívio tomou conta deles, quando perceberam que estavam vivos e a salvo, longe da ameaça na fortaleza.
A impressão foi logo desmistificada, quando viram que um grupo de homens os observava de cima de uma grande rocha, na curva do rio. Sem saber se estavam a salvo ou cada mais em perigo, deixaram-se levar, sem saudar os observantes.
Alguns homens correram pela margem, seguindo os dois, provavelmente até um ponto onde pudessem resgatá-los… ou atingi-los, de alguma forma e acabar, de vez, com a vida deles. Uma sensação esquisita de medo, apesar de haverem sido treinados pelo exército, passou pelos dois, instintivamente e ao mesmo tempo. A amizade entre eles ia além de uma comum e parcial afinidade. Havia uma sintonia maior, especialmente depois do que passaram juntos, até serem recolhidos por um soldado num jeep do exército, há muito tempo atrás.
Como daquela vez, estavam incertos se, ao serem resgatados, estariam mais a salvo ou em maior perigo.
Como a sorte gostava de brincar com os dois, a correnteza ficou mais calma. Os homens que corriam pelas margens, seguindo o trajeto deles, enquanto eram levados pelas corredeiras, no leito do rio, aproximaram-se e entraram na água, apressando-se a retirá-los de lá…

***

domingo, 28 de junho de 2015

Rota de Fuga (Parte 3 - Epílogo)


- Vocês não podem estar aqui. Essa área é classificada como de segurança nacional. É proibida a permanência de civis, além de ser muito perigoso…
Os rapazes não sabiam o que dizer. O soldado recitava, com uma certa dificuldade, o discurso que, provavelmente, aprendera durante seu treinamento. Estava caído no chão, com algumas queimaduras estranhas na pele das mãos e do rosto. Pela boca, escorria um fio de sangue, mas ele havia sido, certamente, preparado para proteger o lugar, com a sua vida, se fosse necessário. Ele não sacou a arma, nem fez menção de tentar. Parecia saber que estava morrendo rapidamente. Tentou levantar-se, mas o esforço só piorou sua condição. Ele tossiu e soltou uma golfada de sangue, antes de perder a consciência. Os rapazes evitaram aproximar-se, mais por medo, do que incapacidade ou respeito às regras. Um som intermitente saía de algum lugar na sala, mas eles não conseguiam distinguir de onde vinha.
- Que lugar é esse? E de onde vem este som? Parece algo que eu já ouvi antes, mas não consigo lembrar-me de onde…
- Não sei. Parece um depósito, pela quantidade de caixas empilhadas. Aquilo ali…
O rapaz hesitou em concluir a frase, mas prosseguiu, ao ver que o ponteiro do aparelho, que emitia aquele som quase contínuo, oscilava de um lado ao outro, sem parar. Estava encostado ao corpo do soldado desacordado.
- …é um contador Geiger? Parece com um daqueles que vimos nas aulas de Ciências.
Ao ser afastado de onde estava, o contador diminuiu a ação. O rapaz aproximou-o mais uma vez do corpo do soldado e o som voltou a ser aquele ra-ta-tá-tá intermitente.
- Ele foi submetido à radiação. Este lugar pode estar totalmente contaminado. Temos que sair daqui.
- Olha aquilo. O que deve haver lá dentro?
Havia uma porta metálica, que levava a um outro compartimento, na parte traseira daquela sala, onde haviam muitas prateleiras com comida não perecível, água e outros víveres, provavelmente estocados para o caso de alguma emergência ou acidente... e aquela era uma emergência, com certeza.
- Vamos ver se a comida e a água estão aproveitáveis. Se não estiverem, não podemos usá-las. Qualquer sinal de radiação deve nos fazer mal. Acho que será melhor manter sempre o aparelho connosco, daqui para diante. Pode ser-nos muito útil.
Constataram que, dentro daquela sala, porém, tanto a água quanto a comida desidratada estavam boas, sem qualquer sinal de radiação. Também havia algumas barras de chocolate, que podiam cair bem numa hora de enganar o estômago, se fosse conveniente. Os rapazes pegaram alguns pacotes e encheram a mochila. Também pegaram um pouco de antisséptico e gaze. Numa outra caixa, mais afastada, havia algumas bolsas com alças ao tiracolo. Eles tomaram uma delas, encheram com comida e água e apressaram-se a deixar o lugar, antes que a radiação lhes causasse algum mal.
Ao passarem pelo soldado, perceberam que ele já não respirava. Havia uma grande mancha de sangue a espalhar-se no peito da farda. Já não havia nada que eles pudessem fazer, mesmo que quisessem.
- Vamos embora daqui. Este lugar causa-me uma má impressão. E é perigoso demais…
- Tive uma ideia. Ainda tens a bússola?
- Acho que tenho. Aqui.
- Segundo as aulas de Geografia, a cidade fica ao noroeste.
- Como é que lembras disso?
- Como é que não lembras? É para isso que levamos as bússolas, quando acampamos no mato… Pela orientação da agulha, se o norte é naquela direção, este túnel segue para o noroeste… Deve levar-nos à cidade. Era esta, com certeza, a ‘rota de fuga’ deste lugar e o depósito, uma das últimas possibilidades de abastecimento, em caso de acidente. Eles pensaram em quase tudo.
- Claro. São engenheiros e cientistas. Será que sobrou alguém?
- Claro que sim... Não faça perguntas idiotas. Vamos embora daqui, antes que mais alguém nos pare.
Caminharam pelo extenso corredor por algum tempo, sem ver ou ouvir qualquer coisa, além do som dos próprios passos a ecoar no piso de concreto. Às vezes parecia que a estrutura rangia, quando eles passavam e eles, então, apressavam o passo, receosos que a mesma quebrasse.
Mais à frente, à esquerda, viram um outro corredor lateral, depois de terem caminhado algumas dezenas de metros. Um sinal indicava, com uma seta: Laboratório de Pesquisas e Desenvolvimento. Enveredaram por ali, mas antes que chegassem a algum lugar, viram que a estrutura havia entrado em colapso e, boa parte dela, havia começado a desabar. Uma espessa porta metálica bloqueava-lhes o caminho. Era controlada e aberta por um sistema eletrónico de segurança, com um código a digitar, mas como não havia eletricidade, não havia forma de mover um centímetro sequer da pesada porta. Eles tentaram forçar a entrada, mas foi em vão.
Na parte que havia quebrado, conseguiram ver o tamanho da cratera deixada e o estado que ficara o edifício subterrâneo da base. A destruição era total. A cratera engolira todo o edifício principal, que havia na parte central.
A estrutura estremeceu e um som, já conhecido deles, fê-los olharem-se, em pânico. O piso começava a quebrar por baixo dos pés deles. Os dois nem pensaram muito. Correram dali o mais rápido que conseguiram. Já de volta ao corredor, pisando terreno mais firme e pensando estarem fora de perigo, pararam para avaliar a situação.
- Temos que parar de entrar nestas frias, a cada esquina, apenas por curiosidade. É melhor mantermo-nos no túnel e evitarmos mais perigos. Quero sair daqui o quanto antes.
- Vamos embora, então. Se a única saída for à cidade e, para o nosso bem, é melhor que seja, temos muito chão a percorrer... Isso, se não encontrarmos mais obstáculos pelo caminho. Pelas minhas contas, se caminharmos cerca de cinco quilômetros por hora, devemos estar lá em pouco mais de dez horas.
- Dez horas? Não sei se vou aguentar…
- Desculpa. Havia-me esquecido das horas, com esta agitação toda. É melhor comermos alguma coisa e descansar um pouco, antes de continuarmos. Como está o ferimento?
Ao invés de responder, o rapaz parou, com uma expressão estranha no rosto e, apesar de estar sem os óculos, tinha os olhos parecendo fixos num ponto atrás do amigo.
O outro voltou-se, para ver o que se passava e ficou tão estarrecido quanto o rapaz que havia sido ferido. Não esperavam por aquela. Não depois de tudo que já haviam passado.
***
- Será que aquele depósito tem ferramentas?
- É bom que tenha, ou nunca sairemos daqui. Lá se vão as dez horas de caminhada…
- Não contava com essa. Pensei que teríamos o túnel livre até o povoado. É muito azar. Aquela é nossa única alternativa. Não há outra saída.
As explosões haviam enfraquecido as vigas de sustentação do túnel. Algumas partes haviam caído e outras apresentavam risco iminente. Os dois rapazes não tinham ideia do perigo que ainda corriam, até que uma boa parte do teto rompeu-se à frente deles e bloqueou o túnel completamente. A saída, que antes parecia fácil, estava fora de alcance dos dois, naquele momento. 
Havia uma alternativa… Uma única alternativa: escavar, até conseguir sair daquela situação.
***
- Preciso descansar. Já faz tanto tempo que cavamos. Ainda não conseguimos nada. Será que vamos conseguir sair daqui?
- Cala-te... Claro que vamos. Por isso não podemos desistir. Este túnel tem que ser a nossa saída… 
- Se tivéssemos uma forma de cavar mais rápido…
- Acho que há…
Pela expressão na face do rapaz, o plano era, ou brilhante, ou louco. De todas as formas, parecia ser imprudente e arriscado demais.
- Tens certeza que isso vai dar certo? Podemos quebrar isso tudo e ficar soterrados de uma vez. Sem contar com o perigo de ficarmos sem ar…
- Não tens outra ideia melhor, tens? Vamos a isso!
O rapaz atirou uma granada de mão contra o monte de terra que haviam estado a escavar e correu na direção oposta. Havia visto duas delas na cintura do soldado morto, dentro do armazém. Se conseguissem abrir uma passagem no meio do túnel, ainda conseguiriam transpor e correr para longe dali, antes que as estruturas desabassem todas, por estarem enfraquecidas demais. A granada poderia ter o efeito oposto ao que eles desejavam, mas era uma hipótese, entre as poucas que haviam.
Quando a poeira baixou, correram para ver se conseguiram atingir o objetivo. Uma grande cratera havia sido aberta no monte de terra, mas não havia sido suficiente para proporcionar-lhes a liberdade. Foi decepcionante. O rapaz sentou-se, desanimado, sobre um monte de terra. Sentia vontade de chorar e desistir, mas não queria demonstrar fraqueza ao amigo, que já tinha sido ferido por culpa da curiosidade de ambos. Tinha que mostrar-se forte, mesmo sabendo que estavam condenados a ficar naquele lugar. Pousou a cabeça entre as duas mãos e sentiu que podia enterrar-se ali. Desejou que aquilo fosse somente um sonho mau... um pesadelo… mas não era…
O outro aproximou-se e tocou-lhe no ombro.
- Foi uma boa tentativa. Fizemos o que podíamos. Vamos descansar dentro do armazém e depois continuamos a cavar. Pelo menos o teto não cedeu… ainda… Estou cansado e com fome. Vamos parar um pouco.
- Tinha que ter dado certo. Não podia dar errado. Agora estamos mesmo enrascados…
O teto, acima do monte de terra que havia sido explodido, fez um som conhecido e começou a abrir uma rachadura, que desceu pela parede, correu pelo chão e começou a desabar, ali na frente deles. Um dos rapazes começou a correr. O outro seguiu-o, mas ao olhar para trás, para certificar-se que estavam a salvo e longe do perigo, parou e gritou ao outro:
- Volta! Olha aquilo!
Havia uma pequena fenda ao lado direito, junto à parede. Não era suficiente para passarem, mas eles conseguiam ver através dela. O corredor estava praticamente desimpedido, do outro lado. Mas a parede era de betão sólido. Não havia como cavar à volta.
- Nós ainda temos uma granada…
- Ah, não! Nós vamos morrer soterrados.
O rapaz não ouviu o aviso do outro. Colocou a granada na fenda, com extremo cuidado, mas certificando-se que ficava bem presa. Amarrou um barbante no gatilho e puxou o fio de uma distância que considerou suficientemente segura. A granada demorou um pouco e explodiu, como era de esperar.
Quando conseguiram chegar perto, viram que havia espaço suficiente para passarem, mas a estrutura estava começando a desabar, novamente. Eles passaram e o teto caiu logo atrás deles, cerrando o que havia atrás, incluindo a única fonte de comida e água que tiveram. Os dois correram como desesperados pelo corredor escuro, sem olhar para trás e sem intenção de parar tão cedo.
***
- Ainda não vimos ninguém, além do soldado a morrer... E não foi uma visão espetacular. Nunca havia visto nada parecido.
- Nem eu. Mas acho que é melhor não encontrarmos mais ninguém. Somos intrusos aqui. Queres parar um pouco?
Eles haviam perdido a noção do tempo, completamente, desde que entraram naquela aventura. Mas ao consultar as horas, viram que deviam estar na cama há muitas horas. Não foi necessária resposta. Os dois arranjaram-se contra a parede e deitaram as cabeças sobre as mochilas. Adormeceram quase imediatamente, tão grande era o cansaço físico que sentiam.
***
Quando o rapaz que havia perdido os óculos acordou, ouvia um som conhecido, mas não conseguia associar a nada, de tão atordoado que estava. Uma vibração constante reverberava em seu estômago, dando-lhe a impressão que não comia há muitos dias. Quando conseguiu focar os olhos, viu que o amigo estava de pé a olhar, com uma cara muito assustada, para um clarão que se aproximava e que o cobria de uma estranha luminosidade, como se fosse ele um ser  totalmente feito de luz.
- Estamos ferrados. Levanta-te devagar. Não digas nada!
- O que é aquilo?
- Nossa salvação ou nossa morte!
O jeep blindado aproximou-se e parou a poucos centímetros dos dois. Um soldado saiu do volante e veio na direção dos dois, com uma arma em punho, mas quando viu o estado crítico em que os rapazes estavam, guardou a arma e mudou a estratégia.
- Venham comigo! Preciso ver se ainda há alguém lá na base.
- Não há mais nada lá e o túnel está bloqueado em vários pontos. A estrutura desabou, junto com todo o resto.
- E como vocês entraram aqui e como escaparam?
Os rapazes contaram, brevemente, sua inusitada história, com algumas pequenas reticências, tentando evitar maiores problemas. O soldado não disse muito. Virou o rumo do carro e foi na direção da qual viera. Ao contrário do que os rapazes pensavam, a saída estava bem mais longe do que cinquenta quilômetros do centro da base. Por precaução, resolveram não perguntar nada, pelo menos até que estivessem seguros e fora dali.
Muitos quilômetros adiante, havia uma grande porta de metal, ainda fechada. Por cima dela, em letras brancas, num fundo vermelho, estava escrito: SAÍDA. 

Os corações dos dois deram um salto. Estavam, finalmente, livres de perigo...
O soldado desceu do jeep e foi até a porta. Havia uma alavanca que ele começou a girar e a porta começou a mover-se, lentamente. A luz lá fora era muito pouco intensa. Chovia. Já no carro, o homem disse-lhes:
- Ponham os cintos de segurança... Preparem-se.
- Meu Deus! O que aconteceu aqui? Onde estão as plantações?
- Estamos passando pelo que sobrou delas. Viraram cinzas... assim como todo o resto.
O contador Geiger começou a vibrar e o ponteiro parecia enlouquecido, ratatatando sem parar.
- Estamos um pouco além da cidadela. Já não há mais nada lá. Tenho que levá-los à base principal, longe do perigo. O carro é revestido de chumbo, mas tenho que passar rápido por essa região.
- Não, por favor. Precisamos voltar para casa. Nossos pais devem estar preocupados.
- Não posso. Já não há nada lá. Foi tudo destruído na explosão. A população foi tomada de surpresa pela sequência de  explosões. Morreram todos num raio de mais de cinquenta quilômetros. Sinto muito rapazes. Vocês agora vão ter que vir comigo, até a base. Não há alternativa.
O jeep blindado deslizou em alta velocidade pela estrada, passou por um posto de controlo, muito além e rumou para a base. No banco de trás, um rapaz chorava sem parar, com a cabeça enterrada no ombro de um outro, que tinha lágrimas nos olhos, mas mantinha uma expressão séria e fechada, tentando manter-se forte a todo custo.
O soldado não disse mais nada. Não havia nada que ele pudesse dizer. Imaginava o tamanho da tragédia e o peso que aqueles dois rapazes iriam carregar pelo resto de suas vidas. Mais adiante, parou em outro posto de vigia, trocou umas poucas palavras com o guarda, que mantinha o controlo da guarita e entrou na grande base militar.
A chuva, fina e fria, caía sem parar. 

Aqueles dois jovens, sobreviventes de uma inverosímil hecatombe, sentiam como se estivessem tendo um pesadelo. Não sabiam, entretanto, se aquele sonho ruim já terminara ou se apenas começava...


quarta-feira, 10 de junho de 2015

Rota de Fuga (Parte 2)


O vilarejo tinha poucos habitantes e vivia, basicamente, dos resultados das colheitas de suas plantações, especialmente, culturas de milho e trigo, que estendiam-se por vários hectares de terra fértil. Também plantavam horticulturas de época, porém em menor escala. Era raro serem visitados por outros, que não os intermediários, que vinham buscar as safras, distribuídas pela cooperativa local e que acontecia segundo um calendário pré-estabelecido. 
A base, estrategicamente localizada num raio de mais de cinquenta quilômetros do povoado, para que as idas e vindas do exército fossem muito bem camufladas, mesmo durante a fase de construção, começara as atividades como um genuíno acampamento militar. Rapidamente evoluiu para uma sofisticada base de testes e experiências secretas, muitas delas sustentadas por fundos de pesquisas, alimentados por grandes empresas civis e públicas, direcionados para a área nuclear. A base já não era unicamente militar, pois os investidores, com interesses tecnológicos, tinham calendários definidos e precisavam de um cumprimento bastante rigoroso aos mesmos. Os pesquisadores eram grandes cientistas procedentes de uma incubadora de um grupo de Universidades e, convenientemente, recrutados pelo exército.
Um tremor de terra, incomum naquela região, chamou a atenção dos habitantes da pequena localidade. Os agricultores pensaram que a hipótese de um terremoto estava fora de cogitação, quando o primeiro tremor foi sentido. Ficaram em alerta, sem deixar o trabalho, mas quando o segundo sismo ribombou, bem mais forte que o primeiro, saíram em desabalada corrida, de volta para suas casas.
Não estavam preparados, de maneira alguma, porém, para o que viria a seguir.
***
A cavidade abrira tão rapidamente, com tanta violência e de uma forma tão ampla, que seria impossível, para qualquer criatura, agarrar-se a algo, enquanto caía para dentro do enorme abismo, que se formava desgovernadamente. Era como uma grande cascata de terra, cujas areias levavam, junto com elas, tudo o que podiam, enquanto escorregavam pelas bordas de um imenso poço, que aumentava de tamanho e profundidade, com velocidade vertiginosa.
- Depressa! Agarra a alça da mochila e não larga até eu dizer…
Como não havia forma de suster a queda, agarraram-se às alças da mochila, para poderem ficar juntos.
Separados, eles teriam menos condições de sobrevivência, se conseguissem escapar daquela. O rapaz de óculos passou o braço numa das alças. O outro repetiu o gesto, enquanto os dois continuavam a ser engolidos pela ávida cratera.
Alguns metros abaixo, porém, um espesso tubo de metal, que estendia-se através do diâmetro do poço, reteve a queda, deixando-os pendurados, cada um de um lado, a balançar no vazio. O impacto contra o tubo fez os óculos caírem no meio do buraco, que aumentava de profundidade com muita rapidez.
O outro rapaz viu que abaixo deles havia um grande corredor de concreto, que estava quebrado, mas que parecia firme. Tinham que ser rápidos e tentar saltar até lá, antes que o cano vergasse e quebrasse. 
- Olha para baixo. Temos que balançar e tentar cair naquele corredor. Achas que consegues?
- Não!
- Faz impulso para a frente e balança o corpo. Salta, quando eu disser.
- Não!
- Se não pulares, vais morrer. Pula! Agora!
Os dois saltaram. Sem enxergar bem, já que ficara sem os óculos, o rapaz não largou a mochila, em nenhum momento, colocando-a contra o peito, quando viu que ia bater contra o chão de concreto. Na queda, as pernas não aguentaram o impacto e ele tombou sobre o lado ferido, que ainda sangrava, perdendo a consciência.
O outro aproximou-se e examinou o ferimento. Felizmente a bala passara de raspão, mas havia bastante sangue na camisa do amigo. Na mochila, havia uma caixinha com uns band-aids de vários tamanhos, que ele usou para cobrir o ferimento, depois de limpar com a camisa e um pouco de água, que ainda restava, numa garrafinha de plástico. Usou um curativo maior sobre o outro menor, amarrou uma bandagem, que fez com um pedaço de sua própria t-shirt, por cima do curativo, para manter uma certa pressão… e era o que podia fazer. Esperava que aquilo resolvesse por ora.
Puxou o amigo para longe da abertura, aprumou-o num canto, contra a parede e olhou à volta.
O túnel era longo e amplo, parecendo estar construído em espiral, porque as paredes eram curvas e aparentemente subiam ou desciam, embora bastante subtilmente. Haviam galerias laterais e um sistema de ventilação centralizado, que tinha aberturas para o exterior, para renovação de ar.
- O que aconteceu?
- Tu desmaiaste. Fiz um curativo no ferimento, para tentar estancar o sangue. Agora, descansa um pouco, que eu vou procurar uma saída.
- Não. Eu vou junto. Não quero ficar aqui sozinho.
- Tens certeza?
***
Os dois subiam pelo túnel de ligação aos corredores, quando a terceira explosão ocorreu. Ouviram um som atrás deles, como se algo viesse arrastando, em velocidade acelerada. Quando viram o que era, apressaram-se a correr pelo túnel, na direção oposta. Uma das galerias havia quebrado e grandes massas de terra vinham, como numa avalanche, a persegui-los. Ele entraram numa conduta de ar, mas esta balançou e rompeu.
Os rapazes caíram dentro de uma grande sala, totalmente vedada do exterior, com grossas paredes de concreto armado. Havia uma porta em cada lado. Por cima deles veio a avalanche de terra, a cair, descontrolada. Os dois correram e encostaram-se num vão perto de uma das portas. A terra caiu e soterrou grande parte do lugar.
Em seguida, o lugar todo estremeceu e as luzes, que ainda haviam nas laterais da sala, estouraram ao mesmo tempo. Ficou tudo às escuras. Eles não se moveram por uns longos segundos, tentando ouvir tudo o que se passava à volta.
De repente, com um som estranho, muito ténue, como de contactos metálicos sendo acionados pela passagem da corrente elétrica, uma luz vermelha acendeu, meio incerta de ficar ativa, por muito tempo, acima da cabeça deles. Eles olharam na direção da luz e viram a palavra escrita, em branco, sob fundo vermelho: SAÍDA.
Foi naquele momento que o lugar começou a estremecer todo, primeiro como uma vibração crescente, depois com mais violência. Por fim, parecia que a sala toda ia desabar por cima deles. O som era ensurdecedor. Aquilo durou apenas alguns minutos, mas as estruturas, todas, começaram a balançar de uma maneira tão violenta, que a parede por trás deles rompeu-se, ao lado da porta trancada. As vigas de sustentação por cima deles arrebentaram e o teto veio abaixo. Um dos rapazes esgueirou-se pela fenda na parede e puxou o outro atrás dele. A avalanche selou o lugar onde estavam e a fenda desapareceu, soterrando completamente a antecâmara, onde haviam estado apenas uns segundos antes. Ao dar uns poucos passos à frente, na escuridão, não viram que o chão também havia cedido e havia uma grande fissura aberta no chão, por onde os dois caíram, inadvertidamente.
***
- Que lugar é esse? Parece um bunker…
- Não sei... Mas temos que sair daqui, depressa. Temos que tentar achar uma saída, porque não sabemos se haverá ar suficiente. Estamos muito soterrados. Tem que haver uma saída qualquer deste lugar.
- Parece que há uma abertura naquela direção. Vejo uma claridade. Pode ser uma saída. Vamos tentar chegar até lá…
A tal abertura nada mais era que uma grande rachadura numa das paredes, por onde passaram com alguma dificuldade, mas que, afinal, levou-os para o outro lado. No outro lado havia uma longa galeria, que parecia não ter fim e que parecia ter sido pouco afetada pelas explosões. Algumas luzes de emergência, nas laterais, ainda estavam acesas, embora fracas.
- Acho que ouvi um ruído. Parece que há algo ou alguém. Vamos…
- Não. Pode ser perigoso. Melhor termos cuidado. Se for outro daqueles guardas, estaremos em perigo…
Mas já era tarde demais. O rapaz que perdera os óculos já havia aberto uma pesada porta metálica, no final de um corredor mal iluminado e espiava para dentro, quando o outro aproximou-se e viu o que passava lá dentro.

***

sábado, 30 de maio de 2015

Rota de Fuga (Parte 1)


O sol de verão castigava a cabeça daquele jovem robusto, de tez muito clara e cabelos quase loiros, vestido com uma farda em tecido estampado com padrões abstratos, em vários tons de cáqui e verde. O suor escorria-lhe pela face arredondada, barbeada às pressas, fazendo-a avermelhar.

Era começo da tarde e ele desejava um banho frio, urgentemente. Seu desejo, porém, só seria possível bem mais tarde, após anoitecer e ele terminar o turno. Passava dias e dias naquele lugar, a caminhar de um lado para o outro, sem muito o que fazer, a não ser vigiar o local.

Ele odiava o calor. Odiava aquela roupa abotoada até a altura do peito, quase no pescoço. Odiava ter que usar aquela t-shirt branca por baixo da farda. Ele, simplesmente, odiava estar ali, ao sol, a transpirar, numa função com muito pouca ação e que não exigia nada dele, além de muita paciência.

Aprendera a observar os mais ínfimos movimentos ao longo da área, distraindo-se da aborrecida tarefa que tinha de executar todos os dias, o dia todo. Seus olhos treinados percebiam as mínimas atividades dos pequenos predadores da região, que vinham sempre a busca de alguma comida ou em perseguição de algum roedor, réptil ou mesmo insetos.

Um movimento incomum, num canto, perto de um dos rolos de arame farpado que cercavam o lugar, que ele tinha vigiar e proteger, chamou-lhe a atenção. Primeiro, pensou que fosse um coelho ou um pássaro, mas um pequeno reflexo, quase imperceptível, fê-lo desconfiar que poderia haver algo mais, daquela vez.

Se aquele reflexo fosse de alguma superfície de vidro polido, poderia ser de alguém, que estivesse escondido, a espreitar. Aquela era uma área que de segurança nacional, cuja entrada era proibida a civis. Ele puxou a arma do coldre, destravou o gatilho e começou a caminhar na direção do brilho.


- Acho que ele nos viu. Corre!

- Mas que diabos foi aquilo? Ele atirou em nós?

- Não faça perguntas tolas. Claro que são tiros. Ele é o guarda, afinal… Agora, corre!

O som dos tiros e as balas, a passarem perto dos dois rapazes e ricochetearem nas paredes de concreto, dava-lhes mais que motivos suficientes para correrem o mais rápido que pudessem, sem olhar para trás. Se não o fizessem, perderiam segundos preciosos na fuga. Haviam invadido terreno proibido e sabiam que, se fossem capturados, não seriam poupados.

O tal guarda não parecia nem um pouco interessado em capturá-los. Estava mais predisposto a abatê-los de vez e acabar com a possibilidade de ter a base invadida por intrusos curiosos, como aqueles dois rapazes irresponsáveis e intrometidos. Ele fora treinado para o combate e as saídas estratégicas, não para perseguir adolescentes em fase escolar, vestidos com calções e t-shirts coloridas.

Se a base fosse descoberta, eles iriam ter que explicar muita coisa. Ao mesmo tempo, matar civis poderia gerar um conflito ainda maior. A solução era eliminar, completamente, quaisquer vestígios que pudessem colocar a operação em risco.

Ele odiava correr, especialmente atrás de intrusos. Já bastava ter que ficar de pé o dia todo, debaixo daquele sol de verão, vestido com farda e botas, sentindo o corpo a ferver e agora ainda tinha que correr atrás dos rapazes, debaixo daquele calor infernal.

Ele execrava aquilo tudo: a maldita operação, a maldita base "secreta" e, agora, os malditos adolescentes.

Ele adorava, entretanto, ter uma hipótese de poder atirar em alguém… já que havia sido treinado para aquilo e nunca tivera oportunidade para tal.

A base fora edificada no meio do nada, entre algures e nenhures. Era uma estrutura praticamente invisível, tanto vista de cima, quanto da estrada. Estava construída no topo de um monte, numa cratera escavada com o fim de ficar longe da vista de curiosos. A maior parte das operações ficava na parte subterrânea. Quanto mais estratégico e importante o sector, mais profunda era a área. Era como um arranha-céu invertido.

O povoado mais próximo devia ficar a mais de cinquenta quilômetros daquele lugar. Os rapazes descobriram o local, por acaso, quando ouviram e seguiram o som de um helicóptero, enquanto acampavam no meio da mata.

Logo chegaram a uma área, cercada por centenas de metros de arame farpado, enrolados em espirais, ao longo da grande construção, que por fora, parecia nada mais que um vasto campo de concreto.

Adolescência e curiosidade andam sempre de mãos dadas. As consequências daquela perigosa e displicente  parceria nem sempre eram boas. Era aquele o caso.

Os dois rapazes fugiam, sem olhar para trás, tentando sair do campo de visão do atirador. O guarda era alguns anos mais velho que eles e tinha porte físico bem mais avantajado, além de haver sido treinado militarmente. Com uma arma na mão, colocava, obviamente, os dois em desvantagem.

Eles só tinham uma alternativa: correr… ou então, morrer… e nenhum dos dois tinha intenção de morrer tão cedo. Ainda tinham planos para a escola, carreira, mulheres, futuro.

Morrer não era uma opção. Não mesmo!

Se chegassem de volta à mata, ainda teriam alguma hipótese, pois seriam alvos menos limpos, mas tinham que correr mais e torcer para não serem atingidos até lá.

- Por ali. Depressa!

Uma outra bala passou zunindo. O rapaz, cujos óculos haviam denunciado a presença dos dois ao guarda, sentiu uma dor estranha no lado esquerdo e suas pernas fraquejaram, descontroladas. Tentou continuar correndo, mas, apesar de a adrenalina estar circulando em alta velocidade em seu sangue, ele caiu. A ausência do som dos passos próximo de si, fez o outro rapaz virar-se, para ajudar o amigo, mas já era tarde demais.

O guarda estava de pé, com a arma em punho, a apontar para os dois. O rapaz ferido fechou os olhos. O outro não falou nada. Ficou, somente, a olhar para aquele jovem, de faces avermelhadas, que não demonstrou qualquer emoção, quando firmou o dedo no gatilho e começou a apertá-lo.

Um estrondo ecoou na cabeça do rapaz que estava agachado junto ao amigo caído. Ele mantinha os olhos fixos na arma, que, de repente, passou a apontar em outra direção…

O chão havia estremecido com tanta violência, que o guarda perdera o equilíbrio. O rapaz ainda conseguiu ver a estranha expressão na face do outro, quando uma rachadura abriu-se na terra, engolindo-o, bem ali, à frente deles. O rapaz puxou o amigo pelos braços e viu que ferimento em seu lado esquerdo sangrava. Para sua surpresa, os olhos do outro abriram, revelando uma expressão bastante confusa, como se não percebesse o que havia acontecido, apenas poucos segundos antes.

- Consegues caminhar? Temos que fugir, antes que seja tarde demais…

- Acho que sim.

O chão estremeceu uma outra vez, com mais violência que anteriormente. A cavidade começou a alastrar-se, não só em diâmetro, mas rompendo estranhas fendas, que corriam, como braços, em todas as direções e em velocidade incontrolada. Boa parte do campo, onde estavam, ia afundando rapidamente, amplificando ainda mais o perigo.

- Vamos embora. Rápido!

O rapaz ferido, apoiado pelo outro, levantou-se, ainda com um pouco de dificuldade, mas conseguiu caminhar. A terra tremeu por baixo deles. Eles viram a cratera ceder e as fendas abrirem, como se fossem perigosos tentáculos, que cresciam, como se estivessem em busca de suas impotentes presas.

Os dois começaram a correr, tentando ser, ainda, mais rápidos que antes.

Em poucos segundos, porém, o chão faltou-lhes completamente e eles foram sugados para dentro da cratera, sem conseguirem agarrar-se a nada, enquanto a terra os engolia rapidamente…


***

sábado, 20 de setembro de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 5: Epílogo – Ínfimos Agentes & Grandes Efeitos)


Primeiro havia uma luz. Depois a escuridão. Em seguida, pareceu que ouvia, ao longe, um grito exasperado. Aparentemente, alguém clamava seu nome, insistentemente e em alta voz.

- Acorda, homem. Estiveste a sonhar e a gritar. Calma, agora…

Ele estava coberto por suor e tremia violentamente. O velho sintoma, já bastante conhecido seu, voltara a incomodar-lhe. Sentia uma forte pontada de dor, nas têmporas. Abriu os olhos, devagar, tentando focar a visão, que ia-se tornando nítida aos poucos. Viu o homenzinho com um semblante muito perturbado a olhar-lhe de muito perto. A terrível dor de cabeça, que o afligia, quase o impedia de pensar e aumentava o estado de confusão em que estava.

- Foi só um sonho…

- Mas foi horrível!

- Calma, agora. Deve ser o efeito do antídoto e do stress que viveste nas últimas horas. Ainda tens alguma febre. Tens que descansar.

- Foi tudo tão real. Um pesadelo dos piores.

O homenzinho olhou para a mesa, encostada à parede do quarto. Virou-se para o outro que jazia todo coberto de suor e disse, com uma expressão estranha no rosto.

- A caixinha desapareceu.

Os dois homens entreolharam-se. O que estava deitado passou a mão à volta do pescoço. Havia uma marca bastante vermelha, como se algo houvesse roçado, com muitíssima pressão, ali naquela região. Sentia um gosto estranho na boca e fortes náuseas. Virou-se para o lado e vomitou um líquido quase transparente com alguns vestígios muito escuros.

O outro olhou-o, com o cenho franzido, ao observar mais marcas, muito evidentes, no corpo do homem deitado e a estranha mistura vinda do interior do seu estômago.

***

- Vitória, finalmente! Agora eu tenho o que mais queria. Ninguém conseguirá deter a minha doce destruição! Este será o lugar ideal para minhas criaturas, que já dominam o outro lado e estão-se reproduzindo em grande velocidade… e eu serei a rainha de tudo isso… a criatura mais poderosa deste mundo…

A Sibila, em sua forma humana, deu uma sonora gargalhada. Sua risada, sua pele pálida e seus longos e negros cabelos, completamente desgrenhados, davam-lhe a impressão de que ela estava muito longe de ser tanto humana, quanto sã. Na mão tinha a caixinha metálica, que ostentava, com orgulhoso prazer e que fizera questão de buscar no quarto do homem que viera do outro lado do mundo.

Ela tinha de certificar-se que traria o seu prêmio, em mãos… mas não sem antes subjugar sua vítima, que dormia seu profundo e agitado sonho e que teve, injetada em sua boca, uma negra peçonha, cujo único intuito era aumentar o estado de desvario em que já se encontrava. O homem teria sérias dúvidas sobre o que realmente acontecera e o que havia alucinado.

A venenosa satisfação e a insuportável empáfia da mulher pareciam haver aumentado nas últimas horas, depois que se apossara da caixinha. Ela sabia bem que os delírios ainda iam demorar para desaparecer, especialmente depois da segunda dose e, também, porque o antídoto havia sido ministrado muito tempo depois da injeção do veneno na corrente sanguínea da sua vítima.

A estranha mulher-serpente, então, abriu a caixinha, bem devagar, para prolongar o prazer mórbido que sentia com sua conquista. Os pequenos casulos luziram com a parca luz do ambiente, pois estavam quase prontos a eclodir. Por sobre a quase transparente e fina superfície de cada um, uma finíssima camada viva, movia-se em frenesi, com a entrada da luz e do ar, sem ser percebida a olho nu. A Sibila tomou um dos casulos com as pontas dos dedos e observou-os bem de perto.

Um ruído nas imediações da sala chamou a atenção de quem lá se encontrava. A mulher fez sinal aos quatro homens corpulentos que a observavam vangloriar-se. Dois deles saíram para ver o que acontecia. O olhar dos outros personagens fixaram-se à entrada, assim que eles cruzaram o limiar e desapareceram na escuridão. Houve um breve silêncio…

De repente, o mundo pareceu vir abaixo. Uma série de rosnados, berros, sibilos, estrondos e sons de coisas a quebrar, seguiu-se. Os dois homens que ainda estavam na sala saíram para fora e entraram na escuridão além do portal. Os berros eram tão altos e aquela mistura incompreensível de sons tão variados, que confundiram a estranha e esquelética mulher, que, impaciente e com os olhos a flamejarem de ódio, dirigiu-se, apressada, para onde os ruídos vinham, a fim de pôr um fim naquela algazarra.

Antes mesmo que chegasse ao pretendido destino, a Sibila parou. Deu um pequeno passo atrás, quando viu que dois grandes animais vinham na sua direção. Um enorme e pardo felino, com olhos azuis-acinzentados e outro, um pouco menor, com olhos verdes muito claros, avançaram pela sala adentro. O animal menor trazia, à volta do pescoço, uma espécie de colar, com um delicado pingente de lápis-lazúli. Ambos vinham acompanhados por uma dezena de mangustos e dirigiam-se diretamente à mulher, com ar não menos ameaçador que o dela, que agora já havia mudado sua expressão feroz por uma outra, completamente diferente e não muito congruente com o contexto em que se encontravam.

O corpo humano da Sibila começou a contorcer-se, com estranhos e incontroláveis espasmos. Ela transmutou-se de volta à sua forma original, e rastejou pelo piso da sala, a menear seu longo e roliço corpo e abrindo a boca, como se tentasse respirar e não conseguisse. A serpente ofegava e tentava gritar, mas nenhum som saía de sua garganta.

Os felinos aproximaram-se, ameaçadores, mas neste mesmo momento, os mangustos avançaram para cima da reptílica figura, com ferocidade descomunal e em selvagem investida. Ela não teve nem tempo de defender-se…

Não muito tempo depois, um estranho homenzinho, vestido com roupas bastante surradas, em um tom muito escuro de castanho, cruzou o portal da imensa sala e juntou uma caixinha que estava caída ao chão, bem como uns pequenos casulos e colocou-os de volta no pequeno compartimento metálico, suspirando aliviado. Fechou o artefacto com cuidado e saiu, sem dar mais atenção que a necessária à cena horrenda a desenrolar-se nos subterrâneos do edifício.

Atrás de si, uma jovem mulher, com olhos quase transparentes, de tão claros, aprumou-se e rearranjou a túnica cinzenta e o colar de lápis-lazúli, seguindo-o, em silêncio e sem olhar para trás. Atrás da mocinha, um homem, com um casaco pardo, mais escuro e com olhos azuis-acinzentados, seguia, sem dizer nenhuma palavra.

***

- Foi uma operação muitíssimo arriscada.

- Eu sei, mas tinha que ser, no mínimo, credível, ou estaríamos em apuros maiores. Ela não sabia que os casulos estavam cobertos com os ácaros letais à sua espécie. Eu tinha que ter certeza que ela respiraria alguns, para que a ação fosse efetiva. Não pensei que fossem agir tão rápido, entretanto. Quem poderia dizer que animaizinhos tão infimamente pequenos poderiam acabar assim, tão rápido e tão efetivamente, com uma população de víboras desta estirpe…

- Mas ela podia tê-los destruído, sem entrar em contato com eles e acabado com o plano. Foi muito arriscado mesmo.

- Eu contava com a sua grande arrogância, porém, e com a ajuda de nossos amigos do horto… Enfim, eu estava certo… felizmente…

A caixinha estava aberta sobre a mesa de madeira no centro do horto. Os pequenos casulos listrados haviam sido cuidadosamente pendurados nos ramos de uma série de árvores. Estavam prontos a eclodir e dar vida à uma série de novas borboletinhas. Estas deveriam viajar para o outro lado e se encarregariam de aumentar sua própria população e a esperança de vida, polinizando a vegetação e espalhando o vírus destruidor de serpentes. No final, o objetivo era recuperar a vida da floresta, anulando parte da devastação da mesma, causada pelos desígnios egoístas da Sibila.

- A continuidade ou a destruição da vida depende de coisinhas muito pequenas e frágeis, mas que tem uma ação universal, quando acontecem naturalmente. O problema é que uma vez perdido o equilíbrio, outras ações, muito maiores, tem que ser tomadas e cuidados também muito maiores são necessários para tentar retomar a harmonia perdida. Essa é a nossa função por cá…

- Mas para isto, algumas medidas radicais tem que ser tomadas, também.

- Sem dúvidas. O importante é não destruir nada, para que o equilíbrio não se perca e não tenhamos que refazer… com bem mais dificuldade e muito mais tempo...Como estão as dores de cabeça? Sofreste bastante com toda esta aventura...

- Estou bem melhor... acho... Na verdade, com esta excitação toda das últimas horas, havia-me até esquecido das dores…

- Espero que esteja resolvido e que não mais sintas os sintomas, agora que tratamos do problema.

O homem olhou o outro com uma interrogação enorme nos olhos. Não havia percebido a intenção nas palavras do outro. O velho sorriu e apontou para caixinha.

- Tínhamos um acordo. A tua parte foi bem mais difícil e causou-te uma série de encrencas. A minha foi muito mais fácil. O que é veneno para uns, é cura para outros…

- Mas eu não vi…

- Não se deixe convencer apenas pela impressão do que tu viste ou não. Os sentidos, às vezes, enganam. Abra a mente e deixe-se aceitar as coisas sem pré-conceitos. Algumas coisas não são o que aparentam ser e tu já tiveste muitas provas disso, nestes últimos dias. Faz parte do ritual da vida preservar a nossa e todas as outras espécies e, também, curar os males… que nós conseguirmos. O acordo era claro: uma coisa pela outra. Agora já não terás mais o carcinoma a incomodar-te o cérebro... E as alucinações? Ainda as tens?

- As alucinações? Como é que sabes das alucinações? Eu nunca falei…

O homenzinho sorriu, piscou o olho, virou-se e saiu, sem responder. Foi então que o homem percebeu duas protuberâncias nas costas do outro, cobertas pelo velho casaco castanho, já bastante puído.

***

- Eu não vou voltar a pular neste poço. Não mesmo...

- Pois eu vou. É a única saída para o outro lado... de volta para a tua casa... o teu lar…

Ele sentiu que aquela não era bem a constatação de uma verdade. Era um homem sozinho e solitário, que vivia para pouco mais que a rotina confortável de seu trabalho. Tinha uma vida social praticamente inexistente. Naquelas poucas horas em que estivera naquele mundo, havia tido mais aventura e sentira-se mais vivo que durante toda a sua existência.

- Meu lar? E onde fica meu lar, afinal?

A mocinha, de olhos verdes muito claros, olhou o homem, sorrindo e desconsiderando aquela última questão. Não hesitou e pulou, com os dois pés juntos, dentro da água cristalina. Ele viu que não tinha muita alternativa e pulou atrás, deixando-se afundar, sem fazer nenhum esforço enquanto submergia. A sensação era incrivelmente refrescante e revigorante. Um redemoinho formou-se, subitamente, por baixo de dois corpos imersos e puxou-os para o centro do mesmo. O homem fechou os olhos e deixou-se ser sugado nas profundezas do poço, cujas águas lavavam-lhe a alma e o corpo e davam-lhe a impressão que caía infinitamente…

***

- É quase impossível! Não consigo entender como não está mais lá!

- Tem certeza, doutor? Não é um engano?

- Tenho certeza absoluta, mas não consigo perceber. Era muito evidente… muito visível… e agora não há nem sinal. Já refizemos os exames, porque estávamos com dúvidas, mas os resultados só reconfirmam que já não está mais lá… É muito estranho mesmo!

O médico examinava os resultados do ultrassom e do raio X e não conseguia ver sinais do carcinoma que tratou por tanto tempo, para não deixar o paciente desanimar, mas sabia que os dias do homem de cabelos castanhos estavam contados. O tumor era fatal… até aquele momento… E, agora, havia desaparecido por completo e ele não tinha nenhuma explicação para aquela melhora.

- E as dores? Eram bastante fortes…

- Já não as sinto…

O médico olhou o paciente, com uma expressão de incredulidade.

- E as alucinações?

O homem sorriu. aliviado e disse:

- Provavelmente algum milagre aconteceu… Doutor, tenho que ir. Vou aproveitar e beber um vinho fresco, na ribeira… a celebrar a vida!

E pensou:

- (Que grande lance... um verdadeiro lance  de mestre!!!)

***

- Está tudo bem?

- Ahn? Sim, está… acho…

Ele olhava diretamente nos olhos verdes quase transparentes da menina que esbarrara na sua cadeira e que pedira desculpas, sorrindo, fazendo-lhe uma pergunta que não esperava. Normalmente as pessoas pedem desculpas, mas não voltam-se para saber se está-se bem. Ela ficou a olhar o homem por uns intermináveis instantes. Ele retribuiu o sorriso. Seus olhos foram atraídos pelo delicado colar de distinta pedra azul, que ela trazia pendurado ao pálido pescoço.

- Elena! Vamos!

Ela já ia a caminho do rapaz que a chamara, mas voltou correndo e, segurando-lhe o pulso, colocou algo na palma da sua mão e fechou-lhe os dedos, para segurar o “presente” que acabara de dar-lhe. Olhou-o nos olhos, sorriu e saiu correndo, desta vez sem olhar para trás.

Ele ainda ficou com a mão fechada por uns segundos, a olhar a mocinha afastar-se com o grupo de amigos, da mesma idade que ela. Abriu lentamente os dedos e viu, ali, um pequeno objeto que conhecia bem. Teve um pensamento perturbador.

- (Isso foi verdadeiro, ou uma grande alucinação? Teria sido o efeito do tumor, no meu cérebro? A grande verdade é que provavelmente nunca saberei…)

O pequeno casulo moveu-se na sua mão. A continuidade da vida depende de coisas tão imensuravelmente frágeis, pensou…

Aos seus pés, um gato pardo, consideravelmente robusto, aninhou-se tranquilamente e fechando seus grandes olhos azuis-acinzentados, adormeceu...